domingo, 5 de novembro de 2023

Bandeiras de Setembro

O mês de setembro, no Sul do continente latino-americano, é um mês amplo e florido. Este mês está também cheio de bandeiras.
No início do século passado, em 1810 e no mês de setembro, despontaram ou se consolidaram as insurreições contra o domínio espanhol em numerosos territórios da América do Sul.
Neste mês de setembro, nós, os americanos do Sul, recordamos a emancipação, celebramos os heróis e recebemos a primavera tão dilatada que ultrapassa o Estreito de Magalhães e floresce até na Patagônia Austral, até no Cabo de Hornos.
Foi muito importante para o mundo a cadeia cíclica de revoluções que brotavam do México até a Argentina e o Chile.
Os caudilhos eram diferentes. Bolívar, guerreiro e cortesão, dotado de um resplendor profético; San Martín, organizador genial de um exército que cruzou as mais altas e hostis cordilheiras do planeta para travar no Chile as batalhas decisivas de sua libertação; José Miguel Carrera e Bernardo O'Higgins, criadores dos primeiros exércitos chilenos, assim como das primeiras gráficas e dos primeiros decretos contra a escravidão que foi abolida no Chile muitos anos antes que nos Estados Unidos.
José Miguel Carrera, como Bolívar e alguns outros libertadores, saía da classe aristocrática críolla. Os interesses desta classe se chocavam vivamente com os interesses espanhóis na América. O povo como organização não existia senão como uma vasta massa de servos sob o domínio espanhol. Os homens como Bolívar e Carrera, leitores dos enciclopedistas, estudantes nas academias militares da Espanha, deviam atravessar os muros do isolamento e da ignorância para chegar a comover o espírito nacional.
A vida de Carrera foi curta e fulgurante como um relâmpago. El húsar desdichado (O hussardo infeliz) foi o título que dei a um antigo livro de lembranças que eu mesmo publiquei há alguns anos. Sua personalidade fascinante atraiu os conflitos sobre sua cabeça como um pára-raios atrai a faísca das tempestades. Por fim foi fuzilado em Mendoza pelos governantes da recém-declarada República Argentina. Seus desesperados desejos de derrubar o domínio espanhol o tinham colocado à frente dos índios selvagens dos pampas argentinos. Sitiou Buenos Aires e esteve a ponto de tomá-la de assalto. Mas seus desejos eram libertar o Chile e neste empenho precipitou guerras e guerrilhas civis que o conduziram ao patíbulo. A revolução naqueles anos turbulentos devorou um de seus filhos mais brilhantes e valentes. A História culpa O'Higgins e San Martín deste feito sangrento. Mas a história desse mês de setembro, mês de primavera e de bandeiras, cobre com as asas a memória dos três protagonistas destes combates libertadores no vasto cenário de imensos pampas e de neves eternas.
O'Higgins, outro dos libertadores do Chile, foi um homem modesto. Sua vida teria sido obscura e tranquila se não houvesse encontrado em Londres, quando não tinha senão dezessete anos de idade, um velho revolucionário que percorria todas as cortes da Europa buscando ajuda para a causa da emancipação americana. Chamava-se Dom Francisco de Miranda e, entre outros amigos, contou com o poderoso afeto da imperatriz Catarina da Rússia. Com passaporte russo chegou a Paris, entrando e saindo pelas chancelarias da Europa.
É uma história romântica, com tal ar de “época” que parece uma ópera. O'Higgins era filho natural de um vice-rei espanhol, um rico militar de ascendência irlandesa e que foi governador do Chile. Miranda tratou de apurar a origem de O'Higgins quando compreendeu a utilidade que aquele jovem poderia ter na insurreição das colônias americanas da Espanha. Está narrado o momento exato em que revelou ao jovem O'Higgins o segredo de sua origem e o impulsionou para a ação insurgente. O jovem revolucionário caiu de joelhos e, abraçando Miranda, entre soluços se comprometeu a partir imediatamente para sua pátria, o Chile, e encabeçar aqui a rebelião contra o poder espanhol. O'Higgins foi o que alcançou as vitórias finais contra o sistema colonial, sendo considerado o fundador de nossa república.
Miranda, prisioneiro dos espanhóis, morreu no temível presídio de La Carraca, em Cádiz. O corpo deste general da Revolução Francesa e mestre de revolucionários foi envolto em um saco e atirado ao mar do alto do presídio.
San Martín, desterrado por seus compatriotas, morreu em Boulogne, na França, idoso e solitário.
O'Higgins, libertador do Chile, morreu no Peru, longe de tudo o que amava, proscrito pela classe latifundiária criolla que se apoderou prontamente da revolução.
Há pouco, ao passar por Lima, encontrei no Museu Histórico do Peru alguns quadros pintados pelo general O'Higgins em seus últimos anos. Todos esses quadros têm o Chile por tema. Pintava a primavera do Chile, as folhas e as flores do mês de setembro.
Neste mês de setembro me pus a recordar os nomes, os feitos, os amores e os sofrimentos daquela época de insurreições. Um século mais tarde os povos se agitam de novo e uma corrente tumultuosa de vento e de fúria move as bandeiras. Tudo mudou desde aqueles anos distantes, mas a História continua seu caminho e uma nova primavera povoa os intermináveis espaços de nossa América.

Pablo Neruda, in Confesso que vivi

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