Envelheci
tanto, que deixei tudo para trás. Olho a grande lâmina espelhada da
minha vitrine. Ali embaixo, estão homens. Infusórios numa lâmina
de microscópio. Podemos nos interessar pelos dramas de família de
infusórios?
Não
fosse por essa dor no coração que me parece viva, afundaria nos
meus vagos devaneios, como um tirano envelhecido. Há dez minutos, eu
estava inventando essa história de figurante. Era falso de vomitar.
Quando vi os caças, pensei em ternos suspiros? Pensei em vespas
pontudas. Isso sim. Minúsculas, essas porcarias.
Pude
inventar sem desgosto essa imagem de vestido de cauda! Não pensei
num vestido de cauda, pela simples razão de que jamais vi minha
própria trilha! Desta carlinga onde estou encaixotado como um
cachimbo no estojo, me é impossível observar qualquer coisa atrás
de mim. Eu olho para trás pelos olhos de meu artilheiro. E ainda
assim! Se os laringofones não estiverem quebrados! E meu artilheiro
nunca me disse: “Aí estão nossos pretendentes apaixonados, que
seguem a cauda de nosso vestido…”.
Não
há aí mais do que ceticismo e malabarismo. Decerto, eu gostaria de
crer, gostaria de lutar, gostaria de vencer. Porém, por mais que se
finja crer, lutar e vencer incendiando suas próprias cidades, é
muito difícil tirar alguma exaltação disso.
É
difícil existir. O homem é apenas um nó de relações e eis que
meus laços não valem mais grande coisa.
O
que há em mim que não funciona? Qual é o segredo das trocas? Como,
noutras circunstâncias, o que me é agora abstrato e longínquo,
consegue me transtornar? Como, de uma palavra, um gesto, conseguem
fazer infinitas voltas num destino? Como, se eu fosse Pasteur, o jogo
dos próprios infusórios poderia me tornar patético a ponto de uma
lâmina de microscópio me parecer um território tão vasto quanto a
floresta virgem e me permitir viver, debruçado sobre ela, a mais
alta forma de aventura?
Como
esse ponto negro que é uma casa de homens, lá embaixo…
E
me vem uma recordação.
Quando
eu era menino… Remonto longe na minha infância. A infância, esse
grande território de onde cada um veio! De onde sou? Sou da minha
infância. Sou da minha infância como de um território…* Então,
quando eu era menino, vivi uma noite uma experiência divertida.
Eu
tinha cinco ou seis anos. Eram oito horas. Oito horas, a hora em que
as crianças devem dormir. Sobretudo no inverno, pois já é noite.
No entanto, tinham me esquecido.
E
havia no térreo dessa grande casa de campo um vestíbulo que me
parecia imenso e para o qual dava o cômodo quente onde nós, as
crianças, jantávamos. Eu sempre tivera receio daquele vestíbulo
por causa, talvez, do abajur fraco que, perto do centro, mal o tirava
de sua escuridão, parecia mais um sinal do que um abajur por causa
dos lambris, que estalavam no silêncio, e também do frio. Pois ali
se desembocava de cômodos luminosos e quentes, como se fosse numa
caverna.
Mas
naquela noite, vendo-me esquecido, cedi ao demônio do mal, ergui-me
sobre a ponta dos pés até a maçaneta da porta, empurrei-a
devagarinho no vestíbulo e fui, fraudulento, explorar o mundo.
Os
estalos dos lambris, entretanto, pareceram-me um aviso da cólera
celeste. Via vagamente, na penumbra, os grandes painéis
reprovadores. Não ousando prosseguir, subi como deu num aparador e,
com as costas apoiadas na parede, fiquei ali, com as pernas
pendentes, o coração batendo, como fazem todos os náufragos em seu
recife em pleno mar.
Foi
então que se abriu a porta de uma sala e, dois tios, os quais me
inspiravam um terror danado, fechando aquela porta atrás de si, no
burburinho e sob as luzes, começaram a perambular no vestíbulo.
Eu
tremia de ser descoberto. Um deles, Hubert, era para mim a imagem da
severidade. Um delegado da justiça divina. Aquele homem, que nunca
dera um peteleco numa criança, me repetia, franzindo as sobrancelhas
terríveis, por ocasião de cada um de meus crimes: “Da próxima
vez que eu for à América, vou trazer uma máquina de chicotear.
Aperfeiçoaram tudo na América. É por isso que as crianças, lá,
são tão comportadas. E é um grande sossego para os pais…”.
Eu
não gosto da América.
Eles
perambulavam, sem me ver, de um lado para outro, naquele vestíbulo
glacial e interminável. Eu os seguia com os olhos e os ouvidos,
prendendo a respiração, tonto.
“Na
presente época”, diziam eles… E se afastavam com seu segredo de
gente grande e eu pensava comigo: “A presente época”. Depois,
eles voltavam como uma maré que tivesse, de novo, arrastado para a
minha direção os seus tesouros indecifráveis. “É insensato,
dizia um ao outro, é efetivamente insensato.” Eu recolhia a frase
como um objeto extraordinário. E repetia lentamente para testar o
poder daquelas palavras na minha consciência de cinco anos: “É
insensato, efetivamente insensato…”.
Então,
a maré afastava os tios. A maré os trazia de novo. Aquele fenômeno,
que me abria perspectivas ainda mal esclarecidas sobre a vida,
reproduzia-se com uma regularidade estelar, como um fenômeno de
gravitação. Eu estava bloqueado no meu aparador, para a eternidade,
ouvinte clandestino de um concílio solene, durante o qual meus dois
tios, que sabiam tudo, colaboravam para a criação do mundo. A casa
podia durar ainda mil anos, os dois tios, durante mil anos, oscilando
ao longo do vestíbulo com a lentidão de um pêndulo de relógio,
continuariam a dar-lhe o gosto de eternidade.
Este
ponto que estou olhando é sem dúvida uma casa de homens, a dez
quilômetros abaixo de mim. E eu nada recebo dela. No entanto,
trata-se, talvez, de uma grande casa de campo, onde dois tios dão
cem passos e constroem, lentamente, numa consciência de criança,
alguma coisa tão fabulosa quanto a imensidão dos mares.
Descubro,
dos meus dez mil metros, um território da envergadura de uma
província; todavia, tudo encolheu até sufocar-me. Disponho aqui de
menos espaço do que disporia nesse grão escuro.
Perdi
o senso de vastidão. Estou cego à vastidão. Mas é como se tivesse
sede dela. E me parece tocar aqui um denominador comum a todas as
aspirações de todos os homens.
Quando
um acaso desperta o amor, tudo se ordena no homem segundo esse amor,
e o amor lhe traz o senso de vastidão. Quando eu morava no Saara, se
árabes, surgindo à noite em volta de nossas fogueiras,
advertiam-nos sobre ameaças longínquas, o deserto se enlaçava e
ganhava um sentido. Aqueles mensageiros tinham construído sua
vastidão. Assim é para o simples cheiro de armário antigo, quando
desperta e encadeia lembranças. Patético é o senso de vastidão.
Mas
eu compreendo também que nada do que diz respeito ao homem se conta,
nem se mede. A verdadeira vastidão não é para o olhar, só é
concedida ao espírito. Valha o que vale a linguagem, pois é a
linguagem que enlaça as coisas.
E
me parece doravante entrever melhor o que é uma civilização. Uma
civilização é uma herança de crenças, de costumes e de
conhecimentos lentamente adquiridos durante séculos, difíceis às
vezes de justificar pela lógica, mas que se justificam por si
mesmos, como os caminhos, se conduzirem a algum lugar, pois abrem ao
homem sua vastidão interior.
Uma
má literatura nos falou da necessidade de evasão. Claro, nós
fugimos em viagem em busca da vastidão. Mas a vastidão não se
encontra. Ela se funda. E a evasão nunca levou a lugar algum.
Quando
o homem precisa, para sentir-se homem, correr em competições,
cantar em coro ou fazer guerra, são já os laços que ele se impõe
a fim de ligar-se a outrem e ao mundo. Mas, coitados! Se uma
civilização é forte, ela completa o homem, mesmo que ele esteja
ali imóvel.
Numa
certa cidadezinha silenciosa, sob a melancolia de um dia de chuva,
vejo uma enferma enclausurada que medita junto à sua janela. Quem é
ela? Que foi feito dela? Julgarei a civilização da pequena cidade
pela densidade dessa presença. Que valemos, uma vez imóveis?
No
dominicano que reza há uma presença densa. Esse homem nunca é tão
homem como quando está prosternado e imóvel. Pasteur retendo a
respiração sobre seu microscópio é uma presença densa. Pasteur
nunca é tão homem como quando observa. Então, ele progride. Então,
ele se apressa. Então avança com passo de gigante, ainda que
imóvel, e descobre a vastidão. Assim Cézanne, imóvel e mudo,
diante de seu esboço, é de uma presença inestimável. Ele nunca é
tão homem como quando se cala, experimenta e avalia. Então, sua
tela se torna mais vasta do que o mar.
Vastidão
concedida pela casa da infância, vastidão concedida por meu quarto
em Orconte, vastidão concedida a Pasteur pelo campo de seu
microscópio, vastidão aberta pelo poema, tantos bens frágeis e
maravilhosos que somente uma civilização distribui, pois a vastidão
é para o espírito não para os olhos, e não há vastidão sem
linguagem.
Mas
como reanimar o sentido da minha linguagem na hora em que tudo se
confunde? Quando as árvores do parque são ao mesmo tempo navio para
as gerações de uma família, e simples entrave que incomoda o
atirador. Quando o compressor dos bombardeiros, que desaba
pesadamente sobre as cidades, fez soçobrar um povo inteiro ao longo
das estradas, como um suco escuro. Quando a França mostra a desordem
sórdida de um formigueiro estripado. Quando se luta, não contra um
adversário palpável, mas contra os pedais que congelam, manetes que
emperram, parafusos que saltam…
— O
senhor pode descer?
Eu
posso descer. Descerei. Irei a Arras a baixa altitude. Tenho mil anos
de civilização atrás de mim para me ajudar. Mas eles não me
ajudam. Não é hora, sem dúvida, de recompensas.
*
* *
A
oitocentos quilômetros por hora e a três mil quinhentas e trinta
rotações por minuto, eu perco a altitude.
Deixei,
ao virar, um sol polar exageradamente vermelho. À minha frente, a
cinco ou seis quilômetros abaixo de mim, vejo uma banquisa de nuvens
de fronte retilínea. Toda uma parte da França está enterrada sob
sua sombra. Arras está sob sua sombra. Imagino que abaixo de minha
banquisa tudo esteja enegrecido. Trata-se do bojo de uma grande
sopeira onde borbulha a guerra. Engarrafamento de estradas,
incêndios, materiais dispersos, vilas esmagadas, bagunça, imensa
bagunça… Eles se agitam no absurdo, sob sua nuvem, como lesmas sob
pedras.
Essa
derrocada parece uma ruína. Precisaremos patinar na lama. Voltamos a
uma espécie de barbárie degradante. Tudo se decompõe lá embaixo!
Somos semelhantes a ricos viajantes que, tendo vivido muito tempo em
países de coral e palmeiras, voltam, uma vez arruinados, a
compartilhar, na mediocridade natal, pratos gordurosos de uma família
avarenta, a acidez das querelas intestinas, os inspetores, a má
consciência das preocupações financeiras, as falsas esperanças,
os despejos humilhantes, as arrogâncias do pensioneiro, a miséria e
a morte fétida no hospital. A morte aqui, ao menos, é limpa! Uma
morte de gelo e de fogo. De sol, de céu, de gelo e de fogo. Mas, lá
embaixo, essa digestão do barro!
_____________________________
*
“Je suis de mon enfance comme d’un pays” é uma das
frases mais célebres de Saint-Exupéry, sobretudo porque tem uma
ampla relação com O pequeno príncipe. De fato, Saint-Ex faz
da infância uma espécie de “território”, uma região que,
justamente nesta obra, ele visita ou na qual se refugia. A palavra
“país” estabeleceria, em português, uma “fronteira”
específica a tal domínio. Até poderíamos dizer “Sou da minha
infância como de um domínio”, mas entendo que se afaste
excessivamente do original. Fiz a mesma escolha no Pequeno quando
ele diz “pays des larmes”. Mas não é uma tradução
única neste caso, poderia haver outras. (N. T.)
Antoine de Sain-Exupéry, in Piloto de Guerra
Nenhum comentário:
Postar um comentário