segunda-feira, 19 de setembro de 2022

Capítulo 2 | Carol sempre foi mais sensata

Através da floresta vemos o mundo.
A frase estava em sua cabeça pela manhã, levantou e antes de ver a esposa olhou a janela.
Os raios que passavam pelo vão da veneziana o faziam ter certeza de que o dia seria lindo.
Alguns passos e estava no berço da filha, um grande beijo molhou a bochecha da pequena, que nem sequer sentiu.
Foi em direção ao banheiro, colocou água dentro da boca e expeliu, olhou no espelho e viu cabelos longos, e um brinco do lado direito.
Juntou as mãos e pegou água, molhou o rosto e dessa vez viu a calvície e uma orelha furada. Sentou no vaso, alarme falso, odiava perder tempo, fechou a revista, subiu as calças novamente e foi pôr a água no fogo, sua esposa adorava acordar já com algo adiantado.
A empregada devia estar de ressaca hoje, todo domingo era assim, sabia que folgava e no sábado enchia a cara de cerveja, talvez tivesse saído com alguém, talvez alguém tenha colocado algo grande e firme naquele belo traseiro. Não! Era melhor pensar em outra coisa, tantos traseiros por aí e o da empregada vivia tumultuando sua mente.
A água ferveu, ele pegou o pó, despejou e depois foi atrás do açúcar; sua mulher sempre brigava.
Que que é isso Calixto? Fazendo café à moda primitiva?
Mas ele adorava fazer igual ao que tinha aprendido no pequeno comércio do tio, hoje uma franquia muito respeitada, cujo nome ele sempre achou ruim, afinal parecia o de um cara e não de uma franquia.
Ligar empresas às pessoas, humanizar a escravidão, essas coisas ele sabia, mas toda vez que pensava no assunto sentia que o nome ainda era ruim.
Através da floresta vemos o mundo.
Hoje passaria o dia todo com isso na cabeça, quem sabe deveria escrever de vez em quando, embora soubesse que não compensava ser escritor, certeza adquirida pelo tanto de entrevistas que havia lido, a parte financeira sempre pesava para todos, estranho, ele achava, um ator ganhar tanto, para falar algo que outro escreveu, e o que criou tudo aquilo vivia tendo uma vida medíocre e totalmente falida, mas quem disse que a vida era justa? E talvez fosse verdade que eles só criassem na adversidade, ou talvez ainda só reclamassem por osmose, ou ainda quem tem que ganhar bem somente por mentir? De qualquer forma, era um trabalho muito cansativo, arquivar sem pensar, catalogar sem decidir, era muito melhor, pondo na balança Calixto não arriscaria sua vida de classe média.
Passou o café e depois despejou num pequeno copo um pouco, experimentou e gostou: forte e quase sem açúcar, algo como a fórmula da criação do mundo.
Carol levantou, o rosto um pouco inchado, mas que em nada impedia sua beleza de se manifestar, os cabelos assanhados sempre traziam lembranças para Calixto.
Da época que chegava na casa dos pais de Carol, pela manhã, e depois subia no seu quarto silenciosamente, sentava ao pé da cama e ficava olhando para ela durante vários, mas não longos, minutos. Ela abria o olho delicadamente e soltava um sorriso, antes de dizer a mesma frase de sempre.
Por que você fica me olhando assim? Mas Calixto nunca pôde responder, nunca teve coragem para isso. Não falaria de amor, do que sentia, nem do medo daquilo acabar.
A pequena despertou, a casa não teria mais aquela paz.
Troca de roupa, pega o brinquedo, corre para abraçar a cachorra.
Sentados na sala, eles desistiam todas as manhãs de ver TV, programação repetida da noite passada, então pegavam um grande quebra-cabeça e começavam.
Tranquilidade, o domingo era assim denominado, pois, na segunda-feira, começaria tudo de novo, natação para a pequena, trabalho para ele, estudo e trabalho para Carol, uma infinidade de obrigações para não deixar ninguém ter tempo de ver a realidade.
Fora há muito a data em que tinham saído, antes passeavam pela praça que ficava a alguns minutos dali. Um sorvete de limão para ele, um de uva para ela, sempre de uva, suco de uva, salada de fruta com uva, e os lábios ficavam lindos, com um batom feito pela natureza, uma boca provocante, que ele vivia experimentando, mas não se saciava.
Já a pequena gostava de morango, tudo tinha que ser de morango, os lábios, as bochechas, o vestido, em poucos minutos ela estava toda vermelha, o sorvete derretia mais rápido do que as pequenas lambidas, ele ria muito, ela também, a pequena tentava lamber mais rápido e não entendia por que riam tanto.
Foram à loja de brinquedos, andaram pelos corredores, vendo os pedaços de plástico para os adultos e as maravilhas coloridas para as crianças, vendo os preços para os adultos, e o que era mágico para as crianças.
Oi, linda!
Oi, papai, você vai pegar o Coringa?
Vou, sim, o papai é quem?
Olha, você é o Batman.
Por que eu sou o Batman, meu amor?
Você é super-herói.

Ferréz, in Deus foi almoçar

Nenhum comentário:

Postar um comentário