Thulane
e eu desenvolvemos uma relação muito próxima e intensa. Quando eu
precisava ir ao mercado, por exemplo, e a deixava alguns minutos com
a avó, ela chorava ininterruptamente até eu voltar. Mesmo quando o
pai chegava do trabalho e eu pedia pra ele cuidar dela enquanto eu
tomava um banho, ela chorava. Muitas vezes precisei colocá-la no
carrinho e levá-la para o banheiro comigo. Não conseguia ler um
livro, assistir a um programa que não fosse infantil, exceto quando
Thulane dormia. Mas aí eu já estava tão exausta da rotina que
aproveitava para descansar.
Minha
vida era toda voltada para a maternidade, vó. Thulane estava ótima,
saudável, crescia em um ambiente seguro, amada e eu me sentia feliz
por isso, pelo fato de uma criança negra poder ter conforto, pais
presentes, uma família afetuosa. Mas, ao mesmo tempo, eu me sentia
sozinha, culpada por não estar plenamente feliz, por não poder
ligar chorando pra minha mãe e desabafar, por não poder abraçar
meu pai e confessar que ele tinha razão, que, de fato, eu havia sido
criada para ser uma alma independente.
Eu
queria mais do que a vida me dava naquele momento, vó. Não me
identificava com quem sonhava apenas com um carro novo. Detestava ter
que conversar somente sobre maternidade. Eu não queria falar só
sobre desenhos animados e pediatras, aulas de musicalização
infantil e quando teria um outro filho. Eu não lia revistas que
vendiam manchetes como “lute pelo seu amor, não abra mão do seu
homem”. Eu não queria ficar apenas no quarto ou na cozinha. Era
desesperador me ver presa em muitos tentáculos que fingiam não ver
que eu era diferente. Eu não julgava quem se identificasse, mas era
julgada por não me identificar.
Sonhava
em ter você e minha mãe disputando quem ficaria com Thulane para
que eu pudesse andar na praia sossegada. Eram raros os momentos em
que eu podia contar com alguém para isso — a avó paterna
trabalhava fora e foram poucas as vezes em que pôde me ajudar nesse
sentido. Eu amava ser mãe, mas odiava o papel que a maternidade me
impunha. Admirava uma vizinha, mãe solo, que vivia sem se importar
com os outros. Deixava a filha com a mãe e saía com as amigas,
voltava de madrugada. Entre uma mamadeira e uma canção de ninar, eu
a admirava. Ela enfrentava tudo, vizinhos intrometidos, conselhos não
requisitados, nem que fosse para sentir um resquício da vida
pós-maternidade. E fazia daquele resquício um oceano. Não aceitava
o clima de velório permanente, uma espécie de “morte viva”.
Algumas
mulheres me achavam louca por não me sentir preenchida com a
maternidade e a vida de casada. Amava ser mãe, como já disse, mas
detestava o que se entendia por maternidade: a abdicação da nossa
existência como sujeito. Tinha trancado faculdade quando engravidei,
agora estava desempregada e dependia exclusivamente do meu marido. De
alguma forma, sentia que traía o que meu pai me ensinou.
Não
me sentia plena naquela situação, estava deslocada no mundo.
Parecia que aquele seria o fim da linha pra mim, jamais saberia o que
é realização profissional ou o prazer de ter um diploma. O que eu
mais ouvia, quando levava Thulane ao médico ou às reuniões de
família, era: “Quando vai ter o segundo?”, “Tem que ter outro
logo, assim já cria os dois juntos”. E tudo soava como uma
penitência, e não o prazer de conceber. Ter outro filho não estava
nos meus planos. O que eu queria era estudar, fazer algo que pudesse
dar orgulho a mim e à minha filha.
Estava
me sentindo sem rumo, sem colo, e um dia, em total desespero, me
ajoelhei e pedi para as forças maiores que me dessem uma luz. Estava
ficando deprimida e queria entender que caminho seguir. Quando se
está perdida, qualquer saída pode soar sedutora, e eu não queria
qualquer coisa. Acendi uma vela, como você me ensinou, vó, e rezei.
Dias
depois sonhei com meus pais. Eles diziam estar felizes por ver que eu
havia me tornado uma pessoa ética e com valores. Minha mãe me
chamava de “meu bebê”, como costumava fazer, e, acima de tudo,
me aconselhava a cuidar do espírito. Meu pai me pedia para perdoar a
namorada dele, uma vez que foi difícil nossa convivência no momento
da doença dele. Acordei aos prantos.
A
partir daquele dia, 5 de dezembro de 2006, as coisas começaram a
mudar e eu parei de me acovardar diante da vida. Dois meses depois,
estava empregada.
Djamila Ribeiro, in Cartas para minha avó
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