(Epifania:
um súbito e quase milagroso sentimento de compreensão de algo. Um
relâmpago íntimo e silencioso, capaz de dividir a vida de uma
pessoa em duas partes – atrás a escuridão, adiante uma luz
redentora.)
Permanecemos
no Paris até alcançarmos a Estrada das Luzes e recuperarmos a
ligação à Internet e, portanto, ao resto do mundo. Foram dias
felizes. Não gostaria de ser um herói profissional, desses
utilizados pelos governos para ornamentar palanques em dias festivos.
Contudo, agradou-me o estatuto, ou o estado, de herói-de-passagem. O
governo da cidade ofereceu-me a cidadania honorária e um pequeno
apartamento, no nono piso. O melhor do apartamento era a varanda, com
uma rede, na qual me podia estender a tomar sol. Quando saía à
noite, para jantar, ou dançar, as pessoas pediam-me autógrafos.
Faziam-se fotografar ao meu lado. Sentia-as trémulas, com as mãos
suadas, e isso deixava-me também a mim um pouco alvoroçado.
Tentei
entrar em contacto com Luanda. Sem sucesso. Ninguém me sabia dar
informações da minha aldeia. Pedi para interrogar os prisioneiros.
Boniface deixara ao comando do grupo um sujeito já de certa idade,
mas com um rosto liso, e um ar sólido e feliz de menino gordo.
Chamava-se, ou chamavam-no, Boa-Morte e nascera numa pequena cidade
do nordeste do Brasil. Não escondeu a alegria por poder falar comigo
em português:
– Vocês
nos pegaram de surpresa! – disse-me. – Nunca imaginámos que
alguém conseguisse localizar o Paris no meio de tamanho silêncio.
– E
Luanda? O que aconteceu a Luanda?
Olhou-me,
um tanto aturdido:
– Você
é o filho d’O Voador, não é?
– Sim.
Porquê?
– Boniface
enlouqueceu.
Disse
aquilo numa voz de sombras e depois calou-se. Permaneceu em silêncio,
estudando-me, um longo momento. Os olhos dele desmentiam a incrível
juventude do rosto.
– Boniface
perdeu a cabeça – repetiu devagar. – O louco acreditava que O
Voador o pudesse conduzir à Ilha Verde.
– Porquê?
– Você
sabe porquê.
– Porque
a minha família veio de lá?
– Sim,
quando O Voador disse chamar-se Tucano e ser brasileiro,
Boniface ficou excitadíssimo. Achou que era um sinal dos deuses.
Imagine, ele vivia desde há vários anos apaixonado por essa lenda
da Ilha Verde, e, então, de repente, surge um homem misterioso,
caído do céu, que dizia chamar-se Tucano. Contava que a família
viera do Pico da Neblina, o ponto mais alto do Brasil...
– E
o que há de tão importante no Pico da Neblina?
Boa-Morte
sacudiu a cabeça, incrédulo:
– Você
não sabe mesmo?!
– Não.
– Certo.
Então eu conto. Mas vocês me deixam partir. Me entregam uma balsa
com alimentos e material de pesca, e me deixam partir.
– Não.
Você irá ser julgado por um tribunal competente, e depois terá de
cumprir a pena a que for condenado. Não posso fazer nada quanto a
isso.
– Resposta
errada, mano.
– O
que aconteceu a Luanda?
– Não
sei mesmo – suspirou. – Já falei, Boniface enlouqueceu. Eu devia
ter fugido assim que ele desceu para a ilha. Pensei em fazer isso,
mas não tive coragem.
Interroguei
os restantes prisioneiros. A maioria eram imigrantes ilegais, muito
jovens, recrutados à força por Boniface. Fiquei com pena deles. O
mais novo, um chinês de dezoito anos, ao qual a mãe dera o nome de
Brad Pitt, em homenagem ao famoso ator do início do século,
assegurou-me que o chefe dos piratas fora à Ilha Verde procurar uma
raiz.
– Uma
raiz?! – irritei-me. – Que raiz vale tanto esforço?
Brad
Pitt baixou a voz:
– Não
é uma raiz qualquer. É um medicamento.
– Um
medicamento?! Para que efeito?
– Não
sei ao certo. Falam muita coisa. Alguns dizem que melhora os sonhos,
ou que os torna reais. Dizem também que prolonga a vida. Sei lá, já
ouvi tanta coisa.
Não
consegui arrancar-lhe mais nada. Pedi para falar de novo com
Boa-Morte. Este mostrou-se inflexível:
– Nada,
meu mano. Só falo quando estiver livre. Não sou canário, para
cantar na gaiola.
Sibongile
queria retornar à Ilha Verde. Aimée também. Decidimos deixar Vera
Regina no Paris, a cargo dos pais de Aimée, e voltámos a enfrentar
as nuvens. Partimos, dessa vez, muito bem equipados. Levávamos
provisões suficientes para dois meses e equipamento de navegação
avançado, oferta generosa do governo do Paris. Patrick juntou-se a
nós na Montparnasse:
– Somos
a esquadrilha dos sonhadores – anunciou, eufórico. – Um bando de
nefelibatas em busca de um pouco de chão.
Já
não nos custou tanto deixar para trás a Estrada das Luzes. Íamos
preparados para enfrentar o silêncio. Ao décimo quinto dia, de
manhã muito cedo, vi erguer-se, ao longe, um enorme cumulonimbus.
Os cumulonimbus foram desde sempre encarados com algum terror
reverencial pela humanidade. A altura destas nuvens pode ultrapassar
os dezoito mil metros. No seu interior concentra-se uma quantidade de
energia capaz de exceder em dez vezes a libertada pela bomba atómica
que arrasou Hiroxima. Aquele era um exemplar particularmente poderoso
e elegante de um cumulonimbus capillatus incus. Assim, a uma
distância considerável, parecia um deus indolente, gozando, no
terraço, o fresco da manhã. Eu sabia, contudo, que, se não
conseguíssemos afastar-nos rapidamente do seu caminho, em breve o
veríamos agitar-se, colérico, trovejando, disparando raios, e então
seria tarde de mais. Acordei toda a gente. Patrick não escondeu o
susto:
– Felizmente
foi de manhã, e tu estavas acordado. Um encontro com um desastre
destes, à noite, poderia ser-nos fatal.
Não
respondi. Voltei a lembrar-me da noite em que o meu pai desaparecera.
Luanda deixara-se apresar por uma nuvem semelhante à que agora nos
perseguia. Quando demos conta, já fortes rajadas de vento lançavam
as balsas umas de encontro às outras. Veio depois uma violenta chuva
de granizo e, logo a seguir, estalaram os primeiros relâmpagos. Com
o rosto colado às janelas da biblioteca da Maianga, na companhia do
meu primo Luan, testemunhei o pânico dos adultos, correndo ao longo
das redes, num esforço desesperado para consolidar cabos e
desenredar outros. Os disparos de luz congelavam as silhuetas.
Algumas pessoas pareciam flutuar, como grandes aves perplexas, presas
pelo arnês. Outras dançavam aos pares, rodopiavam e depois caíam
de costas na rede.
– Maravilha!
– murmurou Luan. – Vamos sair?
– Não
podemos.
– Claro
que podemos. Ninguém dará por nós.
Saímos.
O ar era uma matéria viva, exaltada, que se apossava de nós e nos
enchia de força. Luan abriu os braços, como se fossem asas:
– Parece
uma festa!
Mas,
claro, não era uma festa. Era um desastre. Um fortíssimo clarão
abriu o céu e, por um rápido instante, cegou-nos a todos. Mal
recuperei a vista apercebi-me de que um dos balões ardia, a cerca de
duzentos metros de onde nos encontrávamos. Em poucos segundos o
incêndio poderia propagar-se a toda a aldeia. Vi o meu pai correr,
com um extintor na mão, libertar o cabo do arnês e saltar para o
convés da balsa. O fogo crescia, inflamado pela fúria do vento.
Júlio desapareceu no meio das chamas. Reapareceu, instantes depois,
com uma criança ao colo. Prendeu-a com um cabo e lançou-a para os
braços de outro homem, na rede. A seguir cortou, com uma faca, a
amarra que prendia a balsa e saltou. Desgraçadamente, um súbito
golpe de vento afastou o balão, e o meu pai mergulhou no vazio.
Sacudi
da memória aquela tarde infeliz e voltei a encarar o cumulonimbos.
Era uma nuvem belíssima. Aimée leu-me o pensamento:
– Custa
a crer que a beleza possa ser tão terrível. Preferimos acreditar
que o mal é sempre feio.
Não
havendo possibilidade de passar por cima da nuvem (apenas os maiores
dirigíveis conseguem subir tão alto) decidimos recuar. A
Montparnasse, pequena, e muito veloz, adiantou-se. A Nova Esperança,
todavia, não parecia ter fôlego suficiente e foi ficando para trás.
Abrandei a marcha, aproximando-me dela. Perguntei pelo megafone, a
Mang e a Sibongile, se não seria melhor passarem para a nossa balsa.
Sibongile recusou. Aimée olhou-me, assustada:
– O
que fazemos?!
– Avançamos.
Temos de avançar.
O
céu escurecia à nossa volta. O cumulonimbus transformara-se
numa parede negra e convulsa. Contudo, quando parecia prestes a
alcançar-nos, abrandou, mudando de direção. Minutos depois apenas
sobrava dele uma chuva esparsa. Voltámos a reunir as balsas. A
tempestade afastara-nos da rota. Mang e Patrick passaram para a
Maianga. Ficámos a tarde inteira na cabina de pilotagem, debruçados
sobre enormes mapas, fazendo e refazendo cálculos. O Pico da Neblina
não deveria estar muito longe.
Patrick
permaneceu acordado a noite inteira para o caso de surgir um outro
cumulonimbus. Na escuridão, como ele insiste em repetir, é
melhor confiar num cego. Na manhã seguinte estendeu-se a dormir na
minha biblioteca e eu substituí-o. O céu despertara muito claro. A
intervalos era possível ver o mar. Passavam poucos minutos das onze
horas quando me pareceu que alguma coisa se movia, lá em baixo. As
águas haviam mudado de cor. Chamei Aimée. Estudámos, com os
binóculos, os diferentes tons de azul, entrecortados, aqui e ali,
por largas manchas verdes. Decidi baixar a balsa. A uns cem metros,
distinguimos uma série de ilhéus flutuantes, formados por algas e
detritos vários. Gaivotas irromperam do nevoeiro baixo e vieram
saudar-nos aos gritos. Fazia calor, mas não tanto quanto seria de
esperar. Então, de súbito, vimos emergir, a bombordo, um alto e
redondo cume de pedra. Aimée abraçou-se a mim, e comecei a chorar.
Compreendi, naquele instante, a paixão com que os mais velhos se
referem à terra.
José Eduardo Agualusa, in A Vida no Céu
Nenhum comentário:
Postar um comentário