Os
primeiros sinais da primavera tornaram-se mais pronunciados à medida
que os dias passavam e a neve que cobria a aldeia começava a
derreter. As casas vibravam quando a neve escorregava dos telhados.
Vapor subia da palha úmida dos telhados de sapé.
Com
a chegada da primavera, as pessoas tornaram-se mais animadas. Quando
a temperatura subiu os peixes também vieram mais para perto da
costa, e começaram a aparecer mariscos entre as pedras. O estoque de
arroz de cada casa significava que não haveria falta de grãos, e
com os frutos do mar também maduros para ser colhidos, a aldeia
poderia se alimentar muito bem.
Isaku
notou a mudança no rosto das pessoas. Um brilho de satisfação
substituíra a expressão endurecida. Alguns homens sentavam-se
fumando na frente de suas casas, enquanto outros ficavam na praia sem
fazer nada.
Isaku
ouviu dizer que alguns dos habitantes da aldeia estavam falando sobre
realizar uma viagem à aldeia vizinha para vender sal. Um homem de
meia-idade que Isaku encontrou na trilha olhou tristemente para cima,
para a trilha que subia a encosta da montanha, e murmurou:
— Será
que temos mesmo que ir vender sal este ano?
A
cada ano, no final de fevereiro, o sal produzido durante o inverno
era carregado até a aldeia vizinha e trocado por grãos. Mas, com os
fardos de arroz estocados em cada uma das casas, não havia
necessidade de vender o sal em troca de uma quantidade ínfima de
grãos.
O
sal era pesado, e carregá-lo montanha acima pela trilha e através
do passo era uma tarefa penosa. Em ocasiões anteriores, algumas
pessoas haviam escorregado e quebrado a perna e, mesmo caminhando do
nascer ao pôr-do-sol, levavam três dias para chegar à aldeia
vizinha.
Na
família de Isaku, era a mãe quem se encarregava da empreitada, mas
ela franziu o cenho em silêncio quando Isaku disse:
— Parece
que muita gente está dizendo que não quer vender sal.
Um
dia, quando o mar estava com ondas altas, Isaku foi até a casa do
chefe da aldeia, onde foi feita uma reunião. A área de terra da
casa estava repleta de homens e mulheres, O chefe da aldeia estava
sentado junto do fogo, e ao lado dele encontrava-se o velho, que se
levantou e ficou na frente deles.
— Aqueles
que quiserem ir vender sal vão partir ao nascer do dia, amanhã.
Ouvi dizer que alguns de vocês não querem ir. Vocês entendem como
isso é insensato? Nós vamos todos os anos. O que as pessoas da
aldeia vizinha vão pensar se não aparecermos este ano? Sem dúvida
vão imaginar que conseguimos alguma outra fonte de alimento. Logo
ficarão sabendo que fomos abençoados por O-fune-sama com
seus presentes. Vocês não pensaram nisso? — A voz do velho
exprimia raiva.
Os
que estavam ali reunidos assentiram solenemente, em silêncio, alguns
baixando os olhos, envergonhados. O velho examinou-os por segundos
antes de continuar:
— Vocês
vão partir amanhã cedo. A única comida que levarão será milho e
peixe seco. Nem um único grão de arroz! Não façam nada nem deem
nenhum indício que sugira que não estamos a ponto de morrer de
fome.
Os
olhos do velho adquiriram novamente o brilho do aço enquanto ele
retornava à sua posição junto do fogo.
As
pessoas se retiraram e Isaku foi para casa. Ele contou à mãe o que
o velho dissera e depois falou:
— Eu
irei este ano.
— Um
fracote como você carregando sal? — disparou a mãe.
A
humilhação que Isaku sentira quando não conseguira erguer o fardo
de arroz voltou. A mãe havia rido quando o chamara de molenga, mas
dessa vez ele podia sentir o desprezo na palavra “fracote”.
Na
manhã seguinte a mãe acordou na Hora do Boi — cerca de duas da
manhã —, preparou um pouco de milho e o embrulhou em algas, junto
com alguns saury secos. Na Hora do Tigre — cerca de quatro
da manhã — ela calçou os sapatos, pegou um bastão grosso e saiu
de casa.
Isaku
ficou diante da porta e observou a fila de pessoas emergir da casa do
chefe da aldeia e seguir para a viagem para vender sal. O céu estava
ficando azul. Com a carga de sal nas costas, as pessoas se apoiavam
em varas e avançavam com passos determinados.
Quando
chegaram à trilha da montanha, a luz do sol já iluminava parte do
mar. Por fim, a fila de pessoas desapareceu no meio das árvores,
passando pelos últimos sinais de neve na trilha.
Elas
reapareceram na trilha da montanha sete dias depois, à tarde. Isaku
correu para a trilha com os outros. As pessoas enfileiradas pareceram
notá-los e pararam de andar. Baixaram a carga e se espalharam ao
redor da trilha, sentando-se ou deitando-se de costas. Isaku correu
até sua mãe. Havia manchas de sangue nos ombros dela, e os pés
estavam cobertos de terra e sangue das bolhas arrebentadas. Os lábios
dela estavam secos, e o peito subia e descia laboriosamente. Isaku e
os outros usaram varas de carregar baldes para levar os grãos. A mãe
dele se levantou e caminhou mancando encosta abaixo.
Os
fardos de grãos foram empilhados na área junto da casa do chefe da
aldeia. A mãe de Isaku e os outros vieram arrastando seus bastões,
cansados, e sentaram-se, dobrando as pernas sob o corpo, do modo
formal.
Isaku
ficou na área, mas a julgar pela atmosfera na casa ele sentia que
algo estava errado. Com olhares assustados nos rostos, cada uma das
pessoas lá dentro parecia estar disputando o direito de contar algo
para o chefe da aldeia. O rosto do chefe da aldeia ficou pálido.
Em
pouco tempo a notícia se espalhou, informando que quando aqueles que
levavam o sal para vender tinham visitado o intermediário dos
contratos de servidão, que também agia como mercador de sal, eles
haviam sido interrogados por dois homens. Esses homens eram de uma
agência de barcos de transporte de um porto no extremo sul da ilha,
que cuidava dos barcos na rota ocidental; eles estavam ali para
perguntar sobre um barco com carga de duzentos fardos que havia
desaparecido. O barco estava totalmente carregado com arroz e
cerâmica, e tinha partido no final do ano anterior, com ventos
favoráveis. Parecia que o tempo tinha ficado ruim no meio do viagem,
mas os encarregados da agência de transporte não haviam ficado
particularmente preocupados, porque o capitão do navio era um
marinheiro veterano que havia enfrentado muitas tempestades no
passado. Eles mencionaram que na primavera anterior o barco tinha
passado por uma reforma em larga escala, onde madeira podre, metais
enferrujados e coisas assim tinham sido substituídos. Era um navio
antigo que chamavam de Vovozinha, que começara a ser usado
fazia treze anos.
O
barco devia estar indo para norte pela costa oeste da ilha, mas
desaparecera no caminho. Não chegara ao destino, e também não
havia indícios de ter procurado abrigo em nenhum porto. O capitão
do barco era um homem honesto; não havia a hipótese de que ele
houvesse fugido no barco para roubar a carga. Ou o navio afundara em
alto-mar, ou se destroçara em algum ponto da costa.
Se
o navio tivesse se chocado contra alguma pedra na costa, deveria ser
possível recuperar parte da carga. Como tinham presumido que deviam
procurar apenas na costa ocidental, fora para lá que a agência
despachara seus homens.
O
momento de desaparecimento do navio era mais ou menos o mesmo do
surgimento de O-fune-sama, mas como o barco que batera contra
o recife na frente da aldeia tinha capacidade de cerca de trezentos
fardos, ficava claro que aqueles homens estavam procurando um outro
navio. Mas o fato de aqueles homens estarem procurando um navio
perdido colocava a aldeia em grande perigo.
Isaku
e os outros pareciam ansiosos ao entrar na área de terra da casa,
olhando para o chefe da aldeia.
O
chefe voltou para junto do fogo e falou em voz baixa com os membros
mais idosos da comunidade. Ainda havia evidências na aldeia de todo
tipo de coisas trazidas para eles por O-fune-sama. Apesar de a
madeira do barco ter sido levada para um local na floresta, o arroz e
outras mercadorias encontradas junto com a carga haviam sido
distribuídos entre as famílias. Se aqueles homens fizessem alguém
os guiar até a aldeia e dessem uma olhada dentro das casas,
encontrariam artigos que um povo como eles jamais poderia ter e
ficariam desconfiados. Sem dúvida iriam perceber que aquelas pessoas
haviam se apossado da carga de um navio naufragado.
Os
oficiais viriam para prender os habitantes da aldeia e os submeteriam
a duro interrogatório. No transcorrer desse interrogatório, a
prática antiga da aldeia de atrair O-fune-sama seria
revelada. Se isso acontecesse, o chefe da aldeia e muitos outros,
incluindo mulheres e crianças, estariam condenados a um fim trágico.
A aldeia deixaria de existir. O fato de os homens da agência de
transporte terem chegado até a aldeia vizinha e de terem se desviado
de seu caminho para interrogar até aqueles que estavam vendendo sal
era uma prova clara de que a aldeia deles estava dentro da área onde
calculavam que o navio pudesse ter naufragado.
Todos
os homens reunidos com o chefe da aldeia ficaram pálidos; alguns
usavam as duas mãos para impedir que os joelhos tremessem
violentamente, Isaku também começou a tremer.
O
chefe da aldeia, de constituição franzina, disse alguma coisa para
o velho, que assentiu, levantou-se e foi até a assembleia de aldeões
reunidos.
— Escutem
com atenção. Vamos esconder cada coisa nas montanhas. Tudo que
O-fune-sama nos trouxe. Vocês vão construir cabanas lá em
cima para estocar as coisas, mas primeiro temos de levar tudo para a
floresta. As cabanas serão construídas depois — disse o velho em
tom muito sério.
Os
habitantes da vila se curvaram, depois se ergueram e correram para
casa.
Isaku
observou a mãe se levantar, e a seguiu enquanto arrastava os pés,
apoiando-se numa vara. Quando pensou nos ombros cortados e nos pés
machucados da mãe, e como ela carregara de forma instável aqueles
fardos de arroz, amaldiçoou sua própria falta de força.
Quando
a mãe entrou em casa, ela parou diante de um dos fardos de arroz
estocados na área de terra e o ergueu no ombro. O grande peso era
obviamente um desafio para ela, que cambaleou ao sair pela porta de
trás.
Isaku
a seguiu, carregando a jarra com óleo de coza e uma pequena bacia
com molho de soja.
A
mãe avançou lentamente, subindo a encosta estreita para as
montanhas na parte de trás da vila. De vez em quando parava para
recuperar o fôlego. Isaku a acompanhava temeroso, receando que as
costas da mãe se quebrassem.
Havia
árvores por todos os lados quando a mãe entrou pela trilha da
floresta adentro. A luz do sol se esgueirava por entre as folhagens,
permitindo que os pessegueiros florescessem nos menores espaços
possíveis. A mãe colocou o fardo de arroz atrás de uma pedra
grande e se sentou, ofegando, com pingos de suor escorrendo pelo
rosto.
— Corte
um pouco de lenha com o machado e faça uma fundação — disse ela,
levantando-se e indo para a trilha.
Isaku
correu para casa e pegou uma bacia cheia de vinho e um machete antes
de voltar para a floresta. Bateu com a lâmina do machado no tronco
de uma árvore; depois de derrubá-la ele cortou os galhos com o
machado e deitou o tronco no chão por trás da rocha. Após alinhar
vários desses troncos lado a lado, sua mãe colocou os fardos de
arroz em cima deles. Já era quase noite quando terminaram de colocar
ali o oitavo e último fardo, do qual já haviam consumido uma parte,
e Isaku os cobriu com esteiras de palha para protegê-los da chuva.
Naquela
noite a mãe de Isaku teve febre muito alta. Isaku aplicou um
cataplasma de ervas medicinais nos machucados dos ombros e pés, mas
os ferimentos estavam cheios de pus. A mãe cerrava os dentes e gemia
de dor.
Na
manhã seguinte, Isaku fez sopa de legumes e alimentou a mãe
prostrada, assim como o irmãozinho e a irmãzinha, antes de ir para
a floresta com Isokichi. Trabalharam arduamente para fazer uma cabana
com pedaços de madeira. A única preocupação deles era proteger os
fardos da chuva e do orvalho, por isso colocaram palha de grama entre
as tábuas do teto e do chão. Sombras de galhos balançavam por cima
do teto.
Quando
voltaram para casa, a mãe estava sentada junto do fogo, assando
feijões.
— Você
já consegue levantar-se? — perguntou Isaku, mas a mãe permaneceu
em silêncio.
O
rosto dela estava pálido e doentio, as faces afundadas, e as pernas,
mantidas separadas, azuis e inchadas. Ele pegou o cataplasma de ervas
medicinais no canto do chão de terra e o colocou perto da mãe.
— Vá
até a casa do chefe da aldeia e informe que cada grão de arroz foi
levado para a floresta e que você construiu uma cabana para proteger
tudo — disse a mãe, continuando a cuidar dos feijões.
Isaku
assentiu e saiu de casa. O céu a leste tinha um brilho vermelho, e o
mar brilhava abaixo. A cor do céu o fez lembrar-se do sangue dos
marinheiros mortos. Ele correu pela trilha da aldeia. [...]
Akira Yoshimura, in Naufrágios
Nenhum comentário:
Postar um comentário