Eis
o que eu aprendi nesses vales onde se afundam os poentes: afinal tudo
são luzes e a gente se acende é nos outros.
A
vida é um fogo, nós somos suas breves incandescências.
– Fala
de João Celestioso ao regressar do outro lado da montanha –
Desde
o funeral que não pára de chover. Nos campos, a água é tanta que
os charcos se cogumelam, aos milhares. Poeiras brancas ondulam à
tona de água. Parece que a terra vomita esses pós brancos que, por
descálculo, Juca Sabão teve a fatal ideia de semear. Quem disse que
a terra engole sem nunca cuspir? Sob a chuva, vou percorrendo a Ilha.
As roupas, molhadas, me pesam tanto que parece que elas é que me
usam a mim. Uma estranha força me conduz, fosse eu pela mão de um
destino. Meu rumo é certo: vou a casa de Miserinha. Espreito pela
janela: ela lá está, a fingir que vai costurando, no mesmo velho
cadeirão. Reconheço o pano: é o pedaço de mortalha que ela rasgou
na última visita a seu amado Mariano. Dessa porção ela pretende
refazer o todo. Até de novo se deitar nesse lençol e marejar em
infinitas ondas.
A
gorda parece ter dado por minha presença. Pergunta "quem está?"
e eu, para não a desassossegar, me apresento. Ela sorri e manda que
eu entre no penumbroso quartinho.
– Você
está com o passo mais leve – comenta. – Isso é um caminhar de
anjo.
E
se inclina para retirar algo por baixo do assento. É o lenço
colorido que ela trazia quando a encontrei na viagem de barco para
Luar-do-Chão.
– Esse
lenço tinha caído no rio. Como é que está aqui) Miserinha?
– Tudo
o que tomba no rio é arrastado até mim.
– Não
diga que quem arrasta é o crocodilo?
– Qual
crocodilo? – pergunta Miserinha soltan do uma gargalhada. E
acrescenta, sem interrupção: – Você já está a acreditar de
mais nessas histórias da Ilha...
Espreito
o lençol em suas mãos. As linhas se cruzam num confuso emaranhado.
Ao fim e ao cabo, pouco diferindo do seu viver. Agita o lenço que me
oferecera para protecção dos espíritos: – Você já não mais
precisa do serviço deste pano) Marianito.
Conversamos
ninharias, apenas para o tempo nos dar importância. À despedida,
Miserinha me agradece o ter-se reconciliado com a casa grande e
despedido de Mariano. Quando se referiu ao Avô ela disse: “o meu
Mariano”. E fica repetindo “meu Mariano” enquanto dedilha a
costura no pano, fosse uma cicratiz em sua memória. Transponho em
silêncio a porta, deixando a velha senhora entretida com suas
sombras.
Passo
pela varanda de Fulano Malta. Hei-de sempre chamar esse homem de
“pai”. A casa está vazia. Onde teria ido o antigo guerrilheiro?
Me aproximo da gaiola. Ainda imagino dentro um passarinho: a porta
aberta e o bicho ali, por sua vontade e risco. Cumprindo-se o sagrado
e apostado. A gaiola convertida de prisão em casa, a ave residindo
sem perder asa.
Ruídos
me alertam, no quintal. Meu antigo pai surge das traseiras com sua
velha farda de guerrilheiro. Rimo-nos.
– Está
treinando, pai?
– Esta
farda já não me serve. Veja lá... Encolhe a barriga a ver se ainda
há ajuste, redondo no redondo.
– Está
celebrar o quê?
– Celebrar?
Só se for celebrar a vida.
Senta-se
no degrau. Desaperta os botões do casaco para se estender melhor.
– Lembra-se
daquela vez em que lhe visitei lá na cidade? Admite que me tenha
causado vergonhas. Mas eu deveria entender: ele nunca tinha vivido. A
cidade era um território dos outros que ele muito invejava. E que
lhe dava a suspeita que o tempo era um barco que partia sempre sem
ele. Na margem onde ele restava já só havia despedidas.
– O
pai não me envergonhou. Eu até fiquei aguardando que voltasse.
E
rimo-nos. Vejo que ainda faz tenção de me abraçar mas, no último
instante, corrige o gesto. Anuncio a partida, sacudindo as calças
com as duas mãos.
– Espere.
Não vá sem levar isto! Fulano Malta levanta-se e vai buscar um saco
de pano. Arrasta-o pelo chão, a mostrar que ali se esconde volume e
peso.
– O
que é isso, pai?
– Abra
e logo verá.
Puxo
o atilho e abro o saco. Eram os livros, meus desaparecidos livros de
estudo. Há anos que ele os guardara. Há anos que suportara culpa
dessa mentira que ele mesmo criara: os meus manuais nunca tinham sido
lançados no rio Madzimi.
– Agora,
pai, quem os vai atirar ao rio sou eu. Ele acha graça. Mas seu riso
esvanece e o lábio se encurva em desenho triste. Sabia o motivo de
eu estar ali. Era a despedida. Por fim, ele me abraça.
– Agora
que você me estava a ensinar...
– Ensinar
o quê?
– A
ser pai.
No
desabraço, o casaco dele tomba. Ainda me debrucei para o apanhar.
Mas ele me segura o gesto. Que deixasse, aquela era a última vez
daquela farda.
Ainda
olho para trás. Fulano esperava, certamente, que eu o fizesse. Pois
ele está acenando a chamar-me a atenção. Pega na gaiola e lança-a
no ar. A gaiola se desfigura, ante o meu espanto, e se vai
convertendo em pássaro. Já toda ave, ela reganha os céus e se
extingue. Não mais me dói ver o quanto aquilo se parece com esse
pesadelo em que a casa levanta voo e se esbate, nuvem entre nuvens.
Regresso
a Nyumba-Kaya. A cozinha se enche de luminosidade e, junto ao fogão,
estão sentadas a Avó Dulcineusa e a Tia Admirança. Estão
contemplando o álbum de família.
– Venha,
Ma ria no, venha ver.
Desta
feita, o álbum está cheio de fotografias. E lá está o velho
Mariano, lá está Dulcineusa recebendo prendas. E no meio de tudo,
entre as tantíssimas imagens, consta uma fotografia minha nos braços
de Admirança.
– Olha
nós dois, Mariano.
Levanta
o braço para me dar a mão. Quero falar mas reparo que não consigo
chamá-la de “mãe”.
Abraço-a
como se fosse agora que eu chegasse a casa. A Avó nos interrompe: –
Deixem-se disso, nem parecem tia e sobrinho. Ma ria no, veja mas é o
que seu Avô Mariano me deixou.
E
estende a mão. Num dedo um anel ganha brilhos de astro. O anel é
tão evidente que, por instante, seus dedos quase parecem
recompostos, finos e completos. Dulcineusa sente que estou de partida
e me ordena: – Não esqueça de regar a casa quando sair.
A
casa tinha reconquistado raízes. Fazia sentido, agora, aliviá-la
das securas. Admirança se levanta, me segura as mãos e fala em
suspiro como se estivesse em recinto sagrado.
– Já
falámos com Fulano, ele vai-se mudar para aqui, para Nyumba-Kaya.
Ficamos guardadas, fique descansado. E a casa fica guardada também.
Pega-me
nas mãos e inspecciona-me as unhas. Nelas carrego terra, a areia
escura do rio. Mesmo assim, Admirança me beija as mãos. Tento
retirar os braços do seu alcance, salvando-a das sujidades.
– Deixe,
Mariano. Essa terra é abençoada.
– Mãe?
– Não,
sua mãe morreu. Nunca esqueça.
Beijo-a
na testa, em despedida. Vou, de vago, como que em errância de nenhum
caminho haver. Outras visitas devo ainda cumprir. A caminho de casa
de meu tio mais velho. O percurso se abre à minha frente como se
obedecesse a uma torrente interior e a paisagem se irrealizasse em
cenários sobrenaturais. Me encaminho para casa de Abstinêncio. Pela
janela vislumbro o que parece ser uma festa. Escuta-se música. O Tio
regressou às vidas? Espreito e sorrio. Afinal, não é uma dessas
suas costumeiras orgias. Não há senão um par rodopiando na sala.
Abstinência está dançando, afivelando a parceira num abraço
firme. Dança com quem? Me empino sobre os pés para descortinar quem
emparelha com meu tio. É quando enxergo: não há ninguém senão
ele. Abstinêncio dança com um vestido. Esse mesmo: o velho vestido
de Dona Conceição Lopes.
Retiro-me
pé ante pé para não roubar sonho. Mas Abstinêncio vê-me pela
janela e sai à porta. Chama-me.
– Meu
sobrinho, estou feliz. É que Dona Conceição está aqui comigo,
mudou-se para Luar-do-Chão.
– Já
vi, já vi!
– Conceição
está tão orgulhosa de mim!
– Ai
sim, Tio?
– É
que eu não aguentei, contei-lhe tudo.
– Contou
o quê?
– Que
fui eu que lancei fogo no barco de Ultímio. Fui eu.
Um
dedo nos lábios me pede cumplicidade. Abstinêncio me segreda ainda
mais: havia falado com seu irmão Fulano Malta e iriam todos morar na
Nyumba-Kaya. Agora, ele já poderia sair, visitar o mundo. Estava de
bem consigo, aplacados seus medos mais antigos. Um riso de menino lhe
serve de desculpa para ter que reentrar. Lá dentro, ele é esperado.
O expediente de um gesto mal medido serve de adeus.
E
é por esse mundo, agora já aumentado, que vou prosseguindo. Nunca a
Ilha me pareceu tão extensa, semelhando ser maior que o próprio
rio. Desço a encosta até que vejo Ultímio sentado no paredão do
cais. Está olhando a outra margem do rio. As faixas que lhe cobrem
as queimaduras parecem amarfanhá-lo por dentro. Dir-se-ia que
esperava por mim, falando de costas, sem se virar: – Estou à
espera do barco. Vou para a cidade.
– Vai
sair, Tio?
– Vou.
Mas volto logo para tratar da compra de Nyumba-Kaya.
– O
Tio não entendeu que não pode comprar a casa velha?
– Pois,
escute bem, eu vou comprar com meu dinheiro. Essa casa vai ser minha.
– Essa
casa nunca será sua, Tio Ultímio.
– Ai
não? E porquê, posso saber?
– Porque
essa casa sou eu mesmo. O senhor vai ter que me comprar a mim para
ganhar posse da casa. E para isso, Tio Ultímio, para isso nenhum
dinheiro é bastante.
A
minha reacção causa-lhe espanto. E é legítimo. Se eu mesmo não
me reconheço, enfrentando assim com todo o peito um parente mais
velho. Ultímio estala a língua no céu-da-boca, a revelar o quanto
está contrariado.
– Você
pensa que somos a geração da traição. Pois você verá a geração
que se segue. Eu sei o que estou a falar. . .
– Isso
que chama de geração, eu também sou dessa geração.
Enquanto
me afasto, ele permanece sentado, olhar abatido nas águas do rio.
Vou a uns passos, quando me chama: – Mariano!
– Diga,
Tio.
– Seu
Avô teve razão em escolher a si. Você é um verdadeiro Malilane.
Um tractor se aproxima. Quem o conduz, para meu espanto, é o coveiro
Curozero Muando. Quando me vê tem alguma dificuldade em travar o
veículo e mais ainda em desligar o motor. A máquina resvala na
berma e imobiliza-se de encontro a uns arbustos. Do alto daquele
improvisado trono o coveiro fala: – Já viu-me? Agora, trabalho
para seu Tio Ultímio! O meu abastado tio lhe dera emprego, acrescido
de mil promessas. Ele deveria comandar o abate das árvores, em troca
receberia boas vantagens. Nem sei o que pensar, este Curo zero Muando
que parecia ser tão digno, com a memória triste do assassinato de
seu pai, aceitava agora ser mandado por Ultímio. Curo zero se
defende: – Você já sabe, Mariano: cabrito come onde está
amarrado.
– Você
é uma pessoa. Não é um cabrito.
– Quem
sabe até atiro abaixo aquela maçaniqueira onde o seu Avô
adormeceu? Aquilo ainda deve valer uns cobres, não? Ri-se. Que
estava a brincar, me diz. Então? Já perdi o humor?, me pergunta.
Vira e revira o volante em infantil diversão. Depois me fita, todo
sério. Eu não entendera o alcance. No intervalo dos carregamentos
das madeiras, quanto negócio poderia ele fazer, em privados
biscates? Tudo em informal segredo. Os maiores privatizam o pedaço
menor. Uns são comidos pela pobreza, outros são engolidos pela
riqueza.
Cansado,
interrompo: – E sua irmã Nyembeti? Era ela quem o iria substituir
no cemitério. A irmã, durante anos, aprendera os segredos da
profissão. Tinha sido preparada, no corpo e na alma.
– Vá
lá, ao cemitério. Por acaso, ela até perguntou por si.
– Perguntou?
– Quer
dizer, você sabe como ela diz coisas sem falar nada.
De
novo, põe em marcha o tractor. E ganda-ganda-ganda, o tractor se
afasta nesse compasso que lhe deu nome na língua de Luar-do-Chão. O
ruído do ganda-ganda se vai tornando longínquo enquanto me afasto
rumo ao cemitério. Antes me afligia o não haver cidade, esquina com
esquina, o ângulo recto dos caminhos. Agora onde lanço o olhar só
quero ver o mato. Nada de relva, canteiros, ajardinados. Só quero é
o arbusto espontâneo, a moita silvestre, a árvore que ninguém
semeou, o chão que ninguém pode sujar nem pilhar.
Chego
ao cemitério. Um arbusto se agita, ruidoso. Salto, assustado. Um
pássaro-martelo levanta voo. Passa por mim rondando, curioso.
Espreito-lhe o bico a certificar se vai carregado. A lenda diz que o
pássaro retira ossos das sepulturas, que voa carregado de panos,
unhas e dentes. E até uma tíbia lhe serve de travesseiro. Mas esta
ave vai limpa e se afasta cantando. Até que o céu dissolve o bicho
voador.
O
cemitério está deserto. Grito por Nyembeti. Escuto a sua voz, num
abafo. Olho em volta, não se vê ninguém. A voz dela vem do fundo
da terra. A bela moça se converteu numa raiz? Ou, pior: numa alma
depenada? Vou andando entre as campas até que descubro: Nyembeti
está no fundo de uma inacabada sepultura. Está cavando, a uns dois
metros de profundidade.
– Como
é, Nyembeti, a terra já não está fechada?
Ela
acena afirmativamente e, para reforçar, esfarela areia por entre os
dedos. Essa era a grande notícia. O chão se abrira, o céu se
desabotoara. Razão tinha a ave pressageira.
– Essa
sepultura é para quem? Nyembeti encolheu os ombros. Nem ideia fazia.
Quem
sabe para ela mesma, triste e só? Lhe apetecera escavar, assim, para
desvanecer melancolias. Sem mais razão.
A
coveira pede-me que chegue à berma do grande buraco. Quando me
aproximo sou atacado de vertigem, uma zonzura me escurece e me
apercebo vagamente que me despenho nos abismos. Já longe da
claridade sinto que a coveira me puxa para o fundo da sepultura e
ali, sob a areia que tomba, ela se lança sobre mim. Estou deitado de
costas, Nyembeti se recorta em contraluz. O céu é um escasso
rectângulo. Parece a falha no telhado de nossa casa grande. É isso,
então: aquela é a minha derradeira residência e aquele buraco lá
em cima é o ausentado tecto por onde a casa respira. E não vejo
mais. Estou cego, o escuro toma conta de mim, as trevas penetram em
meus ouvidos e em todos os meus sentidos. Ainda sinto a nudez de
Nyembeti se ajustar sobre o meu corpo. A última coisa que confirmo:
não há quente como o da boca. Não há incêndio que chegue à
febre dos corpos se amando.
Acordo,
sem consciência de quanto tempo estive ausente. Nyembeti está
sentada e me passa um pano molhado pelo rosto. Sorrio. Uma vaga
lembrança de um riso de menino se desenha, em névoa: eu brincando
no fundo da cova com uma outra criança. A recordação não refaz o
rosto e eu estou demasiado cansado para retocar esse fantasma.
Estendo
o pano e Nyembeti espreme-o sobre o peito. Vejo a água se
encarreirar, em missangas, sobre o peito dela. E me pergunto: estarei
condenado a amar aquela mulher apenas na vertigem do sonho? Afinal,
entendo: eu não podia possuir aquela mulher enquanto não tomasse
posse daquela terra. Nyembeti era Luar-do-Chão.
Mia Couto, in Um Rio Chamado Tempo, Uma Casa Chamada Terra
Nenhum comentário:
Postar um comentário