segunda-feira, 19 de setembro de 2022

A Vida no Céu | Décimo terceiro capítulo

(Epifania: um súbito e quase milagroso sentimento de compreensão de algo. Um relâmpago íntimo e silencioso, capaz de dividir a vida de uma pessoa em duas partes – atrás a escuridão, adiante uma luz redentora.)

Permanecemos no Paris até alcançarmos a Estrada das Luzes e recuperarmos a ligação à Internet e, portanto, ao resto do mundo. Foram dias felizes. Não gostaria de ser um herói profissional, desses utilizados pelos governos para ornamentar palanques em dias festivos. Contudo, agradou-me o estatuto, ou o estado, de herói-de-passagem. O governo da cidade ofereceu-me a cidadania honorária e um pequeno apartamento, no nono piso. O melhor do apartamento era a varanda, com uma rede, na qual me podia estender a tomar sol. Quando saía à noite, para jantar, ou dançar, as pessoas pediam-me autógrafos. Faziam-se fotografar ao meu lado. Sentia-as trémulas, com as mãos suadas, e isso deixava-me também a mim um pouco alvoroçado.
Tentei entrar em contacto com Luanda. Sem sucesso. Ninguém me sabia dar informações da minha aldeia. Pedi para interrogar os prisioneiros. Boniface deixara ao comando do grupo um sujeito já de certa idade, mas com um rosto liso, e um ar sólido e feliz de menino gordo. Chamava-se, ou chamavam-no, Boa-Morte e nascera numa pequena cidade do nordeste do Brasil. Não escondeu a alegria por poder falar comigo em português:
Vocês nos pegaram de surpresa! – disse-me. – Nunca imaginámos que alguém conseguisse localizar o Paris no meio de tamanho silêncio.
E Luanda? O que aconteceu a Luanda?
Olhou-me, um tanto aturdido:
Você é o filho d’O Voador, não é?
Sim. Porquê?
Boniface enlouqueceu.
Disse aquilo numa voz de sombras e depois calou-se. Permaneceu em silêncio, estudando-me, um longo momento. Os olhos dele desmentiam a incrível juventude do rosto.
Boniface perdeu a cabeça – repetiu devagar. – O louco acreditava que O Voador o pudesse conduzir à Ilha Verde.
Porquê?
Você sabe porquê.
Porque a minha família veio de lá?
Sim, quando O Voador disse chamar-se Tucano e ser brasileiro, Boniface ficou excitadíssimo. Achou que era um sinal dos deuses. Imagine, ele vivia desde há vários anos apaixonado por essa lenda da Ilha Verde, e, então, de repente, surge um homem misterioso, caído do céu, que dizia chamar-se Tucano. Contava que a família viera do Pico da Neblina, o ponto mais alto do Brasil...
E o que há de tão importante no Pico da Neblina?
Boa-Morte sacudiu a cabeça, incrédulo:
Você não sabe mesmo?!
Não.
Certo. Então eu conto. Mas vocês me deixam partir. Me entregam uma balsa com alimentos e material de pesca, e me deixam partir.
Não. Você irá ser julgado por um tribunal competente, e depois terá de cumprir a pena a que for condenado. Não posso fazer nada quanto a isso.
Resposta errada, mano.
O que aconteceu a Luanda?
Não sei mesmo – suspirou. – Já falei, Boniface enlouqueceu. Eu devia ter fugido assim que ele desceu para a ilha. Pensei em fazer isso, mas não tive coragem.
Interroguei os restantes prisioneiros. A maioria eram imigrantes ilegais, muito jovens, recrutados à força por Boniface. Fiquei com pena deles. O mais novo, um chinês de dezoito anos, ao qual a mãe dera o nome de Brad Pitt, em homenagem ao famoso ator do início do século, assegurou-me que o chefe dos piratas fora à Ilha Verde procurar uma raiz.
Uma raiz?! – irritei-me. – Que raiz vale tanto esforço?
Brad Pitt baixou a voz:
Não é uma raiz qualquer. É um medicamento.
Um medicamento?! Para que efeito?
Não sei ao certo. Falam muita coisa. Alguns dizem que melhora os sonhos, ou que os torna reais. Dizem também que prolonga a vida. Sei lá, já ouvi tanta coisa.
Não consegui arrancar-lhe mais nada. Pedi para falar de novo com Boa-Morte. Este mostrou-se inflexível:
Nada, meu mano. Só falo quando estiver livre. Não sou canário, para cantar na gaiola.
Sibongile queria retornar à Ilha Verde. Aimée também. Decidimos deixar Vera Regina no Paris, a cargo dos pais de Aimée, e voltámos a enfrentar as nuvens. Partimos, dessa vez, muito bem equipados. Levávamos provisões suficientes para dois meses e equipamento de navegação avançado, oferta generosa do governo do Paris. Patrick juntou-se a nós na Montparnasse:
Somos a esquadrilha dos sonhadores – anunciou, eufórico. – Um bando de nefelibatas em busca de um pouco de chão.
Já não nos custou tanto deixar para trás a Estrada das Luzes. Íamos preparados para enfrentar o silêncio. Ao décimo quinto dia, de manhã muito cedo, vi erguer-se, ao longe, um enorme cumulonimbus. Os cumulonimbus foram desde sempre encarados com algum terror reverencial pela humanidade. A altura destas nuvens pode ultrapassar os dezoito mil metros. No seu interior concentra-se uma quantidade de energia capaz de exceder em dez vezes a libertada pela bomba atómica que arrasou Hiroxima. Aquele era um exemplar particularmente poderoso e elegante de um cumulonimbus capillatus incus. Assim, a uma distância considerável, parecia um deus indolente, gozando, no terraço, o fresco da manhã. Eu sabia, contudo, que, se não conseguíssemos afastar-nos rapidamente do seu caminho, em breve o veríamos agitar-se, colérico, trovejando, disparando raios, e então seria tarde de mais. Acordei toda a gente. Patrick não escondeu o susto:
Felizmente foi de manhã, e tu estavas acordado. Um encontro com um desastre destes, à noite, poderia ser-nos fatal.
Não respondi. Voltei a lembrar-me da noite em que o meu pai desaparecera. Luanda deixara-se apresar por uma nuvem semelhante à que agora nos perseguia. Quando demos conta, já fortes rajadas de vento lançavam as balsas umas de encontro às outras. Veio depois uma violenta chuva de granizo e, logo a seguir, estalaram os primeiros relâmpagos. Com o rosto colado às janelas da biblioteca da Maianga, na companhia do meu primo Luan, testemunhei o pânico dos adultos, correndo ao longo das redes, num esforço desesperado para consolidar cabos e desenredar outros. Os disparos de luz congelavam as silhuetas. Algumas pessoas pareciam flutuar, como grandes aves perplexas, presas pelo arnês. Outras dançavam aos pares, rodopiavam e depois caíam de costas na rede.
Maravilha! – murmurou Luan. – Vamos sair?
Não podemos.
Claro que podemos. Ninguém dará por nós.
Saímos. O ar era uma matéria viva, exaltada, que se apossava de nós e nos enchia de força. Luan abriu os braços, como se fossem asas:
Parece uma festa!
Mas, claro, não era uma festa. Era um desastre. Um fortíssimo clarão abriu o céu e, por um rápido instante, cegou-nos a todos. Mal recuperei a vista apercebi-me de que um dos balões ardia, a cerca de duzentos metros de onde nos encontrávamos. Em poucos segundos o incêndio poderia propagar-se a toda a aldeia. Vi o meu pai correr, com um extintor na mão, libertar o cabo do arnês e saltar para o convés da balsa. O fogo crescia, inflamado pela fúria do vento. Júlio desapareceu no meio das chamas. Reapareceu, instantes depois, com uma criança ao colo. Prendeu-a com um cabo e lançou-a para os braços de outro homem, na rede. A seguir cortou, com uma faca, a amarra que prendia a balsa e saltou. Desgraçadamente, um súbito golpe de vento afastou o balão, e o meu pai mergulhou no vazio.
Sacudi da memória aquela tarde infeliz e voltei a encarar o cumulonimbos. Era uma nuvem belíssima. Aimée leu-me o pensamento:
Custa a crer que a beleza possa ser tão terrível. Preferimos acreditar que o mal é sempre feio.
Não havendo possibilidade de passar por cima da nuvem (apenas os maiores dirigíveis conseguem subir tão alto) decidimos recuar. A Montparnasse, pequena, e muito veloz, adiantou-se. A Nova Esperança, todavia, não parecia ter fôlego suficiente e foi ficando para trás. Abrandei a marcha, aproximando-me dela. Perguntei pelo megafone, a Mang e a Sibongile, se não seria melhor passarem para a nossa balsa. Sibongile recusou. Aimée olhou-me, assustada:
O que fazemos?!
Avançamos. Temos de avançar.
O céu escurecia à nossa volta. O cumulonimbus transformara-se numa parede negra e convulsa. Contudo, quando parecia prestes a alcançar-nos, abrandou, mudando de direção. Minutos depois apenas sobrava dele uma chuva esparsa. Voltámos a reunir as balsas. A tempestade afastara-nos da rota. Mang e Patrick passaram para a Maianga. Ficámos a tarde inteira na cabina de pilotagem, debruçados sobre enormes mapas, fazendo e refazendo cálculos. O Pico da Neblina não deveria estar muito longe.
Patrick permaneceu acordado a noite inteira para o caso de surgir um outro cumulonimbus. Na escuridão, como ele insiste em repetir, é melhor confiar num cego. Na manhã seguinte estendeu-se a dormir na minha biblioteca e eu substituí-o. O céu despertara muito claro. A intervalos era possível ver o mar. Passavam poucos minutos das onze horas quando me pareceu que alguma coisa se movia, lá em baixo. As águas haviam mudado de cor. Chamei Aimée. Estudámos, com os binóculos, os diferentes tons de azul, entrecortados, aqui e ali, por largas manchas verdes. Decidi baixar a balsa. A uns cem metros, distinguimos uma série de ilhéus flutuantes, formados por algas e detritos vários. Gaivotas irromperam do nevoeiro baixo e vieram saudar-nos aos gritos. Fazia calor, mas não tanto quanto seria de esperar. Então, de súbito, vimos emergir, a bombordo, um alto e redondo cume de pedra. Aimée abraçou-se a mim, e comecei a chorar. Compreendi, naquele instante, a paixão com que os mais velhos se referem à terra.

José Eduardo Agualusa, in A Vida no Céu

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