quarta-feira, 19 de julho de 2023

A propósito da neve úmida[1] | 3


Encontrei ali mais dois ex-colegas da escola. Eles pareciam conversar sobre algo muito importante. Nenhum deles pareceu prestar muita atenção à minha entrada, o que era estranho, pois fazia anos que não nos víamos. Pelo visto, consideravam-me algo semelhante a uma mosca, das mais comuns. Não me tratavam assim nem mesmo na escola, embora lá todos me odiassem. É claro que eu compreendia que agora eles deviam me desprezar devido ao meu fracasso na carreira de funcionário, e também porque minha aparência era péssima, andava mal vestido, o que, aos olhos deles, era um sinal evidente de minha incapacidade e pouca importância. Mesmo assim, eu não esperava tal grau de desprezo. Símonov até demonstrou espanto com a minha chegada. Antes também ele sempre parecia de certo modo se espantar com minhas visitas. Tudo isso me deixou desconcertado. Sentei-me com uma certa angústia e fiquei ouvindo o que eles diziam.
Peguei no meio uma conversa séria e até mesmo empolgada a respeito de um jantar de despedida que aqueles senhores queriam organizar já para o dia seguinte, em homenagem a um amigo, Zverkov, que servia no exército como oficial e estava de partida para uma província distante. Monsieur Zverkov tinha sido também meu colega durante toda a escola. Passei a odiá-lo especialmente nas últimas séries. Nos primeiros anos, ele era apenas um menino bonitinho e esperto, de quem todos gostavam. Aliás, eu o odiava também nos primeiros anos por ele ser bonitinho e esperto. Ele foi sempre um mau estudante e, quanto mais velho, pior. Apesar de tudo, conseguiu terminar o curso, pois era protegido de alguém importante. No último ano ele recebeu de herança duzentas almas e, como a maioria de nós era pobre, ele começou a fanfarronar até diante de nós. Era um sujeito vulgar em alto grau, mas era também um bom rapaz, mesmo quando fanfarronava. Entre os estudantes, apesar das demonstrações externas, fantásticas e bombásticas de honra e amor-próprio, todo mundo, com raras exceções, cortejava esse Zverkov e, quanto mais ele fanfarronava, mais o cortejavam. E não buscavam alguma vantagem, faziam aquilo apenas porque ele fora privilegiado pela natureza, que lhe concedera aqueles dons. Acresce que entre nós ele era considerado um especialista em formas corretas de agir e em boas maneiras. Este último item me deixava furioso. Eu detestava sua voz cortante, cheia de autoconfiança, sua adoração das próprias piadas, na realidade terrivelmente idiotas, embora ele tivesse uma língua ferina; odiava seu rosto bonito, mas bobinho (pelo qual, aliás, eu trocaria de boa vontade o meu rosto inteligente), e suas maneiras despachadas de oficial dos anos quarenta. Odiava quando ele falava de seus futuros sucessos com as mulheres (ele não se decidia a procurar mulheres enquanto não tivesse galões de oficial e aguardava-os com impaciência) e também de que ele iria a cada instante bater-se em duelo. Lembro-me de uma vez em que eu, que ficava sempre calado, me engalfinhei de repente com Zverkov, que conversava no tempo livre com os colegas sobre suas futuras aventuras amorosas e, por farra, como um cãozinho novo que se espoja ao sol, declarou que nenhuma das camponesas jovens de sua aldeia deixaria de receber sua atenção, que isso era um droit de seigneur e que, se os homens ousassem protestar, ele haveria de açoitar aqueles canalhas barbudos um por um e cobraria seus tributos em dobro. Nossos cretinos o aplaudiram por isso, mas eu me atraquei com ele, e não foi por pena das moças e de seus pais, mas simplesmente porque um inseto como aquele recebia tantos aplausos. Daquela vez eu venci, mas Zverkov, embora fosse burro, era alegre e atrevido e soube se sair bem por levar tudo na brincadeira, o que, verdade seja dita, diminuiu um pouco a minha vitória. Depois disso, ele me subjugou várias vezes, mas sem maldade, de brincadeira, ao passar por mim com um riso nos lábios. Cheio de raiva, eu o desprezava com o meu silêncio. Na ocasião de nossa formatura, ele demonstrou a intenção de se aproximar de mim; não me opus frontalmente, porque o fato me deixou lisonjeado, mas em seguida nos separamos naturalmente.
Mais tarde, ouvi narrativas sobre seus sucessos na caserna e como tenente, e também sobre suas farras. Depois ouvi outros boatos sobre seus avanços na carreira. Ele já não me cumprimentava na rua e eu desconfiava de que ele tinha medo de se comprometer se mostrasse conhecer alguém tão insignificante como eu. Vi-o certa vez no teatro, no terceiro balcão, já com alamares. Ele se curvava e fazia mesuras para as filhas de um velho general. Nesses três anos ele havia decaído muito, embora continuasse bastante bonito e ágil; parecia inchado e começava a engordar. Via-se que, lá pelos trinta anos, estaria completamente obeso. E era para esse Zverkov, que finalmente estava de partida, que meus colegas queriam oferecer um jantar. Eles sempre se encontraram durante esses três anos, embora no fundo não se considerassem do mesmo nível que ele, estou certo disso.
Um dos outros dois visitantes de Símonov era Ferfítchkin, russo descendente de alemães, de estatura baixa e cara de macaco, um idiota que zombava de todo mundo. Era o meu pior inimigo desde as primeiras séries – um calhorda insolente, um fanfarrãozinho que encenava ter um amor-próprio muito sensível, embora lá no íntimo fosse, evidentemente, o maior covarde. Era um dentre os admiradores de Zverkov, que o bajulavam abertamente e estavam sempre lhe pedindo dinheiro emprestado. O outro visitante de Símonov, Trudoliúbov, não tinha nenhuma característica especial na sua personalidade. Era um militar alto, com um rosto frio, bastante honesto, mas que se inclinava diante de qualquer um que fosse bem-sucedido, e só era capaz de conversar sobre produção. Era parente distante de Zverkov, o que, embora isso pareça tolo, lhe conferia no nosso meio alguma importância. Para ele, eu não era nada, embora me tratasse de uma maneira, eu não diria polida, mas suportável.
Vejamos, se forem sete rublos de cada um – disse Trudoliúbov –, como somos três, serão vinte e um rublos. Dá para jantar bem. Zverkov, naturalmente, não vai pagar.
Claro, se fomos nós que o convidamos – decidiu Símonov.
Vocês acreditam mesmo – intrometeu-se Ferfítchkin de maneira arrogante e veemente, como um lacaio insolente que se vangloria das condecorações do seu patrão general – que Zverkov vai nos deixar pagar tudo? Ele vai aceitar por delicadeza, mas, em compensação, vai pedir champanhe por sua conta, uma meia dúzia.
Ora, para que meia dúzia para nós quatro? – observou Trudoliúbov, que só prestara atenção na meia dúzia.
Bom, então somos três, quatro com Zverkov, são vinte e um rublos para o Hôtel de Paris, amanhã às cinco horas – concluiu Símonov, que tinha sido eleito organizador.
Como vinte e um? – disse eu, um tanto alterado e, creio, até mesmo meio ofendido. – Se contarem comigo, não são vinte e um rublos, e sim vinte e oito.
Julguei que oferecer-me de repente, sem que ninguém esperasse, seria um gesto até bem bonito e que todos eles imediatamente se renderiam a mim e me olhariam com respeito.
Por acaso o senhor também quer ir? – perguntou Símonov aborrecido e de certo modo evitando olhar para mim.
Ele me conhecia de cor e salteado. Fiquei furioso por ele me conhecer tão bem.
E por que não? Parece que eu também fui seu colega e confesso que até me sinto ofendido por não terem me convidado – disse eu, começando a me alterar de novo.
Mas onde nós poderíamos encontrá-lo? – intrometeu-se indelicadamente Ferfítchkin.
O senhor nunca se deu bem com Zverkov – acrescentou Trudoliúbov, franzindo o cenho.
Mas eu já me agarrara à idéia e não a soltava.
Acho que ninguém tem o direito de julgar isso – objetei com voz trêmula, como se algo terrível tivesse acontecido. Talvez seja precisamente por não me ter dado bem com ele antes que agora eu queira ir.
Ora, quem há de entendê-lo! O senhor com seus altos sentimentos... – escarneceu Trudoliúbov.
O senhor será incluído – resolveu Símonov, dirigindo-se a mim. – Amanhã, às cinco horas, no Hôtel de Paris. Não vá se enganar.
E quanto ao dinheiro? – começou Ferfítchkin para Símonov, a meia-voz e indicando-me com a cabeça, porém não terminou, porque até Símonov estava sem jeito.
Basta – disse Trudoliúbov, levantando-se. – Se deu tanta vontade assim nele, que vá.
Mas nós somos um grupinho de amigos – disse Ferfítchkin furioso, apanhando seu chapéu. Não era para ser uma reunião oficial. Pode ser que não queiramos de jeito nenhum a sua presença...
Eles se foram. Ferfítchkin saiu sem se despedir de mim e Trudoliúbov fez-me um leve aceno de cabeça, sem me fitar. Símonov, com quem fiquei frente a frente, estava meio perplexo e contrariado, olhando-me de modo estranho. Permanecia de pé e não me convidou para sentar.
Hum... é... amanhã, então? Quanto ao dinheiro, vai dar agora? É só para eu saber com certeza – balbuciou confuso.
Fiquei vermelho de raiva, mas nesse momento lembrei-me de que desde tempos imemoriais eu devia a Símonov quinze rublos, que, aliás, eu nunca havia esquecido, mas que tampouco nunca devolvera.
O senhor há de concordar que eu não podia saber quando aqui cheguei... e estou muito aborrecido por ter esquecido...
Está bem, está bem, tanto faz. Pagará amanhã, no jantar. Perguntei só para saber... O senhor, por favor...
Embatucou de repente e ficou andando pela sala ainda mais contrariado. Ao caminhar, pôs-se a equilibrar-se nos saltos dos sapatos e a batê-los no chão.
Estou tomando seu tempo? – perguntei, quando já estávamos uns dois minutos calados.
Oh, não! – exclamou ele, como que acordando. – Ou melhor, para dizer a verdade, sim. É que eu ainda preciso dar uma passada... É aqui perto... – acrescentou meio envergonhado, com voz de quem pede desculpa.
Oh, meu Deus! Por que não me disse? – exclamei, pegando meu boné, com um ar incrivelmente desinibido que baixou em mim vindo só Deus sabe de onde.
É aqui pertinho... a dois passos daqui... – repetiu Símonov, acompanhando-me até a saída com uma maneira agitada que não combinava com ele. – Então, amanhã às cinco em ponto! – gritou-me, enquanto eu descia a escada. Ele estava muito contente com a minha saída. Quanto a mim, estava furioso.
Mas por que eu tinha de me meter nessa história?! – ia eu rangendo os dentes pela rua. – E logo para aquele calhorda, aquele porco do Zverkov! É evidente que não devo ir; é evidente que devo mandar tudo isso às favas: sou obrigado a ir, por acaso? Amanhã mesmo mando uma carta a Símonov, avisando.
Mas o motivo verdadeiro da minha raiva era que eu tinha certeza absoluta de que iria ao jantar; de que propositalmente iria; e, quanto mais falta de tato e de decência houvesse na minha ida, mais vontade eu tinha de ir.
E tinha até um motivo de peso para não ir: não tinha dinheiro. Tudo o que possuía eram nove rublos, mas no dia seguinte eu teria de pagar ao meu criado Apollon sete rublos, seu salário mensal; ele morava na minha casa, mas vivia às próprias custas.
Deixar de pagar a Apollon era impossível, devido ao seu temperamento. Mas em outra ocasião falarei sobre esse canalha, sobre essa praga na minha vida.
Aliás, eu sabia perfeitamente que não lhe daria o dinheiro e que não faltaria ao jantar.
Naquela noite tive sonhos monstruosos. Não era de admirar: até conseguir pegar no sono, as lembranças dos anos de prisioneiro na minha vida escolar me oprimiram e não consegui me livrar delas. Eu tinha sido colocado naquela escola por uns parentes distantes, dos quais eu dependia e de quem nunca mais soube nada. Deixaram-me lá, órfão. Já então me retraía, devido às censuras deles. Era pensativo, calado e olhava desconfiado para tudo. Os colegas me receberam com zombarias impiedosas e malévolas pelo fato de eu não me parecer com nenhum deles. Mas eu não podia suportar as zombarias; não podia acostumar-me com a mesma facilidade com que eles se acostumavam uns aos outros. Odiei-os desde o início, isolando-me num orgulho assustado, ferido e exagerado. As grosserias deles me revoltavam. Eles riam cinicamente da minha cara, da minha figura desengonçada; no entanto, que caras idiotas eles tinham! Na nossa escola, as expressões dos rostos modificavam-se com o passar do tempo e tornavam-se particularmente estúpidas. Quantos meninos maravilhosos ingressavam lá! Depois de alguns anos, dava asco olhar para eles. Aos dezesseis anos, eu os observava carrancudo e me espantava com eles; já naquela época eu ficava admirado com a mesquinhez dos seus pensamentos, com as coisas idiotas com que se ocupavam, com seus jogos, suas conversas. Havia tantas coisas importantes que eles não entendiam, tantos assuntos empolgantes e apaixonantes que não despertavam o interesse deles, que sem querer eu comecei a me achar superior a eles. Não era uma vaidade despeitada que me levava a isso e, pelo amor de Deus, não me venham com aqueles chavões aborrecidos e nauseantes: “que eu ficava apenas sonhando, enquanto eles já entendiam a vida real”. Eles não entendiam nada da vida real e juro que era isso o que mais me revoltava neles. Ao contrário, a realidade mais evidente, que saltava aos olhos, era percebida por eles de maneira fantasticamente tola, e já naquela época tinham o hábito de curvar-se unicamente ao sucesso pessoal. Todas as coisas justas, mas oprimidas e humilhadas, eram motivo de suas zombarias impiedosas e infames. Eles achavam que ser inteligente era obter um cargo elevado; aos dezesseis anos já discorriam sobre sinecuras. Evidentemente, muito disso era por estupidez e por causa dos maus exemplos a que foram submetidos na infância e na adolescência. Eram monstruosamente depravados. É claro que isso, na maior parte das vezes, era pura fachada, um cinismo estudado; é claro que a juventude e um certo frescor às vezes transpareciam neles até por trás da depravação; mas mesmo esse frescor era desagradável e se manifestava como uma sensualidade grosseira. Eu os odiava terrivelmente, embora talvez fosse até pior que eles. Eles me pagavam na mesma moeda e não disfarçavam a repugnância que sentiam por mim. Mas eu já não desejava o afeto deles; ao contrário, ansiava o tempo todo por sua humilhação. Para me livrar de suas zombarias, esforçava-me para estudar o melhor possível e finalmente galguei um lugar entre os primeiros alunos. Dessa forma eu me impus. Além disso, pouco a pouco eles foram compreendendo que eu já lia livros que eles não conseguiam ler e entendia de assuntos que não faziam parte de nosso programa escolar, dos quais eles nunca tinham ouvido falar. Encaravam isso com sarcasmo e raiva, mas moralmente se submetiam, ainda mais porque, agindo assim, eu já tinha conseguido até que os professores me notassem. Pararam com as zombarias, mas a antipatia continuou e nossas relações se tornaram frias e tensas. No final, eu mesmo não aguentei mais: com o passar dos anos, cresceu uma necessidade de ter contato com pessoas, de ter amigos. Fiz várias tentativas de me aproximar de alguns deles, mas essa aproximação era sempre artificial e terminava por si mesma. Numa certa época, cheguei a ter um amigo. Mas, no íntimo, eu já era um déspota; queria ter poder absoluto sobre sua alma. Procurei inculcar nele desprezo pelo ambiente que o rodeava; arrogantemente exigi dele um rompimento total e definitivo com esse ambiente. Assustei-o com minha amizade cheia de paixão; levei-o muitas vezes às lágrimas e às convulsões. Era uma alma ingênua, que se entregava com facilidade, mas, quando ele se entregou totalmente a mim, imediatamente passei a odiá-lo e afastei-o de mim – como se eu precisasse dele apenas para triunfar sobre ele e subjugá-lo. Mas eu não poderia triunfar sobre todos; meu amigo também era diferente de todo mundo, era de fato uma exceção das mais raras. A primeira coisa que fiz quando deixei a escola foi abandonar o emprego especial que me haviam destinado, a fim de romper todas as ligações com o passado, amaldiçoá-lo e cobri-lo de cinzas... Com os diabos! Por que, depois de tudo isso, eu tinha de ir à casa daquele Símonov!?…
De manhã cedo acordei sobressaltado e pulei agitado da cama, como se tudo já fosse começar a acontecer. Estava convencido de que teria início naquele mesmo dia uma mudança radical na minha vida. Talvez por falta de costume, sempre me pareceu que o menor acontecimento exterior indicava que imediatamente uma mudança drástica na minha vida iria começar. Apesar disso, fui para o trabalho como de costume, mas escapuli duas horas mais cedo e vim para casa me preparar. “O mais importante é não ser o primeiro a chegar”, pensava, “senão vão achar que estou dando muito valor”. Mas tinha que resolver mil coisas importantes, que me deixaram exausto de tanta preocupação. Eu mesmo limpei novamente as minhas botas; por nada neste mundo Apollon as limparia duas vezes no mesmo dia, pois para ele isso seria quebra de regulamento. Eu as limpei, pegando às escondidas a escova no vestíbulo para que ele não visse e não me tratasse com desprezo depois. A seguir, examinei detalhadamente minhas roupas e vi que estava tudo velho, puído e surrado. Eu tinha descuidado demais de mim. Talvez o uniforme de serviço fosse a coisa mais apresentável, mas não ficava bem ir de uniforme a um jantar. O pior é que a minha calça tinha uma enorme mancha amarela na altura do joelho. Comecei a pressentir que somente essa mancha já tiraria nove décimos do meu amor-próprio. Sabia também que era muito mesquinho pensar assim. “Mas não é hora de ficar pensando; é hora de encarar a realidade”, pensei desanimado. Já naquele momento eu tinha também perfeita consciência de que estava exagerando de maneira monstruosa aqueles fatos; porém, que podia fazer? Não conseguia me dominar mais e tinha tremores febris. Já antevia, desesperado, que o “canalha” do Zverkov me receberia com frieza e arrogância; que o jumento do Trudoliúbov olharia para mim com um desprezo obtuso e inflexível; que o insignificante do Ferfítchkin daria risadinhas nojentas e insolentes às minhas custas para agradar a Zverkov; que no íntimo Símonov compreenderia tudo perfeitamente e me desprezaria pela baixeza de minha vaidade e covardia e, principalmente, eu já antevia como tudo seria paupérrimo, não literário, banal. Estava claro que o melhor seria não ir, mas isto já era totalmente impossível: quando algo começava a me puxar, eu me entregava inteiro, de cabeça. Senão, depois passaria o resto da vida implicando comigo mesmo: “Viu só? Acovardou-se, acovardou-se diante da realidade, acovardou-se!” Ao contrário, queria mostrar para toda aquela “corja” que não era absolutamente o covarde que eu mesmo me imaginava. Além disso: no mais intenso paroxismo da minha febre covarde, eu sonhava sair vencedor, fasciná-los e obrigá-los a me amar – nem que fosse pela “elevação das idéias e indiscutível presença de espírito”. Eles deixariam Zverkov de lado, num canto, calado e envergonhado, e eu o esmagaria. Depois, talvez eu fizesse as pazes com ele, nós brindaríamos, tratando-nos por você, mas o que mais me aborrecia e deixava furioso era que já então eu sabia perfeitamente que, no fundo, não precisava de nada daquilo; que, no fundo, não desejava de modo algum esmagar, dominar, magnetizar quem quer que fosse e, se alcançasse esse resultado, eu seria o primeiro a não dar um tostão por ele. Oh, como rezei a Deus para que aquele dia acabasse logo! Numa angústia indescritível, chegava à janela, abria a janelinha de ventilação e ficava olhando a obscuridade turva da neve úmida que caía densamente.
Finalmente, meu horrível relógio de pêndulo martelou as cinco horas. Agarrei meu chapéu e, esforçando-me para não olhar para Apollon, que desde a manhã esperava seu pagamento, mas que por orgulho não queria ser o primeiro a tocar no assunto, deslizei pela porta, passando por ele, e embarquei no carro de luxo que havia contratado com meus últimos cinquenta copeques e, como um senhor importante, cheguei ao Hôtel de Paris.

Dostoiévski, in Notas do Subsolo

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