[…]
Mas,
cedo no amanhecer, o sôr Amadeu tinha chegado, e com notícia
urgente: que o grosso do bando de Medeiro Vaz recruzava, de lá a
quinze léguas, da Vereda-Funda para a Ratragagem, e nós tínhamos
de seguir, sem folga, supraditamente. No que Nhô Vô Anselmo me deu
um dito afeiçoado e diferente ― entendi que o velhozinho sabia de
alguma coisa, e que não desgostava que eu viesse a ficar neto dele.
Nós almoçamos e montamos. Diadorim, Alaripe, Jesualdo e João
Vaqueiro se retiraram em adiantando, e o Fafafa. Mas eu cacei melhor
coragem, e pedi meu destino a Otacília. E ela, por alegria minha,
disse que havia de gostar era só de mim, e que o tempo que carecesse
me esperava, até que, para o trato de nosso casamento, eu pudesse
vir com jús. Saí de lá aos grandes cantos, tempo-do-verde no
coração. Por breve ― pensei ― era que eu me despedia daquela
abençoada fazenda Santa Catarina, excelentes produções. Não que
eu acendesse em mim ambição de têres e havêres; queria era só
mesma Otacília, minha vontade de amor. Mas, com um significado de
paz, de amizade de todos, de sossegadas boas regras, eu pensava: nas
rezas, nas roupagens, na festa, na mesa grande com comedorias e
doces; e, no meio do solene, o sôr Amadeu, pai dela, que apartasse ―
destinado para nós dois ― um buritizal em dote, conforme o uso dos
antigos.
Vim.
Diadorim nada não me disse. A poeira das estradas pegava pesada de
orvalho. O birro e o jesus-meu-deus cantavam. O melosal maduro alto,
com toda sua roxidão, roxura. Mas, o mais, e do que sei, eram mesmo
meus fortes pensamentos. Sentimento preso. Otacília. Por que eu não
podia ficar lá, desde vez? Por que era que eu precisava de ir por
adiante, com Diadorim e os companheiros, atrás de sorte e morte,
nestes Gerais meus? Destino preso. Diadorim e eu viemos, vim; de rota
abatida. Mas, desse dia desde, sempre uma parte de mim ficou lá, com
Otacília. Destino. Pensava nela. As vezes menos, às vezes mais,
consoante é da vida. As vezes me esquecia, às vezes me lembrava.
Foram esses meses, foram anos. Mas Diadorim, por onde queria, me
levava. Tenho que, quando eu pensava em Otacília, Diadorim
adivinhava, sabia, sofria.
Essas
coisas todas se passaram tempos depois. Talhei de avanço, em minha
história. O senhor tolere minhas más devassas no contar. E
ignorância. Eu não converso com ninguém de fora, quase. Não sei
contar direito. Aprendi um pouco foi com o compadre meu Quelemém;
mas ele quer saber tudo diverso! quer não é o caso inteirado em si,
mas a sobre-coisa, a outra-coisa. Agora, neste dia nosso, com o
senhor mesmo ― me escutando com devoção assim ― é que aos
poucos vou indo aprendendo a contar corrigido. E para o dito volto.
Como eu estava, com o senhor, no meio dos hermógenes.
Destaque
feito! Zé Bebelo vinha vindo. Vinham por nós. E tivemos notícia! a
légua dali, eles estavam chegando, no meio do dia, patrulhão de
cavaleiros. Légua, não era verdade ― mas, obra de seis léguas, o
sim. E eram só uns sessenta, por aí. Todo o tempo eu vinha sabendo
que nosso fim era esse, mas mesmo assim foi feito surpresa. Eu não
podia imaginar que ia entrar em fogo contra os bebelos. De certo
modo, eu prezava Zé Bebelo como amigo. Respeitava a finura dele ―
Zé Bebelo: sempre entendidamente. E uma coisa me esmoreceu a tôrto.
Medo, não, mas perdi a vontade de ter coragem. Mudamos de acampo,
para perto, para perto. ― E agora! E hoje!... O Hermógenes reunia
o pessoal, todos. A gente carecia de levar o préstimo maior de
munição, que se pudesse. Aonde? Diadorim, por um gesto, me cortou
de fazer mais perguntas. As armas. Diadorim ia, para aquilo, prezável
de passeata. Ah, uma coisa não referi ao senhor. Que era que, aquele
tempo, no arranchamento do Hermógenes, minha amizade com Diadorim
estava sendo feito água que corre em pedra, sem pêpa de barro nem
pó de turvação. Da voz de homens e do tinir de armas em má
véspera, não se podia deixar de receber um lufo de dureza, de mais
próprio respeito, e muita coisinha se empequenava. ― Zé Bebelo é
arisco de aviso, Diadorim... Ele joga seguro: por aí perto, em
esconso, deve de ter outra tropa de guerra, prontos para virem dar
retaguarda. Eu sei bem ― essa a norma dele... Carece de prevenir o
Hermógenes, João Goanhá, Titão Passos... ― eu não retive, e
disse. ― Eles sabem, Riobaldo. Toda guerra é essa... ― Diadorim
me respondeu. E eu estava sabendo que eu já dizer aquilo era
traição. Era? Hoje eu sei que não, que eu tinha de zelar por vida
e pela dos companheiros. Mas era, traição, isto também sim: era,
porque eu pensava que era. Agora, depois mais do tudo que houve, não
foi?
Agarrei
minha mochila, comi fria a minha jacuba. Tudo estava sendo
determinado decidido, até o que a gente tinha de fazer depois. Aí
João Goanhá apartava o pessoal em punhados de quinze ou vinte: cada
um desses, acabado o fogo, devia de se reunir em lugar certo comum.
Daquela hora em diante, íamos ter de brigar em pequenas quantidades.
Pelas caras dos homens, eu via que estavam satisfeitos, parecia muito
e pouco. Com regozijo, um golinho se bebeu. ― Toma este breve,
Riobaldo. Foi minha mãe-de-criação quem costurou para mim. Mas eu
carrego dois... Era o Feijó, um sacudido oitavão, ele manobrava
rifle de três canos. Que simpatia demonstrada era essa, eu nunca
tinha dado fé daquele Feijó? ― A vamos. Hoj e se faz o que não
se faz... ― um se exaltava assim, tive medo de castigo de Deus.
Quem quisesse rezar, podia, tinha praça; outros, contritos,
acompanhavam. Outros ainda comiam, zampando, limpavam a boca com as
duas mãos. ― Não é medo não, amigos, é o trivial do corpo! ―
explicavam alguns, que ainda careciam de ir por suas necessidades.
Restantes risadas davam. Ao que faltava nem meia-hora para o sol ir
entrando. Daquele lugar, vazio de moradas e de terras lavradias, a
gente ouvia o gugo da jurití como um chamado acabado, junto com lobo
guará já dando gritos de penitência. ― Presta uma demão,
aqui... Ajudei. Era um montesclarense ― acho que o cujo nome
esqueci ― que queria passar tiras de pano, por sola das alpercatas
e peito dos pés, reforçando. Terminou, e fez os passos de dansa,
maneiro nas juntas, assobiava. Aquele rapaz pensava alguma coisa? ―
Riobaldo? ― Diadorim me disse ― arruma jeito de mudar de lugar,
na hora, sempre que puder. E põe cautela! homem rasteja por entre as
môitas, e vem pular nas costas da gente, relampeando faca. Diadorim
sorria sério. Um outro me esbarrou, quando passava. Era o Delfim,
violeiro. Onde era que a viola ele ia poder guardar? Eu apertei a mão
de Diadorim, e queria sair, andar, gastar.
Guimarães Rosa, in Grande sertão: veredas
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