terça-feira, 18 de julho de 2023

9 . No qual recebemos a visita de xeque Iezid, o Poeta. Estranha consequência das previsões de um astrólogo. A Mulher e a Matemática. Beremiz é convidado a ensinar Matemática a uma jovem. Situação singular da misteriosa aluna. Beremiz fala de seu amigo e mestre, o sábio Nô-Elin.


No último dia do Moharrã (1), ao cair da noite, fomos procurados na hospedaria pelo prestigioso Iezid-Abul-Hamid, amigo e confidente do califa.
Algum novo problema a resolver, ó Xeque? — perguntou sorridente Beremiz.
Adivinhou! — respondeu o nosso visitante. — Vejo-me forçado a resolver sério problema. Tenho uma filha chamada Telassim (2), dotada de viva inteligência e com acentuada inclinação para os estudos. Quando Telassim nasceu, consultei um astrológo famoso que sabia desvendar o futuro pela observação das nuvens e das estrelas. Esse mago afirmou que minha filha viveria perfeitamente feliz até aos 18 anos; a partir dessa idade seria ameaçada por um cortejo de lamentáveis desgraças. Havia, entretanto, meio de evitar que a infelicidade viesse esmagar-lhe tão profundamente o destino. Telassim — acrescentou o mago — deveria aprender as propriedades dos números e as múltiplas operações que com eles se efetuam. Ora, para dominar os números e fazer cálculos é preciso conhecer a ciência de Al-Kharismi, isto é, a Matemática. Resolvi, pois, assegurar para Telassim um futuro feliz, fazendo com que ela estudasse os mistérios do Cálculo e da Geometria.
Fez o generoso xeque ligeira pausa e logo prosseguiu:
Procurei vários ulemás(3) da corte, mas não logrei encontrar um só que se sentisse capaz de ensinar Geometria a uma jovem de 17 anos. Um deles, dotado, aliás, de grande talento, tentou mesmo dissuadir-me de tal propósito. Quem quisesse ensinar canto a uma girafa, cujas cordas vocais não podem produzir o menor ruído, perderia o tempo e teria trabalho inútil. A girafa, por sua própria natureza, não poderá cantar. Assim, o cérebro feminino, explicou esse daroês (4), é incompatível com as noções mais simples do Cálculo e da Geometria. Baseia-se essa incomparável ciência no raciocínio, no emprego de fórmulas e na aplicação de princípios demonstráveis com os poderosos recursos da Lógica e das Proporções. Como poderá uma menina, fechada no harém de seu pai, aprender fórmulas de Álgebra e teoremas da Geometria? Nunca! É mais fácil uma baleia ir a Meca, em peregrinação, do que uma mulher aprender Matemática. Para que lutar contra o impossível? Maktub!(5) Se a desgraça deve cair sobre nós, faça-se a vontade de Alá!
O xeque, muito sério, levantou-se da poltrona em que se achava sentado, caminhou cinco ou seis passos para um lado e para o outro, e prosseguiu, com acentuada melancolia:
O desânimo, o grande corruptor, apoderou-se de meu espírito ao ouvir essas palavras. Indo, porém, certa vez visitar o meu bom amigo Salém Nasair, o mercador, ouvi elogiosas referências ao novo calculista persa que aparecera em Bagdá. Falou-me do episódio dos oito pães. O caso, narrado com todas as minúcias, impressionou-me. Procurei conhecer o calculista dos oito pães e fui, especialmente para esse fim, à casa do vizir Maluf. Fiquei pasmado com a original solução dada ao problema dos 257 camelos, reduzidos, afinal, a 256. Lembras-te?
E o xeque Iezid, erguendo o rosto e fitando, solene, o calculista, acrescentou:
Serás capaz, ó Irmão dos Árabes (6), de ensinar os artifícios do Cálculo à minha filha Telassim? Pagarei, pelas lições, o preço que exigires! Poderás, como tens feito até agora, continuar a exercer o cargo de secretário do vizir Maluf.
Xeque generoso! — retorquiu prontamente Beremiz. — Não vejo motivo para deixar de atender ao vosso honroso convite. Em poucos meses poderei ensinar à vossa filha todas as operações algébricas e os segredos da Geometria. Erram duplamente os filósofos quando julgam medir com unidades negativas a capacidade intelectual da mulher. A inteligência feminina, quando bem orientada, pode acolher, com incomparável perfeição, as belezas e os segredos da ciência! Fácil tarefa seria desmentir os conceitos injustos formulados pelo daroês. Citam os historiadores vários exemplos de mulheres que se notabilizaram por sua cultura matemática. Em Alexandria, por exemplo, viveu Hipátia (7), que lecionou a ciência do Cálculo a centenas de pessoas, comentou as obras de Diofante, analisou os dificílimos trabalhos de Apolônio e retificou todas as tabelas astronômicas então usadas. Não há motivo para temores e incertezas, ó Xeque! A vossa filha facilmente aprenderá a ciência de Pitágoras. Inch’Allah!(8) Desejo apenas que determineis o dia e a hora em que deverei iniciar as lições.
Respondeu-lhe o nobre Iezid:
O mais depressa possível! Telassim já completou 17 anos, e estou ansioso por livrá-la das tristes previsões do astrólogo.
E ajuntou:
Devo, desde já, advertir-te de uma particularidade que não deixa de ter importância no caso. Minha filha vive encerrada no harém e jamais foi vista por homem algum estranho à nossa família. Só poderá, portanto, ouvir as tuas aulas de Matemática oculta por um espesso reposteiro com o rosto coberto por um haic e vigiada por duas escravas de confiança. Aceitas, ainda assim, minha proposta?
Aceito-a com viva satisfação — respondeu Beremiz. — É evidente que o recato e o pudor de uma jovem valem mais que os cálculos e as fórmulas algébricas. Platão, filósofo, mandou colocar à porta de sua escola a seguinte legenda: “Não entre, se não é geômetra.” Apresentou-se um dia um jovem de costumes libertinos e mostrou desejo de frequentar a Academia. O Mestre, porém, não o admitiu, dizendo: “A Geometria é toda pureza e simplicidade. O teu despudor ofende tão pura ciência.” O célebre discípulo de Sócrates procurava, desse modo, demonstrar que a Matemática não se harmonizava com a depravação e com as torpes indignidades dos espíritos imorais. Serão, pois, encantadoras as lições dadas a essa jovem que não conheço e cujo rosto mimoso jamais terei a ventura de admirar. Se Alá quiser, poderei iniciar amanhã as aulas.
Perfeitamente — concordou o xeque. — Um dos meus servos virá buscar-te amanhã (querendo Alá!) pouco depois da segunda prece. Uassalã!
Logo que o xeque Iezid deixou a hospedaria interpelei o calculista:
Escuta, Beremiz. Há nisso tudo um ponto obscuro para mim. Como poderás, afinal, ensinar Matemática a uma jovem quando, na verdade, nunca estudaste essa ciência nos livros, nem frequentaste as lições dos ulemás? O cálculo que aplicas, com tanto brilho e oportunidade, como foi aprendido? Bem sei, ó Calculista, entre pastores persas, contando ovelhas, tâmaras e bandos de aves em voo pelo céu...
Estás enganado, bagdali — reconsiderou, com serenidade, o calculista. — Ao tempo em que eu vigiava os rebanhos do meu amo, na Pérsia, conheci um velho dervixe chamado Nô-Elin. Certa vez, durante violenta tempestade de areia, salvei-o da morte. Desse dia em diante o bondoso ancião tornou-se meu amigo. Era um grande sábio e ensinou-me coisas úteis e maravilhosas.
Depois das lições que recebi desse mestre, sinto-me capaz de ensinar Geometria até o último livro do inesquecível Euclides, o alexandrino(9).

Notas:
(1) Mês do calendário árabe.
(2) Significa talismã.
(3) Homem dotado de grande cultura. Sábio.
(4) Espécie de monge muçulmano. O mesmo que dervixe. Na Índia tem o nome de faquir. Vive, em geral, como mendicante.
(5) Maktub! (Estava escrito!) Particípio passado do verbo Katab (escrever). Expressão que exprime bem o fatalismo muçulmano.
(6) Amigo. Bom companheiro.
(7) Matemática que viveu no século V. Por ser pagã foi cruelmente assassinada por cristãos fanáticos. Sua morte ocorreu no ano 415.
(8) Queira Deus. O mesmo que oxalá!
(9) A obra de Euclides — Os elementos —, bastante conhecida dos árabes, é dividida em várias partes chamadas livros.

Malba Tahan, in O Homem que Calculava

Nenhum comentário:

Postar um comentário