Tia
Gracinha, cujo nome ficou no grupo escolar Graça Guardiã, de
Cachoeiro de Itapemirim, era irmã de minha avó paterna, mas tão
mais moça, que a tratava de mãe. Eu era certamente menino, quando
ela e o tio Guardiã — um simpático espanhol de cavanhaque, que
fora piloto em sua terra — saíram de Cachoeiro para o Rio. Assim,
tenho do colégio de Tia Gracinha uma recordação em que não sei o
que é lembrança mesmo e lembrança de conversas que ouvi menino.
Lembro-me,
sobretudo, do pomar e do jardim do colégio, e imagino ver moças de
roupas antigas, cuidando das plantas. O colégio era um internato de
moças. Elas não aprendiam datilografia nem taquigrafia, pois o
tempo era de pouca máquina e nenhuma pressa. Moças não trabalhavam
fora. As famílias de Cachoeiro e de muitas outras cidades do
Espírito Santo mandavam suas adolescentes para ali; muitas eram
filhas de fazendeiros. Recebiam instrução geral, uma espécie de
curso primário reforçado, o mais eram prendas domésticas.
Trabalhos caseiros e graças especiais: bordados, jardinagem,
francês, piano...
A
carreira de toda a moça era casar, e no colégio de Tia Gracinha
elas aprendiam boas maneiras. Levavam depois, para as casas de seus
pais e seus maridos, uma porção de noções úteis de higiene e de
trabalhos domésticos, e muitas finuras que lhes davam certa
superioridade sobre os homens de seu tempo. Pequenas etiquetas que
elas iam impondo suavemente, e transmitiam às filhas. Muitas
centenas de lares ganharam, graças ao colégio de Tia Gracinha, a
melhoria burguesa desses costumes mais finos. Eu avalio a educação
de Tia Gracinha pela delicadeza de duas de suas alunas — minha
saudosa irmã e madrinha Carmozina, e minha prima Noemita.
Tudo
isto será risível aos olhos das moças de hoje; mas a verdade é
que o colégio de Tia Gracinha dava às moças de então a educação
de que elas precisavam para viver sua vida. Não apenas o essencial,
mas muito do que, sendo supérfluo e superior ao ambiente, era, por
isto mesmo, de certo modo, funcional — pois a função do colégio
era uma certa elevação espiritual do meio a que servia. Tia
Gracinha era bem o que se podia chamar uma educadora.
Lembro-a
na casa de Vila Isabel, onde vivia com o marido, a filha, o genro, os
netos, a irmã Ana, que ela chamava de mãe, e que para nós era a
Vovô Donana, e a sogra de idade imemorial, que, à força de ser
Abuelita, acabara sendo, para nós todos, Vovó Bolita. Tinha
nostalgia, talvez, de seu tempo de educadora, de seu belo colégio
com pomar às margens do Córrego Amarelo, afluente do Itapemirim;
lembro-me de que uma vez me pediu algum livro que explicasse os novos
sistemas de educação, o método de ensinar a ler sem soletrar — e
me fez esta indagação a que eu jamais poderia responder: “E
piano, como é que se ensina piano, hoje?”
Gostava
de seu piano. O saudoso Mário Azevedo sabia tocar várias de suas
composições, feitas lá em Cachoeiro; lembro-me de uma pequena
valsa cheia de graça, finura e melancolia — parecida com a alma de
Tia Gracinha.
Rubem Braga, em Recado de primavera
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