sexta-feira, 26 de janeiro de 2024

Tempo – XV

Eu não amava que botassem data na minha existência.
A gente usava mais era encher o tempo. Nossa data
maior era o quando. O quando mandava em nós. A
gente era o que quisesse ser só usando esse advérbio.
Assim, por exemplo: tem hora que eu sou quando uma
árvore e podia apreciar melhor os passarinhos. Ou:
tem hora que eu sou quando uma pedra. E sendo uma pedra
eu posso conviver com os lagartos e os musgos. Assim:
tem hora eu sou quando um rio. E as garças me beijam
e me abençoam. Essa era uma teoria que a gente inventava
nas tardes. Hoje eu estou quando infante. Eu resolvi
voltar quando infante por um gosto de voltar. Como
quem aprecia de ir às origens de uma coisa ou de
um ser. Então agora eu estou quando infante. Agora
nossos irmãos, nosso pai, nossa mãe e todos moramos
no rancho de palha perto de uma aguada. O rancho não
tinha frente nem fundo. O mato chegava perto, quase
roçava nas palhas. A mãe cozinhava, lavava e costurava
para nós. O pai passava o seu dia passando arame
nos postes de cerca. A gente brincava no terreiro de
cangar sapo, capar gafanhoto e fazer morrinhos de
areia. Às vezes aparecia na beira do mato com a sua
língua fininha um lagarto. E ali ficava nos cubando.
Por barulho de nossa fala o lagarto sumia no mato,
folhava. A mãe jogava lenha nos quatis e nos bugios
que queriam roubar nossa comida. Nesse tempo a gente
era quando crianças. Quem é quando criança a natureza
nos mistura com as suas árvores, com as suas águas,
com o olho azul do céu. Por tudo isso que eu não
gostasse de botar data na existência. Por que o
tempo não anda pra trás. Ele só andasse pra trás
botando a palavra quando de suporte.

Manoel de Barros, in Memórias Inventadas – A segunda infância

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