sexta-feira, 26 de janeiro de 2024

Os entregadores


Deitada no chão da cozinha, Penélope tomou uma decisão.
Era a vontade do pai que ela tivesse uma vida melhor, portanto era isso que faria:
Ela se despiria de sua brandura, de sua polidez.
Ela tiraria a caixa de sapatos de debaixo da cama.
Ela pegaria o dinheiro.
Ela enfiaria as notas no bolso e iria até a estação de trem — sempre com a carta, e Viena, na memória:
Há outra forma de existir.
Sim, e ela decidiu abraçá-la naquele dia.
Bez wahania.
Sem mais delongas.

***

Ela carregava um mapa dos estabelecimentos na cabeça.
Já fizera a ronda antes e era capaz de enumerar todas as lojas de música da região de acordo com localização, preço e especialidade. Uma delas sempre chamava sua atenção, em grande parte por causa do preço; era a única opção viável para ela. Contudo, também apreciava o aspecto caótico do lugar: os rolos de partitura, o busto empoeirado de um Beethoven pra lá de emburrado num canto, o vendedor debruçado no balcão. Ele tinha um rosto magro e amigável, e estava quase sempre comendo gomos de laranja e gritando para se ouvir, pois era meio surdo.
Pianos? — ribombara o homem, da primeira vez em que ela entrara na loja.
Ele atirou uma casca de laranja na lixeira e errou. (“Merda, tão perto!”) Apesar da má audição, notou o sotaque dela.
O que uma turista como a senhorita quer com um piano? É pior do que amarrar uma bigorna no pescoço! — dissera, levantando-se e indo até a Hohner mais próxima. — Uma moça magrinha como você precisa é de uma dessas. Vinte contos.
Ele abriu o estojinho e correu os dedos pela gaita. Será que aquele era seu jeito de informar que ela não tinha como comprar um piano?
Dá pra levar pra qualquer lugar — anunciara ele.
Mas eu não vou a lugar algum.
A atitude do velho senhor mudou.
Certo. — Ele lambera as pontas dos dedos, se empertigando. — Quanto você tem?
No momento, não muito. Uns trezentos dólares, acho.
Ele soltou uma gargalhada, emendando num acesso de tosse.
O balcão recebeu alguns pedacinhos de laranja.
Meu bem, deixa eu te dizer uma coisa: você está delirando. Se quer um piano bom, ou pelo menos um razoável, volte quando tiver mil pratas.
Mil pratas?
Mil dólares.
Ah. Posso tocar algum?
Claro!
Mas até então ela não tinha chegado a tocar nenhum dos pianos, nem naquela nem em nenhuma outra loja. Se precisava de mil dólares, precisava de mil dólares, e só depois de reunir a quantia ela ia procurar um piano, experimentá-lo e comprá-lo, tudo no mesmo dia.
E o dia, por acaso, era aquele.
Mesmo se lhe faltassem cinquenta e três dólares.

***

Ela entrou na loja com os bolsos estufados.
O rosto do vendedor se iluminou.
Você voltou!
Sim — respondeu, ofegante e encharcada de suor.
Trouxe os mil dólares?
Trouxe... — Ela pegou as notas. — Novecentos... e quarenta e sete.
Sim, mas...
Penny bateu no balcão com as duas mãos, deixando marcas na poeira, as palmas e os dedos pegajosos. Olhou bem nos olhos do vendedor, o corpo tão tenso que os ombros estavam prestes a se deslocar.
Por favor. Preciso tocar piano hoje. Pagarei o resto assim que tiver o dinheiro... mas preciso tocar hoje, por favor.
Pela primeira vez, o homem não abriu seu sorriso forçado, e seus lábios se mexeram o suficiente para falar:
Tudo bem. — Ele saiu andando e falando ao mesmo tempo. — Aqui.
É claro que ele a levou até o piano mais barato, mas era um belo instrumento, cor de avelã.
Ela se sentou no banco. Abriu a tampa.
Olhou para o desfile de teclas.
Algumas estavam meio lascadas, mas, por entre as lacunas do próprio desespero, Penny já estava apaixonada, e ainda nem tirara uma única nota daquele instrumento.
E aí? — Ela se virou devagar para o vendedor, a um passo de desmoronar; era a Garota do Aniversário novamente. — Ora, vamos logo com isso, então.
Ela assentiu e voltou a atenção para o piano, para a lembrança de um país antigo. Para a lembrança de um pai, e das mãos dele em suas costas. Penélope estava voando, bem alto — uma estátua entre os balanços —, e tocou, e chorou. Apesar do longo período de seca, tocou lindamente (um dos noturnos de Chopin), sentindo nos lábios o gosto das lágrimas. Fungou, engolindo-as, e tocou cada nota com perfeição.
A Rainha dos Erros não cometeu erro algum.
Ao lado dela, o aroma de laranja.
Entendi — disse ele. — Já entendi. — Ele estava de pé à direita dela. — Acho que entendi o que você quer dizer.
Ele fez o piano por novecentos e providenciou a entrega para ela.

***

O único problema era que o vendedor não tinha apenas uma audição medonha e uma loja caótica — sua caligrafia também era um terror. Se seus garranchos tivessem sido um pouco mais legíveis, talvez eu e meus irmãos nem existíssemos, porque, em vez de mandar o piano para a rua Pepper 3/7, os rabiscos do homem acabaram enviando os entregadores para o número 37.
Como é de se imaginar, os funcionários ficaram possessos.
Era sábado.
Três dias após a compra.
Enquanto um batia à porta, os outros dois começaram a descarregar. O instrumento já havia sido retirado do caminhão e aguardava na calçada. O chefe falou com um homem na varanda da casa e logo se virou para gritar com os outros dois.
O que vocês estão fazendo, cacete?
Como assim?
Estamos na porra do lugar errado!
O entregador entrou para usar o telefone do morador e logo voltou, resmungando sem parar.
Idiota — praguejou. — Babaca comedor de laranja.
O que aconteceu?
A entrega é em outro lugar. Número 3, apartamento 7.
Mas olha ali, não tem como estacionar no número 3!
Então vamos parar no meio da rua mesmo.
Os vizinhos vão chiar.
Os vizinhos vão chiar só de ver você aqui.
Como assim?
A boca do chefe se retorceu em expressões variadas de desaprovação.
Tá bom. Deixa eu ir lá ver. Já vão preparando o carrinho de mão. Não dá para empurrar o piano até o outro lado da rua, vai ser a sentença de morte das rodinhas, e a nossa também. Vou ver se tem gente em casa. Só o que me falta agora é a gente levar isso lá e dar com a cara na porta.
Boa ideia.
É claro que é uma boa ideia. Agora, vocês dois nem me encostem nesse piano, ouviu?
Ouvi.
Só quando eu mandar.
Tá bom!

***

O chefe saiu, e os outros entregadores olharam para o homem na varanda:
O que não queria um piano.
E aí, tudo bem? — perguntou ele para os funcionários.
Tudo. Só um pouco cansados.
Querem beber alguma coisa?
Nem. O chefe não ia gostar.
O homem no alpendre não era nem muito alto nem muito baixo. Tinha cabelo escuro e ondulado, olhos de um azul bem claro e um coração combalido. Quando o chefe voltou, apareceu com uma mulher tímida de rosto pálido e braços bronzeados, bem no meio da rua Pepper.
O homem desceu para a calçada enquanto os entregadores colocavam o piano no carrinho.
Olha — disse ele —, eu posso ajudar, se vocês quiserem.
E foi assim que, numa tarde de sábado, quatro homens e uma mulher empurraram um piano de madeira cor de avelã por um trecho considerável da rua Pepper. Nos lados opostos do instrumento estavam Penélope Lesciuszko e Michael Dunbar — e Penélope não tinha como saber. Mesmo percebendo a simpatia dele com os moços do frete e seu zelo pela integridade do piano, jamais poderia adivinhar que estava diante da maré que a levaria ao resto-de-sua-vida, a um sobrenome e a um apelido.
Como ela disse a Clay, ao recontar a história:
É curioso pensar que, um dia, eu acabaria me casando com aquele homem.

Markus Zusak, in O construtor de pontes

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