sábado, 25 de novembro de 2023

Capítulo vinte | Mais abeira o branco


A feminina começou por incomodar-se com a barriga. Eram dores de haver comido algum fruto podre, e não lhe retiravam forças ou deitavam pelo chão. Moíam por dentro, a trabalhar por dentro como se algum animal vivo ali caminhasse, e ela até brincara comparando com o jacaré do negro. Todos lhe respondiam que o espanto abria sua boca e a boca aberta engolia de surpresa. A feminina sorria mas aquela dor era persistente. Atarefada, alguma coisa se impunha à sua atenção, turvando cada gesto, obrigando todos os instantes a ponderar que seria, o que seria aquilo agora. O que doeria dentro do corpo belo de Boa de Espanto.
Deitou mais cedo, desculpando-se, havendo cantado quase nada, havendo nem comido mais, porque lhe parecia estar ainda muito cheia. Deitou, e Altura Verde deitou também para ser junto com ela, mais entristecido do que preocupado. O guerreiro a festejou. Entoou nada. Olhou no escuro e afundou lentamente no sono quando se convenceu de que sua dupla afundara calmamente no sono também. Mas Boa de Espanto era desperta. Permanecia quieta, contudo ia em seu sangue uma pressa. Ela começou a perceber como o sangue fugia pelas veias. Os igarapés vermelhos pelo interior da feminina ferviam, ela fervia, ganhava temperatura. Pensou que o peito haveria de rebentar, abrir para deitar fora o coração, não ter mais sangue. Não podia dormir. Pensou que cozinharia inteira por dentro, suando e perdendo o ar. Os pulmões desistindo.
Muito depois, quando a comunidade inteira adormecera, ainda doendo estranha, a barriga de Boa de Espanto sempre remoendo pelo interior, a feminina levantou e não tomou conta de seus passos. Saiu ao terreiro. Talvez tenha demorado um instante ali sem ninguém. Estava o luar gigante. A mata cintilava. Escolheu andar para um lado, para o outro. Circundou várias vezes o terreiro numa clara forma de hesitar. Então, entrou em outra maloca e, muda, vendo quase nada, ajoelhou onde Honra dormia certamente sonhando suas caças à fera branca. A feminina deixou de pensar. A escuridão intensa nem permitia que estivesse certa de aquele ser seu filho, mas ela ali ajoelhou e parou de mover.
Adiante na noite, Altura Verde despertou reparando logo que sua dupla era ausente. Afligiu. Teria descurado suas dores, seu incómodo. Teria sido ignorante em significar o que lhe doía, que razão haveria para aquele sentimento. Fora ignorante por adormecer. Levantou e apressou para fora da maloca espiando o terreiro, a mesma calma prosseguia, havia ninguém, o luar acendendo tudo ténue, o silêncio da comunidade ressonando sem guerra. Altura Verde tomou alguns caminhos que imediatamente abandonou. Ela não sairia da aldeia. A imprudência de alguma feminina passar a noite depois da cerca era inconcebível. Estaria por ali, empenhada com sua dor, talvez adormecida em outro canto depois de se ter levantado sem sono. O guerreiro buscou e ocorreu de buscar na maloca onde Honra haveria de dormir. Foi por um frio nos ossos que Altura Verde entendeu que aquela teria de ser a resposta para tão súbita ausência. E ali viu, na mesma escuridão, o corpo ajoelhado de Boa de Espanto e isso lhe pareceu mais triste e ele fez a tristeza. Ajoelhou também. Subiu seu braço por sobre o ombro da feminina e quis ver o que seria do filho mas via-se nada. Era unicamente o ruído no ar. Ressonava o guerreiro branco como se existissem apenas seus pulmões e suas partes canoras. Altura Verde pensou entoar algo baixinho. Pedir à sua dupla que regressasse. Dormiriam, então. Poderiam conversar um pouco, caminhar pela aldeia, beber água, molhar o rosto, fumar. Mas o guerreiro não proferiu palavra. Calou, e, ao invés, permaneceu ajoelhado igual. Eram os dois ajoelhados escutando como respirava profundo o filho branco. Demoraram ali. Até que o sol começou pouquinho e logo se conseguiu ver.
Quando o sol começava pouquinho, o primeiro abaeté que acendia era Honra. A alvura de seu corpo acendia com facilidade à força das manhãs.
Via-se bem como Honra permanecia estendido. O seu tamanho e a sua cor. Em algum momento, era bem visto seu rosto. Boa de Espanto, com Altura Verde, viu o rosto do filho, e entoou:
este é o rosto da fera inimiga. É este o rosto da fera inimiga que feriu o filho em meu ventre. Assim o vi diante de meus olhos. O mesmo pouco verde atirado ao vazio. A mesma impressão de ser uma iluminação caída do céu. A força e o som de uma fera cujo corpo quase não difere do brilho.
Então, Honra despertou e perguntou:
sagrada mãe, o que acontece.
Altura Verde tomou a feminina, que levantou num só gesto, e apressou o passo dali para fora. Boa de Espanto, atónita, entendera que o filho crescera o resto do inimigo. O filho tanto quisera acreditar que sua fealdade denunciaria a fera que ela mesma, incrédula, lembrava agora. Honra imitara o rosto do branco. Era branco e em tudo soubera imitar o branco. Altura Verde respondeu:
o teu inimigo mais abeirou. Tua lembrança abeira o inimigo. Ele vai ser encontrado pelo nosso povo e nosso povo vai caçar. Quando tombar, o educaremos. Será inteiro na alegria abaeté. Não haverá mais sofrimento. Entoa de novo. Boa de Espanto, entoa de novo. E a feminina entoou:
eu colhia frutos. Seguia a cobra amistosa sem medo e sem pressa. Havia decidido banhar-me mas esfaimava pelo doce dos frutos que estavam muito frescos e eram bons. Tirava-lhes as cascas, saboreava suas polpas e bebia. A mata estava quieta e os pássaros acompanhavam. Era tanta a alegria que eu espiara meu rosto várias vezes na água mais parada para ganhar coragem de me mostrar a algum guerreiro. Eu acabara de decidir que seria dupla, teria filhos, estaria madura para as folias da fertilidade. Eu queria muito e comovi. Chorei. Entoei os nomes de meus pais para abeirar seus espíritos, queria estar acompanhada, eu cantei seus nomes e muito cantei à Pedra Que Soa e tive a certeza de os ter comigo. Éramos muitos subindo pelo igarapé e eu bebera água, não tinha sede. Estava comendo muito. Depois, eu saí um pouco de junto da água, eu julguei estar quase na aldeia subida, iria cumprimentar os que soam, ver tantas saudades, eu ia. Mas fiquei num pouco de mata a comer mais frutos pequenos e distraí porque não escutei qualquer ruído quando o animal branco me tombou. Senti uma pedra na cabeça, atrás, até arrancando meu cabelo. Despertei no chão e minhas mãos estavam livres, eu guerreei imediato tomando um galho com que furei seu peito. O galho entrou seu entrançado fino e cortou sua pele. Ele moveu para me prender, minha mão, a palma toda, pousou em seu peito e eu senti como era aparato. Feriu. Apressou esmagando meus pulsos no chão. Entrou no meu corpo e beijou minha boca. Fechei. Eu quis olhar para dentro, virei cabeça toda e não precisava ver mais seu rosto, vira bastante, um só esgar seria suficiente, eu julgava. Ele amainou muito rápido. Era de folia aflita, cheirava mal, apodreceu minha boca. Eu quis beber para lavar minha boca e pensei levantar para fugir quando deixasse meus pulsos. Mas ele amainou e bateu. Eu sentira muitos cortes, mas julgo que apenas me cortou então porque fazia minha morte. Fez minha morte inteira. Parei todo o movimento por estar morta. Esperei que meu espírito entendesse o que fazer, caminhasse nesse sopro por onde abeira e afasta a encantaria. Mas continuava vendo através dos mesmos olhos do corpo. O inimigo levantou de mim, enfim satisfeito, pensando também que eu era só morta, mais nada. E olhou meu rosto e eu olhei seu rosto, o mesmo de Honra. Saiu pela mata, escutei seus passos logo desparecendo e esperei. Não entendi o que fazer porque não podia fazer nada. Não movi um dedo. Eu quis muito mover para ameaçar o animal, mas não tinha como. Comecei meus pensamentos igual a dialogar porque eu queria ajuda. Perguntei à Pedra Que Soa como aninharia meu espírito. Depois, chamei o nome dos meus pais e a Voz Coral entoou: teu ovo sonhará um guerreiro. Pensei que meu ovo haveria de eclodir naquele instante e eu queria mover para tomar meu filho. Queria muito mover. E alguma coisa mordeu minha perna, algum bicho seguramente mordeu minha perna e senti e acreditei que, se minha morte permitia ainda sentir o corpo, levaria o corpo de volta à aldeia para ser abrigada. E eu movi. Julguei muito estar movendo na morte e talvez fosse o jeito de ser levada à encantaria. Talvez eu mesma tivesse de carregar meu cadáver só mais aquele caminho, para exalar o espírito juntinho à Pedra Que Soa e ficar pela eternidade em paz. Então, movi mais. Educaria a minha própria morte tanto quanto me fosse pedido e fosse capaz. Eu educaria. Na Voz Coral, escutara o timbre das vozes dos meus pais. Eu alegrei pela tanta sorte de os haver chamado para me acompanharem naquela tarde. Estavam os seus espíritos tão abeirados que alegrei. E então entoaram novamente: não aninharás teu espírito. Teu filho guerreiro haverá de crescer e haverá de te amar. És viva, Boa de Espanto. Tu és viva. E eu vivi. Entendi que minha obrigação não era com a morte. Estava obrigada com meu ventre. O inimigo destruiria a carne abaeté mas jamais o espírito abaeté. Quando enganei o caminho em direcção ao areal, fui chefiada de enganar. Era para te encontrar, sagrado Altura Verde. Era ao teu encontro, parte de minha inteira salvação. Lembro bem. Lembro bem. O inimigo mais abeirou. Está pela mata. Ele está pela mata. No outro lado do primeiro mar. Nas nossas ilhas distantes.
A comunidade foi alertada. Honra ergueu sua pior fúria. Do meio do terreiro, o negro berrou vinte onças. Os abaeté estavam na pior guerra. Seus sangues eram revoltos tanto quanto o primeiro mar durante a tempestade.

Valter Hugo Mãe, in As doenças do Brasil

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