quarta-feira, 10 de julho de 2024

Um dia

Brock, o chefe de seção, estava sempre escarafunchando o cu com os dedos, usando a mão esquerda. Sofria de um caso grave de hemorroidas.
Tom percebeu isso ao longo do dia de trabalho.
Brock estivera na sua cola por meses. Aqueles olhos redondos e sem vida pareciam estar sempre à espreita de Tom. E então Tom acabou notando a mão esquerda, enfiada no cu, escarafunchando.
E Brock estava realmente na sua cola.
Tom executava seu trabalho tão bem quanto os outros. Talvez não mostrasse exatamente o mesmo entusiasmo dos demais, mas cumpria com suas obrigações.
Ainda assim, Brock não deixava de persegui-lo, fazendo comentários, despejando sugestões inúteis.
Brock era parente do dono da loja e um posto lhe fora arranjado: chefe de seção.
Naquele dia, Tom terminara de envolver o dispositivo de luz num pacote oblongo de um metro de comprimento e o depositara na pilha que estava atrás da sua mesa de trabalho. Voltou-se para pegar um novo conjunto na linha de montagem.
Brock estava parado à sua frente.
Quero falar com você, Tom…
Brock era alto e magro. Seu corpo se inclinava para frente a partir da cintura. A cabeça estava sempre curvada, como se pendurada em seu pescoço longo e esguio. A boca ficava sempre aberta. Seu nariz era bastante proeminente, com narinas muito grandes. Os pés eram grandes e desajeitados. As calças ficavam frouxas em seu corpo magricelo.
Tom, você não está fazendo seu trabalho.
Estou mantendo a média de produção. Do que você está falando?
Não acho que você esteja empacotando direito. É preciso usar mais fita. Tivemos alguns problemas de quebra de materiais e estamos querendo resolver isso.
Por que vocês não colocam as iniciais de cada empacotador nas caixas? Assim, se houver algum estrago por causa de mau acondicionamento, vocês poderão chegar ao culpado.
Quem deve pensar por aqui sou eu, Tom. Esse é o meu trabalho.
Claro.
Venha cá. Quero que você observe como o Roosevelt faz os pacotes.
Foram até a mesa do Roosevelt.
Roosevelt estava no trabalho havia treze anos.
Ficaram observando Roosevelt embalar os dispositivos de luz.
Vê como ele faz? – perguntou Brock.
Bem, sim…
O que eu quero dizer é o seguinte: veja como ele faz o empacotamento... ele ergue e deixa cair lá dentro... é como tocar piano.
Mas desse jeito ele não está protegendo o dispositivo…
Claro que está. Ele o está acomodando, não consegue ver?
Tom discretamente inspirou e expirou.
Tudo bem, Brock, está bem acomodado…
Faça como ele…
Brock girou a mão na mão esquerda e a cravou lá dentro.
A propósito, sua linha de montagem está atrasada…
Claro. Você estava falando comigo.
Isso é problema seu. Vai ter que recuperar agora.
Brock enfiou mais uma vez os dedos e depois se afastou.
Roosevelt ria em silêncio.
Acomode, filho da puta!
Tom riu.
Quanta merda será que um cara tem que aguentar apenas para se manter vivo?
Muita – veio a resposta –, e nunca para…

Tom voltou para sua mesa e conseguiu recuperar o prejuízo. E quando Brock olhava para ele, empacotava com a técnica da “acomodação”. E Brock sempre parecia estar de olho nele.

Por fim, chegou a hora do almoço, trinta minutos de intervalo. Mas para muitos dos trabalhadores a hora do almoço não significava fazer uma refeição, mas sim descer até a vila e entornar garrafas e mais garrafas de cerveja, preparando-se para enfrentar o turno da tarde.
Alguns dos caras as misturavam com anfetaminas. Outros com barbitúricos. Muitos com anfetaminas e barbitúricos, levando tudo goela abaixo com a cerveja.
Do lado de fora da fábrica, no estacionamento, havia mais gente, sentada no interior de carros velhos, reunida em diferentes grupos. Os mexicanos ficavam em um e os negros em outro, e, às vezes, ao contrário do que acontecia nos presídios, eles se misturavam. Não havia muitos brancos, apenas alguns sulistas, sempre silenciosos. Mas Tom gostava de toda a rapaziada.
O único problema no lugar era o Brock.

Durante aquele almoço, Tom estava em seu carro com Ramon.
Ramon abriu a mão e lhe mostrou um enorme comprimido amarelo. Parecia uma bala quebra-queixo.
Ei, cara, experimente isto. Você vai ficar totalmente na paz. Quatro ou cinco horas parecem cinco minutos. E você vai se sentir FORTE, nada fará você cansar…
Obrigado, Ramon, mas eu já estou na maior merda.
Mas isso aqui é justamente para tirar você dessa merda, sacou?
Tom não respondeu.
Beleza – disse Ramon –, eu já tinha tomado o meu, mas fico com o seu também!
Colocou o comprimido na boca, ergueu a garrafa de cerveja e tomou um bom gole. Tom ficou olhando aquele comprimido gigantesco, dava para vê-lo descer pela garganta de Ramon, até que enfim foi engolido.
Ramon se virou devagar na direção de Tom e sorriu:
Veja, a porra do negócio nem chegou ao meu estômago e já estou me sentindo melhor!
Tom riu.
Ramon tomou mais um gole de cerveja, depois acendeu um cigarro. Para um homem que supostamente estava se sentindo superbem ele parecia um tanto sério.
Sabe, cara, sou um homem de merda... não posso nem dizer que sou homem... Olha só, na noite passada tentei comer a minha esposa... Ela engordou uns vinte quilos neste ano... Preciso me embebedar para conseguir... Bombei e bombei, cara, e nada... O pior de tudo, fiquei com pena dela... Disse que era por causa do trabalho. E era por causa do trabalho, mas também não era. Ela levantou e ligou a tevê…
Ramon continuou:
Cara, tudo mudou. Há um ou dois anos, tudo era divertido entre a gente, interessante, eu e a minha esposa... Ríamos de qualquer coisa... Agora não há mais nada disso... O que a gente tinha se perdeu, não sei onde foi parar…
Sei como é isso, Ramon…
Ramon se endireitou com rapidez, como se recebesse uma mensagem:
Merda, cara, está na nossa hora!
Vamos lá!

Tom retornava da linha de montagem com um dispositivo e Brock o esperava. Brock disse:
Tudo bem, deixe isso aí. Venha comigo.
Seguiram até a linha de montagem.
E lá estava Ramon com seu pequeno avental marrom e seu bigodinho.
Fique à esquerda dele – disse Brock.
Brock ergueu a mão e a maquinaria começou a funcionar. A esteira movia os dispositivos de um metro em direção a eles em um ritmo firme mas previsível.
Ramon tinha esse enorme rolo de papel à sua frente, uma bobina aparentemente interminável de pesado papel marrom. Surgiu o primeiro dispositivo de luz vindo da linha de montagem. Ele rasgou um pedaço de papel, abriu-o sobre a mesa e em seguida colocou o dispositivo de luz sobre ele. Dobrou o papel ao meio, prendendo-o com fita adesiva. Depois dobrou as pontas em triângulo, primeiro a esquerda, depois a direita, e então o dispositivo seguiu na direção de Tom.
Tom cortou um pedaço de fita adesiva e a fez deslizar com cuidado sobre o topo do dispositivo, onde o papel deveria ser selado. Então, com pedaços menores, terminou de fixar a dobra da esquerda e depois a da direita. Em seguida, ergueu o pesado dispositivo, deu meia-volta, seguiu por um corredor e o colocou direitinho num suporte de parede, onde aguardaria por um dos empacotadores. Por fim, retornou à mesa, onde outro dispositivo já vinha em sua direção.
Era o pior trabalho em toda a fábrica e todo mundo sabia disso.
Agora você vai trabalhar com o Ramon, Tom…
Brock se afastou. Não havia necessidade alguma de vigiá-lo: se Tom não executasse a função com propriedade, a linha de montagem inteira pararia.
Ninguém aguentava muito tempo como segundo de Ramon.– Sabia que você ia precisar do amarelão – disse Ramon com um sorriso.
Os dispositivos se moviam sem parar na direção deles. Tom cortava metros e mais metros de fita adesiva da máquina à sua frente. Era uma fita reluzente, grossa e pegajosa. Esforçava-se ao máximo para manter o acelerado ritmo de trabalho, mas, para acompanhar Ramon, algumas precauções tinham de ser eliminadas: a ponta cortante da máquina de fita adesiva acabava por provocar, ocasionalmente, cortes longos e profundos em suas mãos. Os cortes eram praticamente invisíveis e quase nunca sangravam, mas, ao olhar para os dedos e a palma, podia ver as linhas brilhantes e vermelhas na pele. Não havia nenhuma pausa. Os dispositivos pareciam se mover cada vez mais rápido e a cada momento se tornavam mais e mais pesados.
Caralho – disse Tom –, vou ter que desistir. Acho que até dormir no banco da praça é melhor.
Claro – falou Ramon –, claro, qualquer coisa é melhor do que essa merda…
Ramon trabalhava com um sorriso fixo e insano no rosto, negando a impossibilidade daquilo tudo. E então a maquinaria parou, como ocorria de vez em quando.
Que dádiva dos deuses foi aquilo!
Alguma parte havia enguiçado, superaquecido. Sem esses colapsos das máquinas, muitos dos trabalhadores não aguentariam. Durante essas pausas de dois ou três minutos, eles conseguiam reorganizar seus sentidos e suas almas. Quase.
Os mecânicos lutavam com energia para encontrar a causa da falha.
Tom espichou os olhos para as garotas mexicanas que trabalhavam na linha de montagem. Para ele, elas eram todas lindas. Desperdiçavam o seu tempo, entregavam-se a uma vida tola e marcada pela rotina do trabalho, mas ainda assim mantinham alguma coisa em si, alguma coisa não identificável. Boa parte delas usava pequenas fitas nos cabelos: azuis, amarelas, verdes, vermelhas... E faziam piadas entre elas e riam o tempo todo. Mostravam uma coragem enorme. Seus olhos conheciam alguma coisa da vida.
Os mecânicos, no entanto, eram bons, muito bons, e a maquinaria já voltava a funcionar. Os dispositivos de luz se moviam outra vez na direção de Tom e Ramon. Todos estavam de novo a soldo da Companhia Sunray.
E depois de certo tempo Tom ficou tão cansado que há muito já não se poderia mais chamar cansaço o que sentia, era como estar bêbado, era como estar enlouquecendo, era como estar bêbado e louco de uma só vez.
Ao aplicar mais um pedaço de fita adesiva em um dispositivo de luz, ele gritou:
SUNRAY!
Talvez tivesse sido o tom, talvez o momento do grito. Seja como for, todos começaram a rir, as mexicanas, os empacotadores, os mecânicos, mesmo o velho que se ocupava de lubrificar e conferir a maquinaria, todos riam. Loucura total.
Brock se aproximou.
O que está acontecendo? – perguntou.
Ele ficou em silêncio.
Os dispositivos iam e vinham; os trabalhadores permaneciam.

Então, de alguma maneira, como o despertar de um pesadelo, o dia terminou. Foram até o painel apanhar seus cartões, esperaram na fila para bater o relógio ponto.
Tom bateu o ponto, colocou o cartão de volta no painel e seguiu em direção a seu carro. Deu a partida e ganhou a rua, pensando: “Espero que ninguém atravesse o meu caminho, estou tão fraco que acho que não consigo nem pisar no freio”.
Tom dirigia com a gasolina no vermelho. Estava cansado demais para parar num posto.
Deu um jeito de estacionar, chegou até a porta, abriu-a e entrou.
A primeira coisa que viu foi Helena, sua esposa. Vestia uma camisola suja e frouxa, estava estirada no sofá, a cabeça sobre um travesseiro. Sua boca estava aberta, ela roncava. Tinha uma boca bastante redonda e seu ronco era uma mistura de cuspida e engasgo, como se não pudesse se decidir entre cuspir o que lhe restava de vida ou engolir.
Era uma mulher infeliz. Sentia que sua vida era incompleta.
Uma garrafa de meio litro de gim estava sobre a mesa de centro. Três quartos tinham sido consumidos.
Os dois filhos de Tom, Rob e Bob, de cinco e sete anos, batiam uma bolinha de tênis contra a parede. Era a parede do lado sul da casa, a que não tinha nenhum móvel. A parede uma vez fora branca, mas agora trazia as marcas de sujeira das infinitas rebatidas das bolinhas de tênis.
Os garotos não prestaram nenhuma atenção à chegada do pai. Tinham parado de jogar a bolinha contra a parede. Discutiam agora.
EU ELIMINEI VOCÊ!
NÃO, TEM QUE SER QUATRO BOLAS!
TRÊS, JÁ ESTÁ FORA!
QUATRO!
Ei, só um pouquinho – interveio Tom –, posso perguntar uma coisa para vocês?
Os dois pararam e o encararam quase ofendidos.
É isso aí – disse Bob por fim. Ele era o garoto de sete anos.
Como vocês conseguem jogar beisebol batendo uma bolinha de tênis contra a parede?
Olharam para Tom, mas logo o ignoraram.
TRÊS, ESTÁ FORA!
NÃO, SÓ NA BOLA QUATRO!
Tom seguiu até a cozinha. Havia uma panela branca no fogão. Uma fumaça negra se erguia de seu interior. Tom levantou a tampa. O fundo estava enegrecido, com batatas, cenouras e pedaços de carne, tudo queimado. Tom fechou a panela e desligou o fogo.
Avançou até a geladeira. Havia uma latinha de cerveja ali. Pegou e abriu, tomou um gole.
O som da bolinha de tênis contra a parede recomeçava.
Em seguida um outro som: Helena. Ela havia trombado em alguma coisa. E agora estava ali, de pé, na cozinha. Na mão direita segurava a garrafinha de gim.
Você deve estar puto, não é?
Só queria que você desse comida para as crianças…
Você me deixa a porra de três dólares por dia. O que vou fazer com a porra de três dólares?
Podia ao menos comprar papel higiênico. Toda vez que quero limpar o cu, olho em volta e só tem um rolo vazio ali.
Ei, uma mulher também tem os seus problemas! COMO VOCÊ ACHA QUE EU VIVO? Todo dia você sai para o mundo, você sai e vê como é a vida lá fora! Eu tenho que ficar sentada aqui! Não sabe o que é ter de aguentar isso um dia depois do outro.
Pois é, tem isso…
Helena tomou um gole de gim.
Você sabe que eu amo você, Tommy, e que quando você está infeliz isso me machuca, machuca de verdade, aqui no peito.
Tudo bem, Helena, vamos nos sentar aqui e manter a calma.
Tom foi até a mesa e se sentou. Helena trouxe a garrafa consigo e ocupou um lugar na frente dele. Olhou-o.
Por Deus, o que houve com suas mãos?
Trabalho novo. Tenho que descobrir uma maneira de proteger minhas mãos... Uma fita adesiva, luvas de borracha... alguma coisa…
Havia terminado sua latinha.
Escute, Helena, tem mais desse gim por aí?
Sim, acho que sim…
Observou-a seguir na direção do guarda-louça, esticar o braço e apanhar uma garrafa de meio litro. Colocou-a sobre a mesa e se sentou. Tom retirou o lacre e a tampa.
Quantas destas você tem por aí?
Algumas…
Bom. Como se bebe este negócio?

Charles Bukowski, em Miscelânea septuagenária: contos & poemas

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