segunda-feira, 28 de outubro de 2024

Mau sangue


Tenho dos ancestrais gauleses olhos azuis-claros, crânio estreito, imperícia na luta. Minha vestimenta acho tão bárbara quanto a deles, mas não emplastro o cabelo.
Os gauleses eram os carneadores de animais e queimadores de campo mais ineptos da época.
Tenho deles a idolatria e o amor do sacrilégio. Oh, todos os vícios, cólera, luxúria – magnífica, a luxúria –, sobretudo a mentira e a preguiça.
Detesto todos os ofícios. Chefes e operários, tudo campônios, ignóbeis. A mão na pena vale a mão no arado. – Que século de mãos! Não darei nunca a minha. Depois, ser doméstico leva longe demais. A honestidade de mendigar me aflige. Os criminosos repugnam como os castrados: eu, estou intacto, e para mim é o mesmo.
Mas! quem me fez assim a língua para guiar e salvaguardar até aqui a minha preguiça? Sem me servir para viver de fato do meu corpo, mais ocioso que o sapo, tenho vivido por toda parte. Não há uma família da Europa que eu não conheça. – Refiro-me a famílias como a minha, que pegam tudo da Declaração de Direitos do Homem. – Conheci cada filho-família!
Se eu tivesse antecessores a uma altura qualquer da história da França!
Mas não, nada.
Fica evidente que fui sempre raça inferior. Não posso compreender a revolta. Minha raça só se subleva para pilhar, como os lobos com o animal que não mataram.
Lembro a história da França, filha mais velha da Igreja. Rústico, eu teria feito a viagem à terra santa; tenho na memória as estradas pelas planícies suávias, as vistas de Bizâncio, as muralhas de Solimão; o culto de Maria, o enternecimento sobre o crucificado se erguem em mim entre mil magias profanas. – Estou sentado, leproso, entre vasos quebrados e urtigas, ao pé duma parede descascada pelo sol. Mais tarde, cavaleiro germânico, ia bivacar sob as noites da Alemanha.
Ah! ainda: danço o sabá numa clareira rubra, com velhas e crianças.
Não recordo além desta terra e do cristianismo. Não acabo de me rever no passado. Mas sempre só, sem família; que língua eu falava mesmo? Nunca me vejo nas recomendações do Cristo; nem nas dos Proprietários – representantes do Cristo.
Fosse quem fosse no século passado, não dou comigo senão hoje. Nada mais de vagabundos nem de guerras vagas. A raça inferior cobriu tudo – o povo, como se diz, a razão; a nação e a ciência.
Oh, a ciência! Tudo foi retomado, para o corpo e para a alma; o viático – temos a medicina e a filosofia, os remédios das comadres e as canções populares musicadas. E as diversões dos príncipes e os jogos que proibiam! Geografia, cosmografia, mecânica, química!…
A ciência, a nova nobreza! O progresso. O mundo anda! Por que não giraria?É a visão dos números. Vamos ao Espírito. É certíssimo, oracular, o que digo. Compreendo, e sem saber me explicar sem palavras pagãs, preferia calar.
O sangue pagão retorna! Se o Espírito está próximo, por que Cristo não o ajuda, dando à minha alma nobreza e liberdade? Ai, o Evangelho caducou! O Evangelho! O Evangelho.
Aguardo Deus com gula. Sou de raça inferior por toda a eternidade.
Eis-me na praia provinciana. Que as cidades se acendam de noite. Minha jornada terminou, abandono a Europa. O ar marinho queimará meus pulmões, climas ignotos me curtirão. Nadar, desbastar verdes, caçar, sobretudo fumar; tomar bebidas fortes como metal fundindo, como faziam nossos caros ancestrais em volta do fogo.
Voltarei, com membros de ferro, a pele sombria, olhar furioso; pela máscara, me julgarão raça forte. Terei dinheiro; vou ser ocioso e brutal. As mulheres cuidam dos ferozes doentes de volta dos países tropicais. Entrarei nos negócios políticos. Serei salvo.
Por ora sou maldito, tenho horror da pátria. O melhor é um sono bem bêbado na praia.
A gente não parte. Retoma o caminho, e carregando meu vício, o vício que lançou raízes de dor ao meu lado desde a idade da razão, e sobe ao céu, me bate, me derruba, me arrasta.
A última inocência e a última timidez. Está dito. Não levar ao mundo meus dissabores e minhas traições.
Vamos! O ir, o fardo, o deserto, o tédio e a cólera.
A quem me alugar? Que animal é preciso que adore? Que santa imagem nos agredirá? Que corações partirei? Que mentira devo sustentar? Em que ânimo avançar?
Antes de tudo, acautelar-se com a justiça. A dura vida, o simples embrutecimento; levantar, com a mão seca, a tampa do caixão, sentar, se asfixiar. Assim nada de velhice nem de perigos: o terror não é francês.
Ah! estou tão abandonado que ofereço a não importa que imagem divina os impulsos para a perfeição.
Ó minha abnegação, ó minha maravilhosa caridade! aqui na terra, no entanto.
De profundis Domine, estou aparvalhado!
Em pequeno, admirava o condenado intratável sempre nas galés; visitava albergues e quartos mobiliados que ele consagrara por ter estado ali; via com sua mente o céu azul e o trabalho florido do campo; farejava sua fatalidade nas cidades. Tinha mais força que um santo, mais bom-senso que um viajante e ele, só ele! por testemunha de sua glória e motivação.Nas estradas, por noites de inverno, sem morada, sem um abrigo, sem pão, uma voz comprimia meu coração gelado: “Fraqueza ou força: está aí, é força. Não sabes nem onde vais nem por que vais, passas por tudo, respondes a tudo. Não te matarão mais, por já seres cadáver”. De manhã tinha o olhar tão perdido e o aspecto tão morto que os que encontrava teriam podido não me ver.
Nas cidades, o barro me parecia de repente vermelho e negro, como um espelho quando o lampião é removido no quarto vizinho, como um tesouro na floresta! Boa sorte, exclamava e via um mar de chamas e de fumos no céu; e, à esquerda, à direita, todas as riquezas em labaredas como um bilhão de centelhas.
Mas a orgia e a camaradagem das mulheres me eram proibidas. Nem mesmo um companheiro. Via-me diante de uma multidão exasperada, frente ao pelotão de execução, chorando do infortúnio que teriam podido entender, e perdoando! Como Joana d’Arc! “Padres, professores, advogados, enganam-se entregando-me à justiça. Nunca fui deste povo, nunca fui cristão; sou da espécie que cantava no suplício; não conheço as leis; não tenho senso moral, sou um tosco: se enganam...”
Sim, tenho a vista fechada à vossa luz. Sou um animal, um negro. Mas posso ser salvo. Vós sois falsos negros, vós, maniáticos, irascíveis, avarentos. Comerciante, és negro; magistrado, és negro; general, és negro; imperador, velha sarna, és negro: bebeste o vinho não tributado da fábrica de Satã. – Esta gente está inspirada pela febre e o câncer. Doentes e velhos são tão respeitáveis que pedem para ser fervidos. – O mais astuto é deixar este continente, onde a loucura corre para fornecer reféns a esses miseráveis. Entro no verdadeiro reino dos filhos de Cam(1).
Conheço ainda a natureza? Conheço a mim mesmo? – Chega de palavras. Sepulto os mortos no meu ventre. Gritos, tambor, dança, dança, dança! Não vejo a hora em que, ao desembarcarem os brancos, cairei no nada.
Fome, sede, gritos, dança, dança, dança, dança!
Os brancos desembarcaram. O canhão! Cumpre se submeter ao batismo, se vestir, trabalhar Recebi no coração o golpe da graça. Ah! não tinha previsto isso.
Não fiz o mal. Os dias me serão leves, o arrependimento, poupado. Não terei as torturas da alma quase morta no bem, de onde sobe a luz severa como dos círios fúnebres. A sorte do filho-família, prematuro caixão coberto de límpidas lágrimas. Sem dúvida a devassidão é torpe, o vício é torpe; é de jogar fora a podridão. Mas o relógio não conseguirá dar senão a hora da pura dor! Vou ser arrebatado como uma criança, para brincar de paraíso, esquecido de toda a desgraça!
Rápido! existem outras vidas? – O sono na riqueza é impossível. A riqueza sempre foi bem público. Só o amor divino outorga as chaves do conhecimento. Vejo que a natureza não é um espetáculo de bondade. Adeus, quimeras, ideais, erros.
O canto sensato dos anjos se ergue do navio salvador: é o amor divino. – Dois amores! posso morrer do amor terrestre, morrer de devotamento. Abandonei almas cuja pena aumentou com a minha partida! Me escolheste entre os náufragos. Os que ficaram não são meus amigos?
Salvai-os!
Nasce-me a razão. O mundo é bom. Abençoarei a vida. Amarei meus irmãos. Não são mais promessas de infância. Nem a esperança de escapar à velhice e à morte. Deus faz a minha força, e eu louvo Deus.
O tédio já não é meu amor. As raivas, as farras, a loucura, de que sei todos os ímpetos e os desastres –, larguei meu fardo inteiro. Vejamos sem vertigem a medida da minha inocência.
Não serei mais capaz de pedir o reconforto de uma flagelação. Não me creio indo para um casamento com Jesus Cristo por sogro.
Não sou prisioneiro da minha razão. Disse: Deus. Quero a liberdade na salvação: como obtê-la? Os gostos frívolos me deixaram. Não é mais necessária a devoção nem o amor divino. Não sinto falta da moda dos corações sensíveis. Cada um tem sua razão, desprezo e caridade: mantenho o lugar no topo dessa angélica escada de bom-senso.
Quanto à felicidade estabelecida, doméstica ou não... não, não posso. Sou dissipado demais, fraco demais. A vida floresce pelo trabalho, velha verdade: eu, minha vida não é tão pesada, se alça e flutua longe acima da ação, essa apreciada exigência do mundo.
Como eu me torno mulher velha, sem coragem de amar a morte!
Se Deus me concedesse a calma celeste, aérea, a prece, como aos antigos santos – os santos! uns fortes! os anacoretas, artistas como não há mais!
Farsa permanente! Minha inocência me fará chorar. A vida é a farsa a levar por todos.
Basta! Eis a punição. – Marchar!
Ah! Os pulmões ardem, as fontes pulsam! A noite me passa pelos olhos, neste sol! O coração... os membros…
Onde vamos? ao combate? Sou débil! Os outros avançam. As ferramentas, as armas... o tempo!…
Fogo! fogo em mim! Aqui! ou me rendo. – Covardes! – Mato-me! Me jogo nas patas dos cavalos!
Ah!…
Me acostumarei.
Essa seria a maneira francesa, a senda da honra!

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Nota:
(1) Cam ou Cão, segundo filho de Noé. Seus descendentes, segundo a história sagrada, formaram a raça negra. (N.T.).

Arthur Rimbaud, em Uma temporada no inferno seguido de Correspondência

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