quarta-feira, 16 de abril de 2025

Tea

Lady Millicent recebe suas amigas Agatha, Pamela e Fiona para chá na sua casa em Mayfair. O mordomo traz uma bandeja com o bule, as xícaras, o açucareiro, leite, rodelas de limão, sanduíches finos de pepino, scones e creme. Lady Millicent oferece:
MILLICENT — Tea?
TODAS — Yes. Oh yes. Lovely.
MILLICENT (servindo Agatha) — E pensar que quase ficamos sem chá...
AGATHA (assustando-se e quase derrubando a xicara) — O quê?!
MILLICENT — Vocês não souberam? Os plantadores de chá da Índia estiveram perto da falência.
PAMELA — O Times não deu nada!
MILLICENT — Foi há muito tempo. A Índia ainda era nossa. Destruímos a sua indústria de tecidos, para não competirem com a indústria inglesa, e a Índia teve que se dedicar exclusivamente à agricultura. Incentivamos os nativos a plantar chá, para nós, e ópio, para a China.
FIONA (tapando o riso malicioso com a pontas dos dedos) — Imaginem se fosse o contrário. O que você estaria nos servindo hoje, Millicent?
AGATHA — Cale-se, Fiona. Millicent, não nos deixe em suspense. O que aconteceu com os agricultores da Índia à beira da falência? Só a ideia de ficar sem chá...
MILLICENT — Foram salvos pela Coroa inglesa.
FIONA — Mas Margaret Thatcher não era contra os subsídios que premiavam a ineficiência?
AGATHA — Fiona, acho que vamos ter que jogá-la pela janela. A Coroa inglesa, na época, não era Margaret Thatcher. Era a Rainha Victoria, ou alguém parecido. Continue, Millicent.
MILLICENT — A agricultura da Índia quase faliu porque a China não queria comprar mais ópio.
PAMELA — Meu Deus, por quê?
MILLICENT — Preconceito. Estavam morrendo chineses demais. Ou alguma outra exótica razão oriental. O fato é que a Coroa forçou a China a aceitar o ópio da Índia. Foi lá, matou alguns milhares de chineses e acabou com a rebelião. Os chineses concordaram em continuar comprando ópio da Índia, que pode continuar produzindo o nosso chá. Como se sabe, não há nada para convencer as pessoas das vantagens do comércio livre como uma canhoneira, ou duas.
AGATHA (hesitando, antes de dar o primeiro gole) — Quantos chineses morreram, Millicent?
MILLICENT — Entre os que morreram das canhoneiras e os que morreram do ópio, alguns poucos milhões. Por que, Agatha querida?
AGATHA — Quero ter certeza que não tem nenhum chinês morto na minha xícara.
MILLICENT — Ora, Agatha. Com todos os goles de chá que os ingleses tomaram desde então, nossa conta de mortos na China foi saldada há muito. Não há mais chineses mortos em nosso chá.
AGATHA (tomando o primeiro gole) — Ainda bem. Sei que me fariam mal.
MILLICENT (para Pamela) — Açúcar?
PAMELA — Obrigada. Não dispenso o açúcar. Não sei como as pessoas podiam viver sem açúcar.
FIONA — Mas alguma vez não existiu açúcar?
MILLICENT — Aqui mesmo, na Inglaterra, durante muito tempo, não existia o açúcar.
FIONA — Nem para o chá?!
MILLICENT — Principalmente para o chá. Foi para assegurar o suprimento de açúcar para o chá, depois que tomamos gosto, que a cultura da cana cresceu no Novo Mundo. E foi para a cultura da cana crescer que importaram escravos da África. Pode-se dizer que a escravatura se deve ao gosto por chá com açúcar.
FIONA — De certa maneira, então, a escravatura é culpa da Pamela.
AGATHA — Por favor, Fiona. Quantos negros, Millicent?
MILLICENT — Você quer dizer, quantos negros morreram de maus-tratos e doenças para que houvesse açúcar para o nosso chá? É difícil dizer. Alguns milhões. Por que, Agatha querida?
AGATHA (continuando a tomar seu chá) — Por nada. Prefiro o meu sem açúcar.
MILLICENT (para Fiona) — Scones?
FIONA (hesitando antes de pegar um scone) — Você tem alguma história sobre os scones para contar, Millicent?
MILLICENT — Nenhuma, Fiona.
FIONA — Ninguém morreu para que existissem estes scones?
MILLICENT — Que ideia, Fiona. Eu mesma os fiz, e não há uma gota de sangue na minha cozinha.

Luís Fernando Veríssimo, em Diálogos Impossíveis

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