sexta-feira, 10 de maio de 2024

Mas não no Sul

Uma das coisas mais desagradáveis é a evidência de nossa própria ignorância, o que para mim se manifesta a maior parte do tempo, mas principalmente em festinhas e reuniões. Em festinhas e reuniões eu posso sempre ser reconhecido, mesmo por aqueles que nunca viram a minha cara. Eu sou o de vestes frouxas, camisa para fora das calças, copo de uísque agarrado quase convulsivamente e a aparência de estar sofrendo uma ligeira dispnéia, que no momento presta esforçada atenção a um senhor que explica em pormenores o mercado imobiliário do Rio de Janeiro. Sinto a necessidade premente de intercalar um comentário, mas só me vem à cabeça “comprar apartamento é uma boa coisa”. É evidente que preciso de algo melhor, a fim de que meu interlocutor não descubra que está falando com um débil mental.
Comprar apartamento é uma boa coisa — digo finalmente, sem ter certeza de que cara se faz quando se diz isso.
Você comprou o seu quando? — pergunta ele.
Nunca, nunca — respondo vagamente, esperando que ele infira que com isso quero dizer que tenho preferência por investir na Bolsa de Nova Iorque ou qualquer coisa assim.
Ah — diz ele, e eu me sinto um pouco desconfortável.
Por essa razão também sou aquele, na festinha ou na reunião, que é visto fingindo vasta admiração por um quadro pendurado na parede, junto da gaiola dos passarinhos ou do aquário, ou então afetando vivo interesse por peixes e passarinhos. Adianta pouco, porque sempre aparece alguém para mexer na ferida.
Ah, gosta do Scliar, hein? — diz o alguém que, nestes casos, costuma ser um senhor gordo, alto e de voz tonitruante.
Sim, sim — digo eu. — O Scliar...
Ah, eu também gosto muito — fala o senhor gordo, aproximando-se do quadro com ar apreciador. — Ele tem uma sutileza estranha, eu diria uma sutileza agressiva, você não acha?
Acho sim, acho. Aliás, sinceramente, eu só sabia da atividade dele como escritor, ele é meu amigo, gosto muito, gosto muito.
O senhor gordo me olha fulminantemente. Noto que disse alguma coisa errada. Tomo um gole de uísque, desvio a vista para o outro lado e passo o dedo na moldura do quadro.
O senhor está falando do Moacyr. Eu estou falando do Carlos. O pintor!
Metralha o indicador em direção ao quadro, com indignação.
Ah, sim, claro — digo eu. — O Moacyr é gaúcho, não é? O senhor sabe que até hoje eu não conheço Porto Alegre, mas tenho muito amigos lá? O Moacyr...
O senhor me desculpe, estão me chamando ali.
O Moacyr é médico! — tento eu ainda, mas ele não me ouve e desaparece pelo corredor adentro.
Restam os passarinhos e os peixes. Como pode sempre haver um passarinho que fale, dou preferência aos peixes e dedico algum tempo a me recuperar do incidente scliariano fitando o aquário e agitando os pedacinhos de gelo dentro do copo. Quem sabe posso juntar-me àquela rodinha onde estavam discutindo futebol? Literatura nem pensar. Na outra o papo é música popular, barra muito pesada. Com o pessoal que compra terreninhos não posso esperar diálogo, sou de outra classe. A turma da política não pode ser, inclusive sou o único aqui que não chama ninguém em Brasília pelo primeiro nome. Fico assim, ponderando essas angustiosas decisões, quando uma senhora, talvez a dona da casa, pergunta se não quero outro uísque e aí me vê olhando os peixes.
Ah! — exclama ela, encantada. — O senhor sabe que peixe é esse?
Como se responde a uma pergunta dessas? Por que ela tem de perguntar, ainda mais com essa cara de expectativa, essa aparência de quem vai ficar decepcionada se eu não souber? Resolvo, finalmente, optar pelo caminho digno. Responderei que não sei. Há um intervalo, a senhora me espera com o pescoço espichado e aqueles olhinhos arregalados de quem só está aguardando ouvir o que já sabe que vai ouvir.
Tu... tucunaré? — indago afinal, com os olhos piscando mais do que deviam.
A senhora fica pasma. Tucunaré? Mas se todo mundo sabe que é um acará-bandeira! O acará-bandeira, um peixe brasileiro tão conhecido! Como, aliás, o tucunaré! Mas o tucunaré... — ha-ha — o tucunaré... não, meu senhor, isto não é um tucunaré, ha-ha.
Claro, um acará. Eu sempre confundo. Tucunaré, acará...
E prossegue a noite, numa sucessão lamentável. Até mesmo na rodinha do futebol não me dei muito bem. Antes, temerariamente, ingressei na de literatura, por culpa de uma sobrinha minha que me puxou pela mão e me apresentou como “um grande escritor”. O rapaz que detinha a palavra no momento perguntou o meu nome, eu disse e ele fez “oh”. Perguntei a ele em que trabalhava, e ele disse que era professor de literatura brasileira. “Oh”, fiz eu. Aí ele ficou um pouco embaraçado porque achou que eu fiquei embaraçado porque ele nunca tinha ouvido falar em mim e então, de vez em quando, interrompia a palestra, sorria para o meu lado e me chamava de “o nosso João Osvaldo Vieira”. Houve até uma vez em que, generosamente, disse que “o nosso João Osvaldo sabe isso melhor do que eu”. Fiquei grato, mas não tive condições de permanecer, inclusive porque o papo estava descambando para o processo criativo e não entendo nada de processo criativo, só escrevo.
Hoje, contudo, sou um homem novo. Li num livro americano, escrito por uma vítima de aflição equivalente à minha, que aconselha um remédio simples para essas situações. Deve-se sorrir com grande confiança e, quando a coisa aperta, dizer “mas não no sul”, ou qualquer variante bem escolhida (na verdade, basta que se variem os pontos cardeais). Funciona. Já testei aqui mesmo em Portugal, estou pronto para o que der e vier. Ontem assisti a toda uma discussão sobre a situação do Timor com um sorriso superior nos lábios que, dentro de pouco tempo, fez com que todos se dirigissem a mim com grande respeito. Há de haver alguns, inclusive, que a esta altura me consideram uma grande autoridade em assuntos timorianos. Notadamente porque um deles, no auge da discussão, exigiu que eu me manifestasse quanto à sua afirmação, segundo a qual a situação do Timor estava sob o perfeito controle da Indonésia. Fez-se uma pausa, todos me olharam. Não me apressei, não apaguei de todo o sorriso. Mirando diretamente o meu interlocutor, balancei um pouco a cabeça e me pronunciei com a gravidade apropriada:
Sim, mas no sul não.
Ele recebeu uma pancada diante da súbita revelação de meu conhecimento íntimo do problema. Hesitou um pouco, mas continuou.
Sim, claro — falou. — No sul, nem tanto, porque, efetivamente...
Fiz muito sucesso, continuei sorrindo. Como vocês sabem, sou muito famoso por essas artes. Não no sul, é claro.

João Ubaldo Ribeiro, in O rei da noite

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