Brock,
o chefe de seção, estava sempre escarafunchando o cu com os dedos,
usando a mão esquerda. Sofria de um caso grave de hemorroidas.
Tom
percebeu isso ao longo do dia de trabalho.
Brock
estivera na sua cola por meses. Aqueles olhos redondos e sem vida
pareciam estar sempre à espreita de Tom. E então Tom acabou notando
a mão esquerda, enfiada no cu, escarafunchando.
E
Brock estava realmente na sua cola.
Tom
executava seu trabalho tão bem quanto os outros. Talvez não
mostrasse exatamente o mesmo entusiasmo dos demais, mas cumpria com
suas obrigações.
Ainda
assim, Brock não deixava de persegui-lo, fazendo comentários,
despejando sugestões inúteis.
Brock
era parente do dono da loja e um posto lhe fora arranjado: chefe de
seção.
Naquele
dia, Tom terminara de envolver o dispositivo de luz num pacote
oblongo de um metro de comprimento e o depositara na pilha que estava
atrás da sua mesa de trabalho. Voltou-se para pegar um novo conjunto
na linha de montagem.
Brock
estava parado à sua frente.
– Quero
falar com você, Tom…
Brock
era alto e magro. Seu corpo se inclinava para frente a partir da
cintura. A cabeça estava sempre curvada, como se pendurada em seu
pescoço longo e esguio. A boca ficava sempre aberta. Seu nariz era
bastante proeminente, com narinas muito grandes. Os pés eram grandes
e desajeitados. As calças ficavam frouxas em seu corpo magricelo.
– Tom,
você não está fazendo seu trabalho.
– Estou
mantendo a média de produção. Do que você está falando?
– Não
acho que você esteja empacotando direito. É preciso usar mais fita.
Tivemos alguns problemas de quebra de materiais e estamos querendo
resolver isso.
– Por
que vocês não colocam as iniciais de cada empacotador nas caixas?
Assim, se houver algum estrago por causa de mau acondicionamento,
vocês poderão chegar ao culpado.
– Quem
deve pensar por aqui sou eu, Tom. Esse é o meu trabalho.
– Claro.
– Venha
cá. Quero que você observe como o Roosevelt faz os pacotes.
Foram
até a mesa do Roosevelt.
Roosevelt
estava no trabalho havia treze anos.
Ficaram
observando Roosevelt embalar os dispositivos de luz.
– Vê
como ele faz? – perguntou Brock.
– Bem,
sim…
– O
que eu quero dizer é o seguinte: veja como ele faz o
empacotamento... ele ergue e deixa cair lá dentro... é como tocar
piano.
– Mas
desse jeito ele não está protegendo o dispositivo…
– Claro
que está. Ele o está acomodando, não consegue ver?
Tom
discretamente inspirou e expirou.
– Tudo
bem, Brock, está bem acomodado…
– Faça
como ele…
Brock
girou a mão na mão esquerda e a cravou lá dentro.
– A
propósito, sua linha de montagem está atrasada…
– Claro.
Você estava falando comigo.
– Isso
é problema seu. Vai ter que recuperar agora.
Brock
enfiou mais uma vez os dedos e depois se afastou.
Roosevelt
ria em silêncio.
– Acomode,
filho da puta!
Tom
riu.
– Quanta
merda será que um cara tem que aguentar apenas para se manter vivo?
– Muita
– veio a resposta –, e nunca para…
Tom
voltou para sua mesa e conseguiu recuperar o prejuízo. E quando
Brock olhava para ele, empacotava com a técnica da “acomodação”.
E Brock sempre parecia estar de olho nele.
Por
fim, chegou a hora do almoço, trinta minutos de intervalo. Mas para
muitos dos trabalhadores a hora do almoço não significava fazer uma
refeição, mas sim descer até a vila e entornar garrafas e mais
garrafas de cerveja, preparando-se para enfrentar o turno da tarde.
Alguns
dos caras as misturavam com anfetaminas. Outros com barbitúricos.
Muitos com anfetaminas e barbitúricos, levando tudo goela abaixo com
a cerveja.
Do
lado de fora da fábrica, no estacionamento, havia mais gente,
sentada no interior de carros velhos, reunida em diferentes grupos.
Os mexicanos ficavam em um e os negros em outro, e, às vezes, ao
contrário do que acontecia nos presídios, eles se misturavam. Não
havia muitos brancos, apenas alguns sulistas, sempre silenciosos. Mas
Tom gostava de toda a rapaziada.
O
único problema no lugar era o Brock.
Durante
aquele almoço, Tom estava em seu carro com Ramon.
Ramon
abriu a mão e lhe mostrou um enorme comprimido amarelo. Parecia uma
bala quebra-queixo.
– Ei,
cara, experimente isto. Você vai ficar totalmente na paz. Quatro ou
cinco horas parecem cinco minutos. E você vai se sentir FORTE, nada
fará você cansar…
– Obrigado,
Ramon, mas eu já estou na maior merda.
– Mas
isso aqui é justamente para tirar você dessa merda, sacou?
Tom
não respondeu.
– Beleza
– disse Ramon –, eu já tinha tomado o meu, mas fico com o seu
também!
Colocou
o comprimido na boca, ergueu a garrafa de cerveja e tomou um bom
gole. Tom ficou olhando aquele comprimido gigantesco, dava para vê-lo
descer pela garganta de Ramon, até que enfim foi engolido.
Ramon
se virou devagar na direção de Tom e sorriu:
– Veja,
a porra do negócio nem chegou ao meu estômago e já estou me
sentindo melhor!
Tom
riu.
Ramon
tomou mais um gole de cerveja, depois acendeu um cigarro. Para um
homem que supostamente estava se sentindo superbem ele parecia um
tanto sério.
– Sabe,
cara, sou um homem de merda... não posso nem dizer que sou homem...
Olha só, na noite passada tentei comer a minha esposa... Ela
engordou uns vinte quilos neste ano... Preciso me embebedar para
conseguir... Bombei e bombei, cara, e nada... O pior de tudo,
fiquei com pena dela... Disse que era por causa do trabalho. E
era por causa do trabalho, mas também não era. Ela levantou e ligou
a tevê…
Ramon
continuou:
– Cara,
tudo mudou. Há um ou dois anos, tudo era divertido entre a gente,
interessante, eu e a minha esposa... Ríamos de qualquer coisa...
Agora não há mais nada disso... O que a gente tinha se perdeu, não
sei onde foi parar…
– Sei
como é isso, Ramon…
Ramon
se endireitou com rapidez, como se recebesse uma mensagem:
– Merda,
cara, está na nossa hora!
– Vamos
lá!
Tom
retornava da linha de montagem com um dispositivo e Brock o esperava.
Brock disse:
– Tudo
bem, deixe isso aí. Venha comigo.
Seguiram
até a linha de montagem.
E
lá estava Ramon com seu pequeno avental marrom e seu bigodinho.
– Fique
à esquerda dele – disse Brock.
Brock
ergueu a mão e a maquinaria começou a funcionar. A esteira movia os
dispositivos de um metro em direção a eles em um ritmo firme mas
previsível.
Ramon
tinha esse enorme rolo de papel à sua frente, uma bobina
aparentemente interminável de pesado papel marrom. Surgiu o primeiro
dispositivo de luz vindo da linha de montagem. Ele rasgou um pedaço
de papel, abriu-o sobre a mesa e em seguida colocou o dispositivo de
luz sobre ele. Dobrou o papel ao meio, prendendo-o com fita adesiva.
Depois dobrou as pontas em triângulo, primeiro a esquerda, depois a
direita, e então o dispositivo seguiu na direção de Tom.
Tom
cortou um pedaço de fita adesiva e a fez deslizar com cuidado sobre
o topo do dispositivo, onde o papel deveria ser selado. Então, com
pedaços menores, terminou de fixar a dobra da esquerda e depois a da
direita. Em seguida, ergueu o pesado dispositivo, deu meia-volta,
seguiu por um corredor e o colocou direitinho num suporte de parede,
onde aguardaria por um dos empacotadores. Por fim, retornou à mesa,
onde outro dispositivo já vinha em sua direção.
Era
o pior trabalho em toda a fábrica e todo mundo sabia disso.
– Agora
você vai trabalhar com o Ramon, Tom…
Brock
se afastou. Não havia necessidade alguma de vigiá-lo: se Tom não
executasse a função com propriedade, a linha de montagem inteira
pararia.
Ninguém
aguentava muito tempo como segundo de Ramon.– Sabia que você ia
precisar do amarelão – disse Ramon com um sorriso.
Os
dispositivos se moviam sem parar na direção deles. Tom cortava
metros e mais metros de fita adesiva da máquina à sua frente. Era
uma fita reluzente, grossa e pegajosa. Esforçava-se ao máximo para
manter o acelerado ritmo de trabalho, mas, para acompanhar Ramon,
algumas precauções tinham de ser eliminadas: a ponta cortante da
máquina de fita adesiva acabava por provocar, ocasionalmente, cortes
longos e profundos em suas mãos. Os cortes eram praticamente
invisíveis e quase nunca sangravam, mas, ao olhar para os dedos e a
palma, podia ver as linhas brilhantes e vermelhas na pele. Não havia
nenhuma pausa. Os dispositivos pareciam se mover cada vez mais rápido
e a cada momento se tornavam mais e mais pesados.
– Caralho
– disse Tom –, vou ter que desistir. Acho que até dormir no
banco da praça é melhor.
– Claro
– falou Ramon –, claro, qualquer coisa é melhor do que essa
merda…
Ramon
trabalhava com um sorriso fixo e insano no rosto, negando a
impossibilidade daquilo tudo. E então a maquinaria parou, como
ocorria de vez em quando.
Que
dádiva dos deuses foi aquilo!
Alguma
parte havia enguiçado, superaquecido. Sem esses colapsos das
máquinas, muitos dos trabalhadores não aguentariam. Durante essas
pausas de dois ou três minutos, eles conseguiam reorganizar seus
sentidos e suas almas. Quase.
Os
mecânicos lutavam com energia para encontrar a causa da falha.
Tom
espichou os olhos para as garotas mexicanas que trabalhavam na linha
de montagem. Para ele, elas eram todas lindas. Desperdiçavam o seu
tempo, entregavam-se a uma vida tola e marcada pela rotina do
trabalho, mas ainda assim mantinham alguma coisa em si, alguma
coisa não identificável. Boa parte delas usava pequenas fitas nos
cabelos: azuis, amarelas, verdes, vermelhas... E faziam piadas entre
elas e riam o tempo todo. Mostravam uma coragem enorme. Seus olhos
conheciam alguma coisa da vida.
Os
mecânicos, no entanto, eram bons, muito bons, e a maquinaria já
voltava a funcionar. Os dispositivos de luz se moviam outra vez na
direção de Tom e Ramon. Todos estavam de novo a soldo da Companhia
Sunray.
E
depois de certo tempo Tom ficou tão cansado que há muito já não
se poderia mais chamar cansaço o que sentia, era como estar bêbado,
era como estar enlouquecendo, era como estar bêbado e louco de uma
só vez.
Ao
aplicar mais um pedaço de fita adesiva em um dispositivo de luz, ele
gritou:
– SUNRAY!
Talvez
tivesse sido o tom, talvez o momento do grito. Seja como for, todos
começaram a rir, as mexicanas, os empacotadores, os mecânicos,
mesmo o velho que se ocupava de lubrificar e conferir a maquinaria,
todos riam. Loucura total.
Brock
se aproximou.
– O
que está acontecendo? – perguntou.
Ele
ficou em silêncio.
Os
dispositivos iam e vinham; os trabalhadores permaneciam.
Então,
de alguma maneira, como o despertar de um pesadelo, o dia terminou.
Foram até o painel apanhar seus cartões, esperaram na fila para
bater o relógio ponto.
Tom
bateu o ponto, colocou o cartão de volta no painel e seguiu em
direção a seu carro. Deu a partida e ganhou a rua, pensando:
“Espero que ninguém atravesse o meu caminho, estou tão fraco que
acho que não consigo nem pisar no freio”.
Tom
dirigia com a gasolina no vermelho. Estava cansado demais para parar
num posto.
Deu
um jeito de estacionar, chegou até a porta, abriu-a e entrou.
A
primeira coisa que viu foi Helena, sua esposa. Vestia uma camisola
suja e frouxa, estava estirada no sofá, a cabeça sobre um
travesseiro. Sua boca estava aberta, ela roncava. Tinha uma boca
bastante redonda e seu ronco era uma mistura de cuspida e engasgo,
como se não pudesse se decidir entre cuspir o que lhe restava de
vida ou engolir.
Era
uma mulher infeliz. Sentia que sua vida era incompleta.
Uma
garrafa de meio litro de gim estava sobre a mesa de centro. Três
quartos tinham sido consumidos.
Os
dois filhos de Tom, Rob e Bob, de cinco e sete anos, batiam uma
bolinha de tênis contra a parede. Era a parede do lado sul da casa,
a que não tinha nenhum móvel. A parede uma vez fora branca, mas
agora trazia as marcas de sujeira das infinitas rebatidas das
bolinhas de tênis.
Os
garotos não prestaram nenhuma atenção à chegada do pai. Tinham
parado de jogar a bolinha contra a parede. Discutiam agora.
– EU
ELIMINEI VOCÊ!
– NÃO,
TEM QUE SER QUATRO BOLAS!
– TRÊS,
JÁ ESTÁ FORA!
– QUATRO!
– Ei,
só um pouquinho – interveio Tom –, posso perguntar uma coisa
para vocês?
Os
dois pararam e o encararam quase ofendidos.
– É
isso aí – disse Bob por fim. Ele era o garoto de sete anos.
– Como
vocês conseguem jogar beisebol batendo uma bolinha de tênis contra
a parede?
Olharam
para Tom, mas logo o ignoraram.
– TRÊS,
ESTÁ FORA!
– NÃO,
SÓ NA BOLA QUATRO!
Tom
seguiu até a cozinha. Havia uma panela branca no fogão. Uma fumaça
negra se erguia de seu interior. Tom levantou a tampa. O fundo estava
enegrecido, com batatas, cenouras e pedaços de carne, tudo queimado.
Tom fechou a panela e desligou o fogo.
Avançou
até a geladeira. Havia uma latinha de cerveja ali. Pegou e abriu,
tomou um gole.
O
som da bolinha de tênis contra a parede recomeçava.
Em
seguida um outro som: Helena. Ela havia trombado em alguma coisa. E
agora estava ali, de pé, na cozinha. Na mão direita segurava a
garrafinha de gim.
– Você
deve estar puto, não é?
– Só
queria que você desse comida para as crianças…
– Você
me deixa a porra de três dólares por dia. O que vou fazer com a
porra de três dólares?
– Podia
ao menos comprar papel higiênico. Toda vez que quero limpar o cu,
olho em volta e só tem um rolo vazio ali.
– Ei,
uma mulher também tem os seus problemas! COMO VOCÊ ACHA QUE EU
VIVO? Todo dia você sai para o mundo, você sai e vê como é a vida
lá fora! Eu tenho que ficar sentada aqui! Não sabe o que é ter de
aguentar isso um dia depois do outro.
– Pois
é, tem isso…
Helena
tomou um gole de gim.
– Você
sabe que eu amo você, Tommy, e que quando você está infeliz isso
me machuca, machuca de verdade, aqui no peito.
– Tudo
bem, Helena, vamos nos sentar aqui e manter a calma.
Tom
foi até a mesa e se sentou. Helena trouxe a garrafa consigo e ocupou
um lugar na frente dele. Olhou-o.
– Por
Deus, o que houve com suas mãos?
– Trabalho
novo. Tenho que descobrir uma maneira de proteger minhas mãos... Uma
fita adesiva, luvas de borracha... alguma coisa…
Havia
terminado sua latinha.
– Escute,
Helena, tem mais desse gim por aí?
– Sim,
acho que sim…
Observou-a
seguir na direção do guarda-louça, esticar o braço e apanhar uma
garrafa de meio litro. Colocou-a sobre a mesa e se sentou. Tom
retirou o lacre e a tampa.
– Quantas
destas você tem por aí?
– Algumas…
– Bom.
Como se bebe este negócio?
Charles Bukowski, em Miscelânea septuagenária: contos & poemas
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