Eu
não amava que botassem data na minha existência.
A
gente usava mais era encher o tempo. Nossa data
maior
era o quando. O quando mandava em nós. A
gente
era o que quisesse ser só usando esse advérbio.
Assim,
por exemplo: tem hora que eu sou quando uma
árvore
e podia apreciar melhor os passarinhos. Ou:
tem
hora que eu sou quando uma pedra. E sendo uma pedra
eu
posso conviver com os lagartos e os musgos. Assim:
tem
hora eu sou quando um rio. E as garças me beijam
e
me abençoam. Essa era uma teoria que a gente inventava
nas
tardes. Hoje eu estou quando infante. Eu resolvi
voltar
quando infante por um gosto de voltar. Como
quem
aprecia de ir às origens de uma coisa ou de
um
ser. Então agora eu estou quando infante. Agora
nossos
irmãos, nosso pai, nossa mãe e todos moramos
no
rancho de palha perto de uma aguada. O rancho não
tinha
frente nem fundo. O mato chegava perto, quase
roçava
nas palhas. A mãe cozinhava, lavava e costurava
para
nós. O pai passava o seu dia passando arame
nos
postes de cerca. A gente brincava no terreiro de
cangar
sapo, capar gafanhoto e fazer morrinhos de
areia.
Às vezes aparecia na beira do mato com a sua
língua
fininha um lagarto. E ali ficava nos cubando.
Por
barulho de nossa fala o lagarto sumia no mato,
folhava.
A mãe jogava lenha nos quatis e nos bugios
que
queriam roubar nossa comida. Nesse tempo a gente
era
quando crianças. Quem é quando criança a natureza
nos
mistura com as suas árvores, com as suas águas,
com
o olho azul do céu. Por tudo isso que eu não
gostasse
de botar data na existência. Por que o
tempo
não anda pra trás. Ele só andasse pra trás
botando
a palavra quando de suporte.
Manoel de Barros, in Memórias Inventadas – A segunda infância
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