sábado, 6 de julho de 2024

Carmo Emilio Gadda, o pasticciaccio



O Que Carlo Emilio Gadda tinha em mente, pondo-se a escrever, em 1946, Quer pasticciaccio brutto de via Merulana, era um romance policial mas também um romance filosófico. O enredo policial era inspirado num crime que ocorrera recentemente em Roma. O romance filosófico se baseava numa concepção enunciada desde as primeiras páginas: não se pode explicar nada se nos limitarmos a buscar uma causa para cada efeito, pois cada efeito é determinado por uma multiplicidade de causas, sendo que cada uma delas tem várias outras por trás; portanto, todo fato (um crime, por exemplo) é como um redemoinho em que convergem diversas correntes, cada uma movida por impulsos heterogêneos, nenhuma das quais pode ser negligenciada na busca da verdade.
Uma visão do mundo como “sistema de sistemas” estava exposta num caderno filosófico encontrado entre os papéis de Gadda após sua morte (Meditazione milanese). O escritor, partindo de seus filósofos preferidos, Spinoza, Leibniz, Kant, construíra um “discurso do método” pessoal. Cada elemento de um sistema é sistema por sua vez; cada sistema singular se liga a uma genealogia de sistemas; toda mudança de um elemento implica a deformação do sistema inteiro.
Mas aquilo que mais conta é como essa filosofia do conhecimento está refletida no estilo de Gadda: na linguagem, que é um denso amálgama de expressões populares e doutas, de monólogo interior e de prosa de arte, de dialetos diferentes e de citações literárias; e na composição narrativa, em que os mínimos detalhes se agigantam e acabam por ocupar todo o quadro e por esconder ou cancelar o desenho geral. Assim sucede nesse romance, em que o enredo policial pouco a pouco é esquecido: talvez estejamos justamente a ponto de descobrir quem matou e por que, mas a descrição de uma galinha e dos excrementos que esta galinha deposita no chão se torna mais importante do que a solução do mistério.
É o caldeirão fervente da vida, é a estratificação infinita da realidade; é o emaranhado inextricável do conhecimento que Gadda quer representar. Quando essa imagem de complicação universal que se reflete em cada mínimo objeto ou evento chega ao paroxismo extremo, é inútil perguntar-nos se o romance está destinado a ficar inacabado ou se poderia continuar até o infinito, abrindo novos turbilhões no interior de cada episódio. A verdadeira coisa que Gadda tinha a dizer é a superabundância congestionada dessas páginas por meio da qual toma forma um único e complexo objeto, organismo e símbolo que é a cidade de Roma.
Pois é bom dizer logo que este não quer ser apenas um romance policial e um romance filosófico, mas também um romance sobre Roma. A Cidade Eterna é a verdadeira protagonista do livro, em suas classes sociais da média burguesia aos marginais, nas vozes de sua fala dialetal (e dos vários dialetos, sobretudo meridionais, que afloram em seu melting-pot), na sua extroversão e em seu inconsciente mais turvo, uma Roma em que o presente se mistura ao passado mítico, em que Hermes ou Circe são evocados a propósito das histórias mais plebeias, em que personagens de domésticas ou de ladrúnculos se chamam Eneias, Diomedes, Ascânio, Camila, Lavínia, como os heróis e as heroínas de Virgílio. A Roma andrajosa e esganiçada do cinema neorrealista (que justamente naqueles anos vivia sua idade de ouro) adquire no livro de Gadda uma espessura cultural, histórica, mítica que o neorrealismo ignorava. E também a Roma da história da arte entra em jogo, com referências à pintura renascentista e barroca (como a página sobre os pés desnudos dos santos, de enormes hálux).
O romance de Roma, escrito por alguém que não é de Roma. De fato, Gadda era milanês e se identificava profundamente com a burguesia de sua cidade natal, cujos valores (concretude prática, eficiência técnica, princípios morais) sentia atropelados pela predominância de uma outra Itália, trapalhona, barulhenta e sem escrúpulos. Mas, mesmo se os seus contos e o romance mais autobiográfico (La cognizione del dolore) deitam raízes na sociedade e na fala dialetal de Milão, o livro que o colocou em contato com o grande público foi esse romance escrito em grande parte em dialeto romanesco, em que Roma é vista e entendida com uma participação quase fisiológica mesmo em seus aspectos infernais, de sabá diabólico. (Contudo, no período em que escreveu o Pasticciaccio, Gadda conhecia Roma só por ter vivido lá apenas alguns anos, na década de 30, quando encontrara emprego nas instalações termoelétricas do Vaticano.)
Gadda era o homem das contradições. Engenheiro eletrotécnico (exercera a profissão durante cerca de dez anos, sobretudo no exterior), buscava dominar com uma mentalidade científica e racional o seu temperamento hipersensível e ansioso, mas só fazia exasperá-lo; e desforrava na escrita sua irritabilidade, suas fobias, os paroxismos misantrópicos que na vida reprimia sob a máscara de uma urbanidade cerimoniosa de gentil-homem de outros tempos.
Considerado pela crítica como um revolucionário da forma narrativa e da linguagem, um expressionista ou um sequaz de Joyce (fama que ele teve desde o começo nos ambientes literários mais exclusivos e que se renovou quando os jovens da nova vanguarda dos anos 60 o reconheceram como seu mestre direto), era, quanto aos gostos literários pessoais, afeiçoado aos clássicos e à tradição (seu autor favorito era o calmo e sábio Manzoni); e os seus modelos na arte do romance eram Balzac e Zola. (Do realismo e naturalismo do Oitocentos possuía alguns dos dons fundamentais, como a construção das personagens e ambientes e situações por meio da fisicidade corpórea, as sensações materiais, como a degustação de um copo de vinho no almoço com que se abre esse livro.)
Ferozmente satírico em relação à sociedade de seu tempo, animado por um ódio que chegava a ser visceral por Mussolini (conforme prova o sarcasmo com que nesse livro é evocada a queixada do Duce), em política Gadda era alheio a qualquer radicalismo, um moderado homem da ordem, respeitador das leis, nostálgico da boa administração de antigamente, um bom patriota cuja experiência fundamental fora a Primeira Guerra Mundial combatida e sofrida como oficial escrupuloso, com a indignação que jamais lhe faltara contra o mal que pode ser provocado pela improvisação, pela incompetência, pelo voluntarismo. No Pasticciaccio, cuja ação se presume desenvolvida em 1927, no início da ditadura de Mussolini, Gadda não se limita a uma caricatura fácil do fascismo: analisa capilarmente que efeitos provoca sobre a administração cotidiana da justiça a falta de respeito pela divisão dos três poderes teorizada por Montesquieu (e o apelo ao autor do Esprit des lois é feito explicitamente).
Essa necessidade contínua de concretude, de individuação, esse apetite de realidade são tão fortes a ponto de criar na escritura de Gadda congestão, hipertensão, engarrafamentos. As vozes das personagens, seus pensamentos, suas sensações, os sonhos do inconsciente se misturam com a onipresença do autor, com suas explosões de sofrimento, seus sarcasmos e a densa rede de alusões culturais; como na performance de um ventríloquo, todas essas vozes se sobrepõem no mesmo discurso, às vezes na mesma frase, com mudanças de tom, modulações, falsetes. A estrutura do romance se deforma por dentro, pela excessiva riqueza da matéria representada e pela excessiva intensidade com que o autor a carrega. As dramaticidades existencial e intelectual desse processo são totalmente implícitas: a comédia, o humor, a transfiguração grotesca são os modos de expressão naturais desse homem que viveu sempre extremamente infeliz, atormentado por neuroses, pela dificuldade da relação com os outros, pela angústia da morte.
Seus projetos não contemplavam inovações formais para pôr em xeque a estrutura do romance; sonhava em construir romances sólidos com todas as regras, mas não conseguia jamais levá-los a cabo. Mantinha-os em suspenso durante anos, e se decidia a publicá-los só quando havia perdido a esperança de concluí-los. Dir-se-ia que à Cognizione del dolore e ao Pasticciaccio teriam bastado poucas páginas para chegar à conclusão do enredo. Outros romances foram desmembrados por ele em contos e não é impossível reconstruí-los juntando as várias partes.
O Pasticciaccio relata uma dupla investigação da polícia para dois fatos criminosos, um banal e o outro atroz, ocorridos no mesmo edifício no centro de Roma com poucos dias de intervalo: um roubo de joias a uma viúva em busca de consolo e o assassinato a facadas de uma senhora casada, inconsolável porque não podia ter filhos. Essa obsessão da maternidade malograda é muito importante no romance: a senhora Liliana Balducci se circundava de moças que tratava como filhas adotivas, até que por alguma razão terminava por separar-se delas. A figura de Liliana, dominante também enquanto vítima, e a atmosfera de gineceu que se estende ao redor dela abrem uma espécie de perspectiva de sombras sobre a feminilidade, misteriosa força da natureza perante a qual Gadda exprime sua perturbação em páginas cujas considerações sobre a fisiologia da mulher se ligam a metáforas geográfico-genéticas e à lenda da origem de Roma que, mediante o rapto das Sabinas, assegura a própria continuidade. O tradicional antifeminismo que reduz a mulher à função procriadora é expresso com muita crueza: por registro flaubertiano das “idées reçues” ou porque o autor também pensa assim? Para definir melhor o problema é preciso ter presentes duas circunstâncias, uma histórica e a outra psicológica, subjetiva do autor. No tempo de Mussolini, o primeiro dever dos italianos, inculcado pela propaganda oficial marteladora, era o de dar filhos à pátria; só os pais e as mães prolíficos eram considerados dignos de respeito. Em meio a essa apoteose da procriação, Gadda, solteirão oprimido por uma timidez paralisante perante qualquer presença feminina, sentia-se excluído e sofria com um sentimento ambivalente de atração e repulsa.
Atração e repulsa animam a descrição do cadáver da mulher horrendamente degolado, numa das páginas mais preciosas do livro, como um quadro do martírio de uma santa. O comissário Francesco (Ciccio) Ingravallo dedica à investigação uma participação especial, por dois motivos: primeiro, porque conhecia (e desejava) a vítima; segundo, porque é um meridional nutrido de filosofia e animado por paixão científica e sensibilidade por tudo aquilo que é humano. É ele quem teoriza a multiplicidade das causas que concorrem para determinar um efeito, e dentre tais causas (dado que suas leituras sempre incluem também Freud) compreende sempre Eros, em alguma de suas formas.
Se o comissário Ingravallo é o porta-voz filosófico do autor, existe também uma outra personagem com que Gadda se identifica em nível psicológico e poético, e é um dos inquilinos do prédio, o funcionário aposentado Angeloni, que pelo embaraço com que responde aos interrogatórios torna-se logo suspeito, não obstante seja a pessoa mais inofensiva do mundo. Angeloni, solteirão introvertido e melancólico, passeador solitário pelas ruas da velha Roma, submetido às tentações da gula e talvez também de outro gênero, tem o hábito de encomendar às salsicharias presuntos e queijos que lhe são entregues a domicílio por rapazes de calças curtas. A polícia procura um deles, provável cúmplice do furto e talvez também do assassinato. Angeloni, que evidentemente vive com medo de que lhe atribuam tendências homossexuais, cioso como é de sua respeitabilidade e de sua privacy, embrulha-se em reticências e contradições e acaba sendo preso.
Suspeitas mais graves concentram-se numa sobrinha da vítima, que deve explicar a posse de um pingente de ouro com uma pedra preciosa, um jaspe que foi substituído por uma opala, mas esta tem todo o jeito de ser uma pista falsa. Ao contrário, as investigações sobre o furto parecem reunir dados mais promissores deslocando-se da capital para as cidadezinhas dos Colli Albani (e passando à competência dos carabineiros em detrimento da polícia) à procura de um eletricista gigolô, Diomede Lanciani, que frequentara a inquieta viúva das muitas joias. Nesse ambiente provinciano voltamos a encontrar as pistas de várias moças a quem a senhora Liliana havia oferecido seus cuidados maternos. E é lá que os carabineiros encontram, escondidas num penico, as joias roubadas à viúva, além de uma que pertencera à assassinada. As descrições das joias (como já antes do pingente de ouro e de seu jaspe ou da opala) não são apenas performances de um virtuoso da escrita, mas acrescentam à realidade representada um outro nível ainda — além daquele linguístico, fonético, psicológico, fisiológico, histórico, mítico, gastronômico etc. —, um nível mineral, plutônico, de tesouros ocultos, envolvendo a história geológica e as forças da matéria inanimada na história esquálida de um crime. E é ao redor da posse das pedras preciosas que se cerram os nós da psicologia ou psicopatologia das personagens: a violenta inveja dos pobres bem como aquela que Gadda define a “psicose típica das insatisfeitas” que leva a desventurada Liliana a encher de presentes as suas protegidas.
À solução do mistério nos teria aproximado um capítulo que na primeira versão do romance (publicado em série na revista mensal Letteratura de Florença em 1946) figurava como o IV, se o autor não o tivesse eliminado para publicação em livro (edições Garzanti, 1957) justamente porque não queria revelar muito cedo suas cartas. O comissário interrogava o marido de Liliana sobre a relação que ele tivera com Virginia, uma das aspirantes a filha adotiva, e a personagem da moça ali aparecia caracterizada por tendências lésbicas (a atmosfera sáfica em torno da senhora Liliana e seu gineceu era acentuada), amoralidade, avidez por dinheiro e ambição social (tornara-se amante dessa espécie de pai adotivo para depois chantageá-lo), por rompantes de ódio violento (proferia ameaças obscuras ao cortar o assado com a faca de cozinha).
Portanto, é Virginia a assassina? Qualquer dúvida a respeito é eliminada lendo-se um inédito encontrado e publicado recentemente (Il palazzo degli ori, Turim, Einaudi, 1983). Trata-se do treatment de um filme que Gadda escreveu contemporaneamente — parece, pouco antes ou pouco depois — à primeira versão do romance, e no qual a trama inteira é desenvolvida e esclarecida em todos os detalhes. (Ficamos sabendo também que o autor do furto não é Diomede Lanciani mas Enea Retalli, que para não se deixar prender dispara contra os carabineiros e é morto.) O treatment (que não tem nada a ver com o filme que Pietro Germi extraiu do romance em 1959 e com o qual Gadda não colaborou) nunca foi tomado em consideração por produtores e diretores, e não há razão para espanto: Gadda tinha uma ideia bastante ingênua da escritura cinematográfica, à base de dissolvências contínuas para revelar os pensamentos e os bastidores. Para nós é uma leitura muito interessante como rascunho do romance, mas não produz uma verdadeira tensão nem como ação nem como psicologia.
Em suma, o problema não está no “Who’s done it?”: já nas primeiras páginas do romance está dito que o que determina o crime é o “campo de forças” que se estabelece ao redor da vítima; é a “coação ao destino” que emana da vítima, de sua situação em relação às situações dos outros, o que tece a rede de eventos; “aquele sistema de forças e de probabilidades que circunda toda criatura humana e que se costuma chamar de destino”.

Italo Calvino, em Por que ler os clássicos

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