terça-feira, 18 de novembro de 2025

Capítulo 8 – Vergonha silenciosa e secreta




A invisibilidade do combo formado pela negritude e pela pobreza é algo brutal.

A escola era a nossa salvação. Lidávamos com tudo nos destacando academicamente. Amávamos aprender e não queríamos acabar na mesma situação que nossos pais, sem saber como conseguiríamos a próxima refeição.
A escola também era o nosso paraíso. Ficávamos até tarde participando de atividades esportivas, musicais, teatrais e de reforço. Minhas irmãs e eu nos tornamos pessoas que superavam as expectativas, mesmo em áreas que não nos interessavam.
Deloris e Dianne chegaram à Sociedade de Honra de Rhode Island e à Sociedade de Honra Nacional. Elas abriram o caminho para mim. Mas, na escola, eu estava sempre com sono, com fome e com vergonha. Chegava às oito da manhã e às oito e meia já estava pegando no sono. Por muitos anos, tive problemas para dormir à noite; nunca dormia a noite toda. No máximo, dormia por curtos intervalos, já cansada, porque era no meio da madrugada que muitas das brigas dos meus pais aconteciam.
Tinha sorte se conseguisse dormir duas horas direto. Éramos acordados por um grito, um berro. A única esperança, a única bênção, era a briga não durar muito. Mas às vezes os conflitos persistiam a noite inteira ou noites seguidas, por dias. Se durasse a noite toda, não dormíamos. Imagine seu pai espancando sua mãe com um pedaço de madeira, batendo com força nas costas dela, os pedidos de ajuda, os gritos de raiva e fúria. Aquele trauma me mantinha acordada à noite e me fazia adormecer durante as aulas.
Além disso, fiz xixi na cama até os 14 anos. Geralmente ia para a escola com aquele cheiro. Não ter água quente em casa certamente não ajudava. Experimente tomar banho com água gelada e, excepcionalmente, com algum sabão, no auge do inverno. Tínhamos que escolher entre comprar sabão para as roupas, sabonete ou detergente. Muitas vezes substituíamos um pelo outro de acordo com nossas necessidades. Arrastar trouxas de roupa suja por dois ou três quilômetros em temperaturas congelantes, com gelo e neve, não era fácil. E ter o dinheiro para a lavanderia era um luxo.
Então, geralmente, na noite anterior, lavávamos nossas roupas à mão com água fria e sabão e as pendurávamos para secar. Pendurávamos roupas molhadas sobre portas e cadeiras porque o varal estaria exposto à neve, chuva e/ou ar frio congelante (que petrificaria nossas roupas). No dia seguinte, elas raramente estavam secas, mas não tínhamos escolha. Vestíamos as roupas ainda molhadas e elas secavam durante o dia. Eu fedia a urina.
Minha irmã Deloris e eu frequentávamos a Cowden Street ­School, quando eu estava no quarto ano e ela no quinto. Deloris amava a escola. Ela era a aluna que ia para casa animada se tivesse uma prova nos próximos dias. Também era uma leitora voraz. Antes de entrar no sexto ano, já estava lendo livros como O morro dos ventos uivantes e as obras de Agatha Christie. E, diferentemente de mim, nunca se metia em confusão na escola, afinal, era muito respeitosa com os professores.
Um dia, Deloris chegou em casa animada com uma prova de ciên­cias. Por uma semana, só falou nisso. Naquela época, ela queria ser arqueóloga. No dia da grande prova, algo diferente estava acontecendo comigo na aula. Minha professora, que eu amava, estava me encarando. Quando eu chegava perto dela para fazer alguma pergunta, ela se afastava. Então a vi conversando com o professor da sala ao lado. Apenas uma porta separava as salas, e eles conversavam na soleira. Naquele dia, eles sussurravam e olhavam para mim.
Por fim, quando nos sentamos em círculo para ler, corri para me sentar ao lado da professora, e ela se afastou com uma expressão incomodada. Gesticulou para mim e sussurrou no meu ouvido: “Precisa dizer à sua mãe para pegar água e sabão e dar um banho em você! Seu cheiro está horrível!” Ela então me enxotou como se eu tivesse acabado de vomitar em cima dela. Fiquei sem reação.
Alguns minutos depois, fui chamada na enfermaria. Quando entrei, vi Deloris. A enfermeira ainda não tinha chegado. Deloris estava sentada diante da mesa, em choque. Obviamente tinha sido chamada pelo mesmo motivo. “Deloris! Ai, meu Deus, você acredita…”, sussurrei. Mas não cheguei a terminar a frase, porque ela me mandou calar a boca e abaixou a cabeça de novo.
A enfermeira veio e nos deu um sermão sobre as reclamações dos professores a respeito da nossa higiene. Ela perguntou como tomávamos banho. Não respondemos. Tínhamos experiência na arte de guardar segredos e nunca, nunca contávamos a ninguém o que se passava em nossa casa. Nunca! Ela então falou para nunca usarmos a mesma roupa íntima duas vezes seguidas; nos ensinou o jeito certo de tomar banho; como usar o sabão e quais áreas precisávamos lavar primeiro. Depois fomos para casa.
Muitas décadas mais tarde, mencionei esse dia para Deloris, e ela me contou suas lembranças. Disse que tinha feito a prova de ciências e tirado dez. Estava muito animada e levou a prova de volta para a mesa. Ela vinha sofrendo bullying de uma garota implacável chamada ­Maxine. Maxine olhou para a prova da minha irmã, foi até a professora e disse: “Professora, a Deloris colou.” Sem hesitar a professora chamou Deloris à mesa, pegou a prova e colocou um grande zero vermelho. Deloris ficou arrasada! Mas disse que essa professora não gostava dela por sempre tirar dez. Foi a mesma que me disse, anos depois, no segundo ano, que durante o período de escravização pessoas negras não sabiam ler nem escrever.
Eu disse a Deloris que sentia muito pelo que acontecera e por não termos ajudado. Ela respondeu: “Tudo bem, Viola. Foi naquele dia que decidi ser professora. Aquilo me arrasou de tal forma que não queria que outra criança passasse pelo que passei.”
Deloris é uma professora brilhante há 35 anos. É engraçado que, mesmo com as reclamações sobre a higiene, ninguém nunca nos perguntou sobre nosso ambiente em casa. Ninguém perguntou se estávamos bem ou se havia algo errado. Ninguém falava com a gente. Havia uma falta de interesse intencional em nós, garotinhas negras. Algumas pessoas soltavam o que chamavam de afirmações edificantes: “Trabalhe duro”; “Vá para a escola e tire boas notas”; “Seja incrível”; “Comporte-se e fique longe de confusão”. Havia uma expectativa de perfeccionismo, mas sem considerar nosso bem-estar emocional. O que isso provocou em mim foi confusão. Como alcanço o topo da montanha, se não tenho nem os equipamentos para chegar lá? As crianças são constantemente pressionadas para incentivar seu desempenho e, quando se é uma criança pobre, vítima de traumas, ninguém dá a você as ferramentas para se sair “melhor”, para “construir sua vida”.
É engraçado que eu amava tanto minha professora do quarto ano e queria muito que ela me amasse com a mesma intensidade. Por mais traumatizante que tenha sido ouvir que eu cheirava mal, sentir vergonha foi pior. Foi tão esmagador que fui para casa e fiz tudo o que a enfermeira disse. Lavei minhas roupas íntimas, minhas roupas, esfreguei minhas “partes íntimas” e embaixo dos braços. Senti orgulho por voltar limpa à escola no dia seguinte. Sentei na sala de aula com um sorriso largo e esperei que a mudança fosse notada. Mas… não foi. Nenhum dos professores que tinham reclamado nos notou depois disso. É esperado que você seja limpo, não é algo a ser celebrado. A invisibilidade do combo formado pela negritude e pela pobreza é algo brutal. Junte a isso estar com fome a droga do tempo todo e a combinação é explosiva.
Se você está com fome, não consegue se concentrar — não tem energia. O almoço da escola era nossa refeição balanceada e garantida do dia. O vale-refeição que minha família recebia no primeiro dia de cada mês bancava uma ida ao supermercado. Mas a comida logo acabava. Quando isso acontecia, minhas irmãs e eu caçávamos as famílias de amigos e entrávamos nas latas de lixo, revirando-as em busca de alimento. Eu fazia amizade com crianças cujas mães cozinhavam três refeições por dia e ia à casa delas quando possível. Uma vez, uma amiga foi à nossa casa e, quando abriu a geladeira e viu que não tinha nada, perguntou: “Vocês estão se mudando?”
Eu furtava comida. Tinha 9 anos na última vez que roubei comida de uma loja. Nesse dia, fui pega enfiando um brownie na parte da frente da calça, mas não cheguei a sair da loja com ele, porque a dona gritou para mim, me olhando como se eu não fosse nada: “Saia! Saia e não volte mais aqui!”
A vergonha me forçou a parar.
A experiência de ir para a cama com fome é algo que minhas irmãs e eu nunca vamos esquecer.
Eu fazia besteira o tempo todo. Escondia meus sentimentos — minha raiva ou dor — ou perdia a cabeça e entrava em brigas. Ia para a detenção todo dia. Respondia aos professores. Uma vez, empurrei uma professora. Eu queria atenção. Não sabia que a agitação que sentia dentro de mim era, na verdade, uma imensa ansiedade. Sentia que não me encaixava. Era um tornado de complexidade e emoções. A verdadeira eu estava presa lá dentro, como o demônio dentro de Regan em O exorcista. Quando Regan está amarrada à cama e fica se debatendo, com o corpo tomado de chagas por conta daquele demônio poderoso, a secretária da mãe entra correndo no quarto, e nitidamente as palavras “ME AJUDE” se formam na barriga dela. A doce, gentil, autêntica e precoce Regan lutando por liberdade ainda está viva. Bem… era assim que eu me sentia. Presa e possuída por forças externas bem mais poderosas que eu.
Ninguém queria beber água no bubbla’ depois de mim. Bubbla’ ou bubbler era o termo em Rhode Island para se referir a bebedouro. Meus colegas de classe sempre esperavam o momento em que a professora não estivesse olhando e sussurravam: “Eca! Eu não vou beber depois dessa preta. Você é suja.” Isso me irritava e eu me fechava. Um dia, tentei rasgar o lindo vestido amarelo de Maria, uma garota portuguesa que usava a palavra crioula com impunidade. A professora me repreendeu. Tentei explicar, mas ela disse que não havia explicação aceitável. Eu amava essa professora, a quem certa vez me ofereci para limpar o quadro depois da aula. Ela era jovem e bonita. Senti que gostava de mim. Isso, infelizmente, era uma ilusão que eu havia criado para sobreviver.
Naquele dia, assistimos a um filme sobre a história norte-americana no projetor de slides. Havia uma cena sobre escravização com fotos de pessoas negras em senzalas no Sul do país. Todos riram quando as fotos apareceram e a narração disse: “Pessoas negras ou escravizadas eram iletradas naquela época. Isso significa que não sabiam ler nem escrever.”
As crianças riram e sussurraram:
Vocês, pretos, não sabem fazer nada.
Fiquei depois da aula para fazer uma pergunta à professora. Apesar de ser “baderneira”, apesar de tê-la empurrado uma vez por acidente, por mais aterrorizada que eu estivesse enquanto esperava que todos fossem embora, em silêncio, limpei todo o quadro. Ela me agradeceu e, quando eu estava indo embora, reuni coragem para perguntar:
Professora, não é verdade, né? Isso de que as pessoas negras não sabiam ler nem escrever. Elas sabiam, não é?
Ela balançou a cabeça tristemente e respondeu:
Não. Sinto muito, querida. Elas não sabiam.
Fui embora de cabeça baixa. Ela nunca explicou para mim ou para a classe que durante a escravização era ilegal ensinar os escravizados a ler e a escrever. Era uma forma de mantê-los subjugados.
Eu procurava por algo ou alguém para me definir. Para despertar em mim amor-próprio e aceitação. Para me mostrar como viver. Para me mostrar que não havia nada de errado comigo.
Agarrei-me ao que eu tinha, a tudo o que eu tinha, num esforço coletivo com minhas irmãs mais velhas. Isso me manteve sã. Nós éramos um bando de meninas lutando, abrindo com as próprias mãos nosso caminho para fora da invisibilidade da pobreza e de um mundo onde não nos encaixávamos. O mundo era nosso inimigo. Éramos sobreviventes. Isso até que outro membro do grupo chegou. E ela precisava de uma proteção que nós não tínhamos as armas para oferecer.

Viola Davis, in Em busca de mim

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