A
feminina começou por incomodar-se com a barriga. Eram dores de haver
comido algum fruto podre, e não lhe retiravam forças ou deitavam
pelo chão. Moíam por dentro, a trabalhar por dentro como se algum
animal vivo ali caminhasse, e ela até brincara comparando com o
jacaré do negro. Todos lhe respondiam que o espanto abria sua boca e
a boca aberta engolia de surpresa. A feminina sorria mas aquela dor
era persistente. Atarefada, alguma coisa se impunha à sua atenção,
turvando cada gesto, obrigando todos os instantes a ponderar que
seria, o que seria aquilo agora. O que doeria dentro do corpo belo de
Boa de Espanto.
Deitou
mais cedo, desculpando-se, havendo cantado quase nada, havendo nem
comido mais, porque lhe parecia estar ainda muito cheia. Deitou, e
Altura Verde deitou também para ser junto com ela, mais entristecido
do que preocupado. O guerreiro a festejou. Entoou nada. Olhou no
escuro e afundou lentamente no sono quando se convenceu de que sua
dupla afundara calmamente no sono também. Mas Boa de Espanto era
desperta. Permanecia quieta, contudo ia em seu sangue uma pressa. Ela
começou a perceber como o sangue fugia pelas veias. Os igarapés
vermelhos pelo interior da feminina ferviam, ela fervia, ganhava
temperatura. Pensou que o peito haveria de rebentar, abrir para
deitar fora o coração, não ter mais sangue. Não podia dormir.
Pensou que cozinharia inteira por dentro, suando e perdendo o ar. Os
pulmões desistindo.
Muito
depois, quando a comunidade inteira adormecera, ainda doendo
estranha, a barriga de Boa de Espanto sempre remoendo pelo interior,
a feminina levantou e não tomou conta de seus passos. Saiu ao
terreiro. Talvez tenha demorado um instante ali sem ninguém. Estava
o luar gigante. A mata cintilava. Escolheu andar para um lado, para o
outro. Circundou várias vezes o terreiro numa clara forma de
hesitar. Então, entrou em outra maloca e, muda, vendo quase nada,
ajoelhou onde Honra dormia certamente sonhando suas caças à fera
branca. A feminina deixou de pensar. A escuridão intensa nem
permitia que estivesse certa de aquele ser seu filho, mas ela ali
ajoelhou e parou de mover.
Adiante
na noite, Altura Verde despertou reparando logo que sua dupla era
ausente. Afligiu. Teria descurado suas dores, seu incómodo. Teria
sido ignorante em significar o que lhe doía, que razão haveria para
aquele sentimento. Fora ignorante por adormecer. Levantou e apressou
para fora da maloca espiando o terreiro, a mesma calma prosseguia,
havia ninguém, o luar acendendo tudo ténue, o silêncio da
comunidade ressonando sem guerra. Altura Verde tomou alguns caminhos
que imediatamente abandonou. Ela não sairia da aldeia. A imprudência
de alguma feminina passar a noite depois da cerca era inconcebível.
Estaria por ali, empenhada com sua dor, talvez adormecida em outro
canto depois de se ter levantado sem sono. O guerreiro buscou e
ocorreu de buscar na maloca onde Honra haveria de dormir. Foi por um
frio nos ossos que Altura Verde entendeu que aquela teria de ser a
resposta para tão súbita ausência. E ali viu, na mesma escuridão,
o corpo ajoelhado de Boa de Espanto e isso lhe pareceu mais triste e
ele fez a tristeza. Ajoelhou também. Subiu seu braço por sobre o
ombro da feminina e quis ver o que seria do filho mas via-se nada.
Era unicamente o ruído no ar. Ressonava o guerreiro branco como se
existissem apenas seus pulmões e suas partes canoras. Altura Verde
pensou entoar algo baixinho. Pedir à sua dupla que regressasse.
Dormiriam, então. Poderiam conversar um pouco, caminhar pela aldeia,
beber água, molhar o rosto, fumar. Mas o guerreiro não proferiu
palavra. Calou, e, ao invés, permaneceu ajoelhado igual. Eram os
dois ajoelhados escutando como respirava profundo o filho branco.
Demoraram ali. Até que o sol começou pouquinho e logo se conseguiu
ver.
Quando
o sol começava pouquinho, o primeiro abaeté que acendia era Honra.
A alvura de seu corpo acendia com facilidade à força das manhãs.
Via-se
bem como Honra permanecia estendido. O seu tamanho e a sua cor. Em
algum momento, era bem visto seu rosto. Boa de Espanto, com Altura
Verde, viu o rosto do filho, e entoou:
este
é o rosto da fera inimiga. É este o rosto da fera inimiga que feriu
o filho em meu ventre. Assim o vi diante de meus olhos. O mesmo pouco
verde atirado ao vazio. A mesma impressão de ser uma iluminação
caída do céu. A força e o som de uma fera cujo corpo quase não
difere do brilho.
Então,
Honra despertou e perguntou:
sagrada
mãe, o que acontece.
Altura
Verde tomou a feminina, que levantou num só gesto, e apressou o
passo dali para fora. Boa de Espanto, atónita, entendera que o filho
crescera o resto do inimigo. O filho tanto quisera acreditar que sua
fealdade denunciaria a fera que ela mesma, incrédula, lembrava
agora. Honra imitara o rosto do branco. Era branco e em tudo soubera
imitar o branco. Altura Verde respondeu:
o
teu inimigo mais abeirou. Tua lembrança abeira o inimigo. Ele vai
ser encontrado pelo nosso povo e nosso povo vai caçar. Quando
tombar, o educaremos. Será inteiro na alegria abaeté. Não haverá
mais sofrimento. Entoa de novo. Boa de Espanto, entoa de novo. E a
feminina entoou:
eu
colhia frutos. Seguia a cobra amistosa sem medo e sem pressa. Havia
decidido banhar-me mas esfaimava pelo doce dos frutos que estavam
muito frescos e eram bons. Tirava-lhes as cascas, saboreava suas
polpas e bebia. A mata estava quieta e os pássaros acompanhavam. Era
tanta a alegria que eu espiara meu rosto várias vezes na água mais
parada para ganhar coragem de me mostrar a algum guerreiro. Eu
acabara de decidir que seria dupla, teria filhos, estaria madura para
as folias da fertilidade. Eu queria muito e comovi. Chorei. Entoei os
nomes de meus pais para abeirar seus espíritos, queria estar
acompanhada, eu cantei seus nomes e muito cantei à Pedra Que Soa e
tive a certeza de os ter comigo. Éramos muitos subindo pelo igarapé
e eu bebera água, não tinha sede. Estava comendo muito. Depois, eu
saí um pouco de junto da água, eu julguei estar quase na aldeia
subida, iria cumprimentar os que soam, ver tantas saudades, eu ia.
Mas fiquei num pouco de mata a comer mais frutos pequenos e distraí
porque não escutei qualquer ruído quando o animal branco me tombou.
Senti uma pedra na cabeça, atrás, até arrancando meu cabelo.
Despertei no chão e minhas mãos estavam livres, eu guerreei
imediato tomando um galho com que furei seu peito. O galho entrou seu
entrançado fino e cortou sua pele. Ele moveu para me prender, minha
mão, a palma toda, pousou em seu peito e eu senti como era aparato.
Feriu. Apressou esmagando meus pulsos no chão. Entrou no meu corpo e
beijou minha boca. Fechei. Eu quis olhar para dentro, virei cabeça
toda e não precisava ver mais seu rosto, vira bastante, um só esgar
seria suficiente, eu julgava. Ele amainou muito rápido. Era de folia
aflita, cheirava mal, apodreceu minha boca. Eu quis beber para lavar
minha boca e pensei levantar para fugir quando deixasse meus pulsos.
Mas ele amainou e bateu. Eu sentira muitos cortes, mas julgo que
apenas me cortou então porque fazia minha morte. Fez minha morte
inteira. Parei todo o movimento por estar morta. Esperei que meu
espírito entendesse o que fazer, caminhasse nesse sopro por onde
abeira e afasta a encantaria. Mas continuava vendo através dos
mesmos olhos do corpo. O inimigo levantou de mim, enfim satisfeito,
pensando também que eu era só morta, mais nada. E olhou meu rosto e
eu olhei seu rosto, o mesmo de Honra. Saiu pela mata, escutei seus
passos logo desparecendo e esperei. Não entendi o que fazer porque
não podia fazer nada. Não movi um dedo. Eu quis muito mover para
ameaçar o animal, mas não tinha como. Comecei meus pensamentos
igual a dialogar porque eu queria ajuda. Perguntei à Pedra Que Soa
como aninharia meu espírito. Depois, chamei o nome dos meus pais e a
Voz Coral entoou: teu ovo sonhará um guerreiro. Pensei que meu ovo
haveria de eclodir naquele instante e eu queria mover para tomar meu
filho. Queria muito mover. E alguma coisa mordeu minha perna, algum
bicho seguramente mordeu minha perna e senti e acreditei que, se
minha morte permitia ainda sentir o corpo, levaria o corpo de volta à
aldeia para ser abrigada. E eu movi. Julguei muito estar movendo na
morte e talvez fosse o jeito de ser levada à encantaria. Talvez eu
mesma tivesse de carregar meu cadáver só mais aquele caminho, para
exalar o espírito juntinho à Pedra Que Soa e ficar pela eternidade
em paz. Então, movi mais. Educaria a minha própria morte tanto
quanto me fosse pedido e fosse capaz. Eu educaria. Na Voz Coral,
escutara o timbre das vozes dos meus pais. Eu alegrei pela tanta
sorte de os haver chamado para me acompanharem naquela tarde. Estavam
os seus espíritos tão abeirados que alegrei. E então entoaram
novamente: não aninharás teu espírito. Teu filho guerreiro haverá
de crescer e haverá de te amar. És viva, Boa de Espanto. Tu és
viva. E eu vivi. Entendi que minha obrigação não era com a morte.
Estava obrigada com meu ventre. O inimigo destruiria a carne abaeté
mas jamais o espírito abaeté. Quando enganei o caminho em direcção
ao areal, fui chefiada de enganar. Era para te encontrar, sagrado
Altura Verde. Era ao teu encontro, parte de minha inteira salvação.
Lembro bem. Lembro bem. O inimigo mais abeirou. Está pela mata. Ele
está pela mata. No outro lado do primeiro mar. Nas nossas ilhas
distantes.
A
comunidade foi alertada. Honra ergueu sua pior fúria. Do meio do
terreiro, o negro berrou vinte onças. Os abaeté estavam na pior
guerra. Seus sangues eram revoltos tanto quanto o primeiro mar
durante a tempestade.
Valter Hugo Mãe, in As doenças do Brasil
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