quinta-feira, 20 de julho de 2023

Naufrágios | Capítulo 6



Os primeiros sinais da primavera tornaram-se mais pronunciados à medida que os dias passavam e a neve que cobria a aldeia começava a derreter. As casas vibravam quando a neve escorregava dos telhados. Vapor subia da palha úmida dos telhados de sapé.
Com a chegada da primavera, as pessoas tornaram-se mais animadas. Quando a temperatura subiu os peixes também vieram mais para perto da costa, e começaram a aparecer mariscos entre as pedras. O estoque de arroz de cada casa significava que não haveria falta de grãos, e com os frutos do mar também maduros para ser colhidos, a aldeia poderia se alimentar muito bem.
Isaku notou a mudança no rosto das pessoas. Um brilho de satisfação substituíra a expressão endurecida. Alguns homens sentavam-se fumando na frente de suas casas, enquanto outros ficavam na praia sem fazer nada.
Isaku ouviu dizer que alguns dos habitantes da aldeia estavam falando sobre realizar uma viagem à aldeia vizinha para vender sal. Um homem de meia-idade que Isaku encontrou na trilha olhou tristemente para cima, para a trilha que subia a encosta da montanha, e murmurou:
Será que temos mesmo que ir vender sal este ano?
A cada ano, no final de fevereiro, o sal produzido durante o inverno era carregado até a aldeia vizinha e trocado por grãos. Mas, com os fardos de arroz estocados em cada uma das casas, não havia necessidade de vender o sal em troca de uma quantidade ínfima de grãos.
O sal era pesado, e carregá-lo montanha acima pela trilha e através do passo era uma tarefa penosa. Em ocasiões anteriores, algumas pessoas haviam escorregado e quebrado a perna e, mesmo caminhando do nascer ao pôr-do-sol, levavam três dias para chegar à aldeia vizinha.
Na família de Isaku, era a mãe quem se encarregava da empreitada, mas ela franziu o cenho em silêncio quando Isaku disse:
Parece que muita gente está dizendo que não quer vender sal.
Um dia, quando o mar estava com ondas altas, Isaku foi até a casa do chefe da aldeia, onde foi feita uma reunião. A área de terra da casa estava repleta de homens e mulheres, O chefe da aldeia estava sentado junto do fogo, e ao lado dele encontrava-se o velho, que se levantou e ficou na frente deles.
Aqueles que quiserem ir vender sal vão partir ao nascer do dia, amanhã. Ouvi dizer que alguns de vocês não querem ir. Vocês entendem como isso é insensato? Nós vamos todos os anos. O que as pessoas da aldeia vizinha vão pensar se não aparecermos este ano? Sem dúvida vão imaginar que conseguimos alguma outra fonte de alimento. Logo ficarão sabendo que fomos abençoados por O-fune-sama com seus presentes. Vocês não pensaram nisso? — A voz do velho exprimia raiva.
Os que estavam ali reunidos assentiram solenemente, em silêncio, alguns baixando os olhos, envergonhados. O velho examinou-os por segundos antes de continuar:
Vocês vão partir amanhã cedo. A única comida que levarão será milho e peixe seco. Nem um único grão de arroz! Não façam nada nem deem nenhum indício que sugira que não estamos a ponto de morrer de fome.
Os olhos do velho adquiriram novamente o brilho do aço enquanto ele retornava à sua posição junto do fogo.
As pessoas se retiraram e Isaku foi para casa. Ele contou à mãe o que o velho dissera e depois falou:
Eu irei este ano.
Um fracote como você carregando sal? — disparou a mãe.
A humilhação que Isaku sentira quando não conseguira erguer o fardo de arroz voltou. A mãe havia rido quando o chamara de molenga, mas dessa vez ele podia sentir o desprezo na palavra “fracote”.
Na manhã seguinte a mãe acordou na Hora do Boi — cerca de duas da manhã —, preparou um pouco de milho e o embrulhou em algas, junto com alguns saury secos. Na Hora do Tigre — cerca de quatro da manhã — ela calçou os sapatos, pegou um bastão grosso e saiu de casa.
Isaku ficou diante da porta e observou a fila de pessoas emergir da casa do chefe da aldeia e seguir para a viagem para vender sal. O céu estava ficando azul. Com a carga de sal nas costas, as pessoas se apoiavam em varas e avançavam com passos determinados.
Quando chegaram à trilha da montanha, a luz do sol já iluminava parte do mar. Por fim, a fila de pessoas desapareceu no meio das árvores, passando pelos últimos sinais de neve na trilha.
Elas reapareceram na trilha da montanha sete dias depois, à tarde. Isaku correu para a trilha com os outros. As pessoas enfileiradas pareceram notá-los e pararam de andar. Baixaram a carga e se espalharam ao redor da trilha, sentando-se ou deitando-se de costas. Isaku correu até sua mãe. Havia manchas de sangue nos ombros dela, e os pés estavam cobertos de terra e sangue das bolhas arrebentadas. Os lábios dela estavam secos, e o peito subia e descia laboriosamente. Isaku e os outros usaram varas de carregar baldes para levar os grãos. A mãe dele se levantou e caminhou mancando encosta abaixo.
Os fardos de grãos foram empilhados na área junto da casa do chefe da aldeia. A mãe de Isaku e os outros vieram arrastando seus bastões, cansados, e sentaram-se, dobrando as pernas sob o corpo, do modo formal.
Isaku ficou na área, mas a julgar pela atmosfera na casa ele sentia que algo estava errado. Com olhares assustados nos rostos, cada uma das pessoas lá dentro parecia estar disputando o direito de contar algo para o chefe da aldeia. O rosto do chefe da aldeia ficou pálido.
Em pouco tempo a notícia se espalhou, informando que quando aqueles que levavam o sal para vender tinham visitado o intermediário dos contratos de servidão, que também agia como mercador de sal, eles haviam sido interrogados por dois homens. Esses homens eram de uma agência de barcos de transporte de um porto no extremo sul da ilha, que cuidava dos barcos na rota ocidental; eles estavam ali para perguntar sobre um barco com carga de duzentos fardos que havia desaparecido. O barco estava totalmente carregado com arroz e cerâmica, e tinha partido no final do ano anterior, com ventos favoráveis. Parecia que o tempo tinha ficado ruim no meio do viagem, mas os encarregados da agência de transporte não haviam ficado particularmente preocupados, porque o capitão do navio era um marinheiro veterano que havia enfrentado muitas tempestades no passado. Eles mencionaram que na primavera anterior o barco tinha passado por uma reforma em larga escala, onde madeira podre, metais enferrujados e coisas assim tinham sido substituídos. Era um navio antigo que chamavam de Vovozinha, que começara a ser usado fazia treze anos.
O barco devia estar indo para norte pela costa oeste da ilha, mas desaparecera no caminho. Não chegara ao destino, e também não havia indícios de ter procurado abrigo em nenhum porto. O capitão do barco era um homem honesto; não havia a hipótese de que ele houvesse fugido no barco para roubar a carga. Ou o navio afundara em alto-mar, ou se destroçara em algum ponto da costa.
Se o navio tivesse se chocado contra alguma pedra na costa, deveria ser possível recuperar parte da carga. Como tinham presumido que deviam procurar apenas na costa ocidental, fora para lá que a agência despachara seus homens.
O momento de desaparecimento do navio era mais ou menos o mesmo do surgimento de O-fune-sama, mas como o barco que batera contra o recife na frente da aldeia tinha capacidade de cerca de trezentos fardos, ficava claro que aqueles homens estavam procurando um outro navio. Mas o fato de aqueles homens estarem procurando um navio perdido colocava a aldeia em grande perigo.
Isaku e os outros pareciam ansiosos ao entrar na área de terra da casa, olhando para o chefe da aldeia.
O chefe voltou para junto do fogo e falou em voz baixa com os membros mais idosos da comunidade. Ainda havia evidências na aldeia de todo tipo de coisas trazidas para eles por O-fune-sama. Apesar de a madeira do barco ter sido levada para um local na floresta, o arroz e outras mercadorias encontradas junto com a carga haviam sido distribuídos entre as famílias. Se aqueles homens fizessem alguém os guiar até a aldeia e dessem uma olhada dentro das casas, encontrariam artigos que um povo como eles jamais poderia ter e ficariam desconfiados. Sem dúvida iriam perceber que aquelas pessoas haviam se apossado da carga de um navio naufragado.
Os oficiais viriam para prender os habitantes da aldeia e os submeteriam a duro interrogatório. No transcorrer desse interrogatório, a prática antiga da aldeia de atrair O-fune-sama seria revelada. Se isso acontecesse, o chefe da aldeia e muitos outros, incluindo mulheres e crianças, estariam condenados a um fim trágico. A aldeia deixaria de existir. O fato de os homens da agência de transporte terem chegado até a aldeia vizinha e de terem se desviado de seu caminho para interrogar até aqueles que estavam vendendo sal era uma prova clara de que a aldeia deles estava dentro da área onde calculavam que o navio pudesse ter naufragado.
Todos os homens reunidos com o chefe da aldeia ficaram pálidos; alguns usavam as duas mãos para impedir que os joelhos tremessem violentamente, Isaku também começou a tremer.
O chefe da aldeia, de constituição franzina, disse alguma coisa para o velho, que assentiu, levantou-se e foi até a assembleia de aldeões reunidos.
Escutem com atenção. Vamos esconder cada coisa nas montanhas. Tudo que O-fune-sama nos trouxe. Vocês vão construir cabanas lá em cima para estocar as coisas, mas primeiro temos de levar tudo para a floresta. As cabanas serão construídas depois — disse o velho em tom muito sério.
Os habitantes da vila se curvaram, depois se ergueram e correram para casa.
Isaku observou a mãe se levantar, e a seguiu enquanto arrastava os pés, apoiando-se numa vara. Quando pensou nos ombros cortados e nos pés machucados da mãe, e como ela carregara de forma instável aqueles fardos de arroz, amaldiçoou sua própria falta de força.
Quando a mãe entrou em casa, ela parou diante de um dos fardos de arroz estocados na área de terra e o ergueu no ombro. O grande peso era obviamente um desafio para ela, que cambaleou ao sair pela porta de trás.
Isaku a seguiu, carregando a jarra com óleo de coza e uma pequena bacia com molho de soja.
A mãe avançou lentamente, subindo a encosta estreita para as montanhas na parte de trás da vila. De vez em quando parava para recuperar o fôlego. Isaku a acompanhava temeroso, receando que as costas da mãe se quebrassem.
Havia árvores por todos os lados quando a mãe entrou pela trilha da floresta adentro. A luz do sol se esgueirava por entre as folhagens, permitindo que os pessegueiros florescessem nos menores espaços possíveis. A mãe colocou o fardo de arroz atrás de uma pedra grande e se sentou, ofegando, com pingos de suor escorrendo pelo rosto.
Corte um pouco de lenha com o machado e faça uma fundação — disse ela, levantando-se e indo para a trilha.
Isaku correu para casa e pegou uma bacia cheia de vinho e um machete antes de voltar para a floresta. Bateu com a lâmina do machado no tronco de uma árvore; depois de derrubá-la ele cortou os galhos com o machado e deitou o tronco no chão por trás da rocha. Após alinhar vários desses troncos lado a lado, sua mãe colocou os fardos de arroz em cima deles. Já era quase noite quando terminaram de colocar ali o oitavo e último fardo, do qual já haviam consumido uma parte, e Isaku os cobriu com esteiras de palha para protegê-los da chuva.
Naquela noite a mãe de Isaku teve febre muito alta. Isaku aplicou um cataplasma de ervas medicinais nos machucados dos ombros e pés, mas os ferimentos estavam cheios de pus. A mãe cerrava os dentes e gemia de dor.
Na manhã seguinte, Isaku fez sopa de legumes e alimentou a mãe prostrada, assim como o irmãozinho e a irmãzinha, antes de ir para a floresta com Isokichi. Trabalharam arduamente para fazer uma cabana com pedaços de madeira. A única preocupação deles era proteger os fardos da chuva e do orvalho, por isso colocaram palha de grama entre as tábuas do teto e do chão. Sombras de galhos balançavam por cima do teto.
Quando voltaram para casa, a mãe estava sentada junto do fogo, assando feijões.
Você já consegue levantar-se? — perguntou Isaku, mas a mãe permaneceu em silêncio.
O rosto dela estava pálido e doentio, as faces afundadas, e as pernas, mantidas separadas, azuis e inchadas. Ele pegou o cataplasma de ervas medicinais no canto do chão de terra e o colocou perto da mãe.
Vá até a casa do chefe da aldeia e informe que cada grão de arroz foi levado para a floresta e que você construiu uma cabana para proteger tudo — disse a mãe, continuando a cuidar dos feijões.
Isaku assentiu e saiu de casa. O céu a leste tinha um brilho vermelho, e o mar brilhava abaixo. A cor do céu o fez lembrar-se do sangue dos marinheiros mortos. Ele correu pela trilha da aldeia. [...]

Akira Yoshimura, in Naufrágios

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