Uma
das coisas mais desagradáveis é a evidência de nossa própria
ignorância, o que para mim se manifesta a maior parte do tempo, mas
principalmente em festinhas e reuniões. Em festinhas e reuniões eu
posso sempre ser reconhecido, mesmo por aqueles que nunca viram a
minha cara. Eu sou o de vestes frouxas, camisa para fora das calças,
copo de uísque agarrado quase convulsivamente e a aparência de
estar sofrendo uma ligeira dispnéia, que no momento presta esforçada
atenção a um senhor que explica em pormenores o mercado imobiliário
do Rio de Janeiro. Sinto a necessidade premente de intercalar um
comentário, mas só me vem à cabeça “comprar apartamento é uma
boa coisa”. É evidente que preciso de algo melhor, a fim de que
meu interlocutor não descubra que está falando com um débil
mental.
— Comprar
apartamento é uma boa coisa — digo finalmente, sem ter certeza de
que cara se faz quando se diz isso.
— Você
comprou o seu quando? — pergunta ele.
— Nunca,
nunca — respondo vagamente, esperando que ele infira que com isso
quero dizer que tenho preferência por investir na Bolsa de Nova
Iorque ou qualquer coisa assim.
— Ah
— diz ele, e eu me sinto um pouco desconfortável.
Por
essa razão também sou aquele, na festinha ou na reunião, que é
visto fingindo vasta admiração por um quadro pendurado na parede,
junto da gaiola dos passarinhos ou do aquário, ou então afetando
vivo interesse por peixes e passarinhos. Adianta pouco, porque sempre
aparece alguém para mexer na ferida.
— Ah,
gosta do Scliar, hein? — diz o alguém que, nestes casos, costuma
ser um senhor gordo, alto e de voz tonitruante.
— Sim,
sim — digo eu. — O Scliar...
— Ah,
eu também gosto muito — fala o senhor gordo, aproximando-se do
quadro com ar apreciador. — Ele tem uma sutileza estranha, eu diria
uma sutileza agressiva, você não acha?
— Acho
sim, acho. Aliás, sinceramente, eu só sabia da atividade dele como
escritor, ele é meu amigo, gosto muito, gosto muito.
O
senhor gordo me olha fulminantemente. Noto que disse alguma coisa
errada. Tomo um gole de uísque, desvio a vista para o outro lado e
passo o dedo na moldura do quadro.
— O
senhor está falando do Moacyr. Eu estou falando do Carlos. O pintor!
Metralha
o indicador em direção ao quadro, com indignação.
— Ah,
sim, claro — digo eu. — O Moacyr é gaúcho, não é? O senhor
sabe que até hoje eu não conheço Porto Alegre, mas tenho muito
amigos lá? O Moacyr...
— O
senhor me desculpe, estão me chamando ali.
— O
Moacyr é médico! — tento eu ainda, mas ele não me ouve e
desaparece pelo corredor adentro.
Restam
os passarinhos e os peixes. Como pode sempre haver um passarinho que
fale, dou preferência aos peixes e dedico algum tempo a me recuperar
do incidente scliariano fitando o aquário e agitando os pedacinhos
de gelo dentro do copo. Quem sabe posso juntar-me àquela rodinha
onde estavam discutindo futebol? Literatura nem pensar. Na outra o
papo é música popular, barra muito pesada. Com o pessoal que compra
terreninhos não posso esperar diálogo, sou de outra classe. A turma
da política não pode ser, inclusive sou o único aqui que não
chama ninguém em Brasília pelo primeiro nome. Fico assim,
ponderando essas angustiosas decisões, quando uma senhora, talvez a
dona da casa, pergunta se não quero outro uísque e aí me vê
olhando os peixes.
— Ah!
— exclama ela, encantada. — O senhor sabe que peixe é esse?
Como
se responde a uma pergunta dessas? Por que ela tem de perguntar,
ainda mais com essa cara de expectativa, essa aparência de quem vai
ficar decepcionada se eu não souber? Resolvo, finalmente, optar pelo
caminho digno. Responderei que não sei. Há um intervalo, a senhora
me espera com o pescoço espichado e aqueles olhinhos arregalados de
quem só está aguardando ouvir o que já sabe que vai ouvir.
— Tu...
tucunaré? — indago afinal, com os olhos piscando mais do que
deviam.
A
senhora fica pasma. Tucunaré? Mas se todo mundo sabe que é um
acará-bandeira! O acará-bandeira, um peixe brasileiro tão
conhecido! Como, aliás, o tucunaré! Mas o tucunaré... — ha-ha —
o tucunaré... não, meu senhor, isto não é um tucunaré, ha-ha.
— Claro,
um acará. Eu sempre confundo. Tucunaré, acará...
E
prossegue a noite, numa sucessão lamentável. Até mesmo na rodinha
do futebol não me dei muito bem. Antes, temerariamente, ingressei na
de literatura, por culpa de uma sobrinha minha que me puxou pela mão
e me apresentou como “um grande escritor”. O rapaz que detinha a
palavra no momento perguntou o meu nome, eu disse e ele fez “oh”.
Perguntei a ele em que trabalhava, e ele disse que era professor de
literatura brasileira. “Oh”, fiz eu. Aí ele ficou um pouco
embaraçado porque achou que eu fiquei embaraçado porque ele nunca
tinha ouvido falar em mim e então, de vez em quando, interrompia a
palestra, sorria para o meu lado e me chamava de “o nosso João
Osvaldo Vieira”. Houve até uma vez em que, generosamente, disse
que “o nosso João Osvaldo sabe isso melhor do que eu”. Fiquei
grato, mas não tive condições de permanecer, inclusive porque o
papo estava descambando para o processo criativo e não entendo nada
de processo criativo, só escrevo.
Hoje,
contudo, sou um homem novo. Li num livro americano, escrito por uma
vítima de aflição equivalente à minha, que aconselha um remédio
simples para essas situações. Deve-se sorrir com grande confiança
e, quando a coisa aperta, dizer “mas não no sul”, ou qualquer
variante bem escolhida (na verdade, basta que se variem os pontos
cardeais). Funciona. Já testei aqui mesmo em Portugal, estou pronto
para o que der e vier. Ontem assisti a toda uma discussão sobre a
situação do Timor com um sorriso superior nos lábios que, dentro
de pouco tempo, fez com que todos se dirigissem a mim com grande
respeito. Há de haver alguns, inclusive, que a esta altura me
consideram uma grande autoridade em assuntos timorianos. Notadamente
porque um deles, no auge da discussão, exigiu que eu me manifestasse
quanto à sua afirmação, segundo a qual a situação do Timor
estava sob o perfeito controle da Indonésia. Fez-se uma pausa, todos
me olharam. Não me apressei, não apaguei de todo o sorriso. Mirando
diretamente o meu interlocutor, balancei um pouco a cabeça e me
pronunciei com a gravidade apropriada:
— Sim,
mas no sul não.
Ele
recebeu uma pancada diante da súbita revelação de meu conhecimento
íntimo do problema. Hesitou um pouco, mas continuou.
— Sim,
claro — falou. — No sul, nem tanto, porque, efetivamente...
Fiz
muito sucesso, continuei sorrindo. Como vocês sabem, sou muito
famoso por essas artes. Não no sul, é claro.
João Ubaldo Ribeiro, in O rei da noite
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