quarta-feira, 5 de julho de 2023

Cartas para minha avó

Thulane e eu desenvolvemos uma relação muito próxima e intensa. Quando eu precisava ir ao mercado, por exemplo, e a deixava alguns minutos com a avó, ela chorava ininterruptamente até eu voltar. Mesmo quando o pai chegava do trabalho e eu pedia pra ele cuidar dela enquanto eu tomava um banho, ela chorava. Muitas vezes precisei colocá-la no carrinho e levá-la para o banheiro comigo. Não conseguia ler um livro, assistir a um programa que não fosse infantil, exceto quando Thulane dormia. Mas aí eu já estava tão exausta da rotina que aproveitava para descansar.
Minha vida era toda voltada para a maternidade, vó. Thulane estava ótima, saudável, crescia em um ambiente seguro, amada e eu me sentia feliz por isso, pelo fato de uma criança negra poder ter conforto, pais presentes, uma família afetuosa. Mas, ao mesmo tempo, eu me sentia sozinha, culpada por não estar plenamente feliz, por não poder ligar chorando pra minha mãe e desabafar, por não poder abraçar meu pai e confessar que ele tinha razão, que, de fato, eu havia sido criada para ser uma alma independente.
Eu queria mais do que a vida me dava naquele momento, vó. Não me identificava com quem sonhava apenas com um carro novo. Detestava ter que conversar somente sobre maternidade. Eu não queria falar só sobre desenhos animados e pediatras, aulas de musicalização infantil e quando teria um outro filho. Eu não lia revistas que vendiam manchetes como “lute pelo seu amor, não abra mão do seu homem”. Eu não queria ficar apenas no quarto ou na cozinha. Era desesperador me ver presa em muitos tentáculos que fingiam não ver que eu era diferente. Eu não julgava quem se identificasse, mas era julgada por não me identificar.
Sonhava em ter você e minha mãe disputando quem ficaria com Thulane para que eu pudesse andar na praia sossegada. Eram raros os momentos em que eu podia contar com alguém para isso — a avó paterna trabalhava fora e foram poucas as vezes em que pôde me ajudar nesse sentido. Eu amava ser mãe, mas odiava o papel que a maternidade me impunha. Admirava uma vizinha, mãe solo, que vivia sem se importar com os outros. Deixava a filha com a mãe e saía com as amigas, voltava de madrugada. Entre uma mamadeira e uma canção de ninar, eu a admirava. Ela enfrentava tudo, vizinhos intrometidos, conselhos não requisitados, nem que fosse para sentir um resquício da vida pós-maternidade. E fazia daquele resquício um oceano. Não aceitava o clima de velório permanente, uma espécie de “morte viva”.
Algumas mulheres me achavam louca por não me sentir preenchida com a maternidade e a vida de casada. Amava ser mãe, como já disse, mas detestava o que se entendia por maternidade: a abdicação da nossa existência como sujeito. Tinha trancado faculdade quando engravidei, agora estava desempregada e dependia exclusivamente do meu marido. De alguma forma, sentia que traía o que meu pai me ensinou.
Não me sentia plena naquela situação, estava deslocada no mundo. Parecia que aquele seria o fim da linha pra mim, jamais saberia o que é realização profissional ou o prazer de ter um diploma. O que eu mais ouvia, quando levava Thulane ao médico ou às reuniões de família, era: “Quando vai ter o segundo?”, “Tem que ter outro logo, assim já cria os dois juntos”. E tudo soava como uma penitência, e não o prazer de conceber. Ter outro filho não estava nos meus planos. O que eu queria era estudar, fazer algo que pudesse dar orgulho a mim e à minha filha.
Estava me sentindo sem rumo, sem colo, e um dia, em total desespero, me ajoelhei e pedi para as forças maiores que me dessem uma luz. Estava ficando deprimida e queria entender que caminho seguir. Quando se está perdida, qualquer saída pode soar sedutora, e eu não queria qualquer coisa. Acendi uma vela, como você me ensinou, vó, e rezei.
Dias depois sonhei com meus pais. Eles diziam estar felizes por ver que eu havia me tornado uma pessoa ética e com valores. Minha mãe me chamava de “meu bebê”, como costumava fazer, e, acima de tudo, me aconselhava a cuidar do espírito. Meu pai me pedia para perdoar a namorada dele, uma vez que foi difícil nossa convivência no momento da doença dele. Acordei aos prantos.
A partir daquele dia, 5 de dezembro de 2006, as coisas começaram a mudar e eu parei de me acovardar diante da vida. Dois meses depois, estava empregada.

Djamila Ribeiro, in Cartas para minha avó

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