domingo, 14 de maio de 2023

Capítulo vinte e um | A chave de chuva


Eis o que eu aprendi nesses vales onde se afundam os poentes: afinal tudo são luzes e a gente se acende é nos outros.
A vida é um fogo, nós somos suas breves incandescências.
Fala de João Celestioso ao regressar do outro lado da montanha –

Desde o funeral que não pára de chover. Nos campos, a água é tanta que os charcos se cogumelam, aos milhares. Poeiras brancas ondulam à tona de água. Parece que a terra vomita esses pós brancos que, por descálculo, Juca Sabão teve a fatal ideia de semear. Quem disse que a terra engole sem nunca cuspir? Sob a chuva, vou percorrendo a Ilha. As roupas, molhadas, me pesam tanto que parece que elas é que me usam a mim. Uma estranha força me conduz, fosse eu pela mão de um destino. Meu rumo é certo: vou a casa de Miserinha. Espreito pela janela: ela lá está, a fingir que vai costurando, no mesmo velho cadeirão. Reconheço o pano: é o pedaço de mortalha que ela rasgou na última visita a seu amado Mariano. Dessa porção ela pretende refazer o todo. Até de novo se deitar nesse lençol e marejar em infinitas ondas.
A gorda parece ter dado por minha presença. Pergunta "quem está?" e eu, para não a desassossegar, me apresento. Ela sorri e manda que eu entre no penumbroso quartinho.
Você está com o passo mais leve – comenta. – Isso é um caminhar de anjo.
E se inclina para retirar algo por baixo do assento. É o lenço colorido que ela trazia quando a encontrei na viagem de barco para Luar-do-Chão.
Esse lenço tinha caído no rio. Como é que está aqui) Miserinha?
Tudo o que tomba no rio é arrastado até mim.
Não diga que quem arrasta é o crocodilo?
Qual crocodilo? – pergunta Miserinha soltan do uma gargalhada. E acrescenta, sem interrupção: – Você já está a acreditar de mais nessas histórias da Ilha...
Espreito o lençol em suas mãos. As linhas se cruzam num confuso emaranhado. Ao fim e ao cabo, pouco diferindo do seu viver. Agita o lenço que me oferecera para protecção dos espíritos: – Você já não mais precisa do serviço deste pano) Marianito.
Conversamos ninharias, apenas para o tempo nos dar importância. À despedida, Miserinha me agradece o ter-se reconciliado com a casa grande e despedido de Mariano. Quando se referiu ao Avô ela disse: “o meu Mariano”. E fica repetindo “meu Mariano” enquanto dedilha a costura no pano, fosse uma cicratiz em sua memória. Transponho em silêncio a porta, deixando a velha senhora entretida com suas sombras.
Passo pela varanda de Fulano Malta. Hei-de sempre chamar esse homem de “pai”. A casa está vazia. Onde teria ido o antigo guerrilheiro? Me aproximo da gaiola. Ainda imagino dentro um passarinho: a porta aberta e o bicho ali, por sua vontade e risco. Cumprindo-se o sagrado e apostado. A gaiola convertida de prisão em casa, a ave residindo sem perder asa.
Ruídos me alertam, no quintal. Meu antigo pai surge das traseiras com sua velha farda de guerrilheiro. Rimo-nos.
Está treinando, pai?
Esta farda já não me serve. Veja lá... Encolhe a barriga a ver se ainda há ajuste, redondo no redondo.
Está celebrar o quê?
Celebrar? Só se for celebrar a vida.
Senta-se no degrau. Desaperta os botões do casaco para se estender melhor.
Lembra-se daquela vez em que lhe visitei lá na cidade? Admite que me tenha causado vergonhas. Mas eu deveria entender: ele nunca tinha vivido. A cidade era um território dos outros que ele muito invejava. E que lhe dava a suspeita que o tempo era um barco que partia sempre sem ele. Na margem onde ele restava já só havia despedidas.
O pai não me envergonhou. Eu até fiquei aguardando que voltasse.
E rimo-nos. Vejo que ainda faz tenção de me abraçar mas, no último instante, corrige o gesto. Anuncio a partida, sacudindo as calças com as duas mãos.
Espere. Não vá sem levar isto! Fulano Malta levanta-se e vai buscar um saco de pano. Arrasta-o pelo chão, a mostrar que ali se esconde volume e peso.
O que é isso, pai?
Abra e logo verá.
Puxo o atilho e abro o saco. Eram os livros, meus desaparecidos livros de estudo. Há anos que ele os guardara. Há anos que suportara culpa dessa mentira que ele mesmo criara: os meus manuais nunca tinham sido lançados no rio Madzimi.
Agora, pai, quem os vai atirar ao rio sou eu. Ele acha graça. Mas seu riso esvanece e o lábio se encurva em desenho triste. Sabia o motivo de eu estar ali. Era a despedida. Por fim, ele me abraça.
Agora que você me estava a ensinar...
Ensinar o quê?
A ser pai.
No desabraço, o casaco dele tomba. Ainda me debrucei para o apanhar. Mas ele me segura o gesto. Que deixasse, aquela era a última vez daquela farda.
Ainda olho para trás. Fulano esperava, certamente, que eu o fizesse. Pois ele está acenando a chamar-me a atenção. Pega na gaiola e lança-a no ar. A gaiola se desfigura, ante o meu espanto, e se vai convertendo em pássaro. Já toda ave, ela reganha os céus e se extingue. Não mais me dói ver o quanto aquilo se parece com esse pesadelo em que a casa levanta voo e se esbate, nuvem entre nuvens.
Regresso a Nyumba-Kaya. A cozinha se enche de luminosidade e, junto ao fogão, estão sentadas a Avó Dulcineusa e a Tia Admirança. Estão contemplando o álbum de família.
Venha, Ma ria no, venha ver.
Desta feita, o álbum está cheio de fotografias. E lá está o velho Mariano, lá está Dulcineusa recebendo prendas. E no meio de tudo, entre as tantíssimas imagens, consta uma fotografia minha nos braços de Admirança.
Olha nós dois, Mariano.
Levanta o braço para me dar a mão. Quero falar mas reparo que não consigo chamá-la de “mãe”.
Abraço-a como se fosse agora que eu chegasse a casa. A Avó nos interrompe: – Deixem-se disso, nem parecem tia e sobrinho. Ma ria no, veja mas é o que seu Avô Mariano me deixou.
E estende a mão. Num dedo um anel ganha brilhos de astro. O anel é tão evidente que, por instante, seus dedos quase parecem recompostos, finos e completos. Dulcineusa sente que estou de partida e me ordena: – Não esqueça de regar a casa quando sair.
A casa tinha reconquistado raízes. Fazia sentido, agora, aliviá-la das securas. Admirança se levanta, me segura as mãos e fala em suspiro como se estivesse em recinto sagrado.
Já falámos com Fulano, ele vai-se mudar para aqui, para Nyumba-Kaya. Ficamos guardadas, fique descansado. E a casa fica guardada também.
Pega-me nas mãos e inspecciona-me as unhas. Nelas carrego terra, a areia escura do rio. Mesmo assim, Admirança me beija as mãos. Tento retirar os braços do seu alcance, salvando-a das sujidades.
Deixe, Mariano. Essa terra é abençoada.
Mãe?
Não, sua mãe morreu. Nunca esqueça.
Beijo-a na testa, em despedida. Vou, de vago, como que em errância de nenhum caminho haver. Outras visitas devo ainda cumprir. A caminho de casa de meu tio mais velho. O percurso se abre à minha frente como se obedecesse a uma torrente interior e a paisagem se irrealizasse em cenários sobrenaturais. Me encaminho para casa de Abstinêncio. Pela janela vislumbro o que parece ser uma festa. Escuta-se música. O Tio regressou às vidas? Espreito e sorrio. Afinal, não é uma dessas suas costumeiras orgias. Não há senão um par rodopiando na sala. Abstinência está dançando, afivelando a parceira num abraço firme. Dança com quem? Me empino sobre os pés para descortinar quem emparelha com meu tio. É quando enxergo: não há ninguém senão ele. Abstinêncio dança com um vestido. Esse mesmo: o velho vestido de Dona Conceição Lopes.
Retiro-me pé ante pé para não roubar sonho. Mas Abstinêncio vê-me pela janela e sai à porta. Chama-me.
Meu sobrinho, estou feliz. É que Dona Conceição está aqui comigo, mudou-se para Luar-do-Chão.
Já vi, já vi!
Conceição está tão orgulhosa de mim!
Ai sim, Tio?
É que eu não aguentei, contei-lhe tudo.
Contou o quê?
Que fui eu que lancei fogo no barco de Ultímio. Fui eu.
Um dedo nos lábios me pede cumplicidade. Abstinêncio me segreda ainda mais: havia falado com seu irmão Fulano Malta e iriam todos morar na Nyumba-Kaya. Agora, ele já poderia sair, visitar o mundo. Estava de bem consigo, aplacados seus medos mais antigos. Um riso de menino lhe serve de desculpa para ter que reentrar. Lá dentro, ele é esperado. O expediente de um gesto mal medido serve de adeus.
E é por esse mundo, agora já aumentado, que vou prosseguindo. Nunca a Ilha me pareceu tão extensa, semelhando ser maior que o próprio rio. Desço a encosta até que vejo Ultímio sentado no paredão do cais. Está olhando a outra margem do rio. As faixas que lhe cobrem as queimaduras parecem amarfanhá-lo por dentro. Dir-se-ia que esperava por mim, falando de costas, sem se virar: – Estou à espera do barco. Vou para a cidade.
Vai sair, Tio?
Vou. Mas volto logo para tratar da compra de Nyumba-Kaya.
O Tio não entendeu que não pode comprar a casa velha?
Pois, escute bem, eu vou comprar com meu dinheiro. Essa casa vai ser minha.
Essa casa nunca será sua, Tio Ultímio.
Ai não? E porquê, posso saber?
Porque essa casa sou eu mesmo. O senhor vai ter que me comprar a mim para ganhar posse da casa. E para isso, Tio Ultímio, para isso nenhum dinheiro é bastante.
A minha reacção causa-lhe espanto. E é legítimo. Se eu mesmo não me reconheço, enfrentando assim com todo o peito um parente mais velho. Ultímio estala a língua no céu-da-boca, a revelar o quanto está contrariado.
Você pensa que somos a geração da traição. Pois você verá a geração que se segue. Eu sei o que estou a falar. . .
Isso que chama de geração, eu também sou dessa geração.
Enquanto me afasto, ele permanece sentado, olhar abatido nas águas do rio. Vou a uns passos, quando me chama: – Mariano!
Diga, Tio.
Seu Avô teve razão em escolher a si. Você é um verdadeiro Malilane. Um tractor se aproxima. Quem o conduz, para meu espanto, é o coveiro Curozero Muando. Quando me vê tem alguma dificuldade em travar o veículo e mais ainda em desligar o motor. A máquina resvala na berma e imobiliza-se de encontro a uns arbustos. Do alto daquele improvisado trono o coveiro fala: – Já viu-me? Agora, trabalho para seu Tio Ultímio! O meu abastado tio lhe dera emprego, acrescido de mil promessas. Ele deveria comandar o abate das árvores, em troca receberia boas vantagens. Nem sei o que pensar, este Curo zero Muando que parecia ser tão digno, com a memória triste do assassinato de seu pai, aceitava agora ser mandado por Ultímio. Curo zero se defende: – Você já sabe, Mariano: cabrito come onde está amarrado.
Você é uma pessoa. Não é um cabrito.
Quem sabe até atiro abaixo aquela maçaniqueira onde o seu Avô adormeceu? Aquilo ainda deve valer uns cobres, não? Ri-se. Que estava a brincar, me diz. Então? Já perdi o humor?, me pergunta. Vira e revira o volante em infantil diversão. Depois me fita, todo sério. Eu não entendera o alcance. No intervalo dos carregamentos das madeiras, quanto negócio poderia ele fazer, em privados biscates? Tudo em informal segredo. Os maiores privatizam o pedaço menor. Uns são comidos pela pobreza, outros são engolidos pela riqueza.
Cansado, interrompo: – E sua irmã Nyembeti? Era ela quem o iria substituir no cemitério. A irmã, durante anos, aprendera os segredos da profissão. Tinha sido preparada, no corpo e na alma.
Vá lá, ao cemitério. Por acaso, ela até perguntou por si.
Perguntou?
Quer dizer, você sabe como ela diz coisas sem falar nada.
De novo, põe em marcha o tractor. E ganda-ganda-ganda, o tractor se afasta nesse compasso que lhe deu nome na língua de Luar-do-Chão. O ruído do ganda-ganda se vai tornando longínquo enquanto me afasto rumo ao cemitério. Antes me afligia o não haver cidade, esquina com esquina, o ângulo recto dos caminhos. Agora onde lanço o olhar só quero ver o mato. Nada de relva, canteiros, ajardinados. Só quero é o arbusto espontâneo, a moita silvestre, a árvore que ninguém semeou, o chão que ninguém pode sujar nem pilhar.
Chego ao cemitério. Um arbusto se agita, ruidoso. Salto, assustado. Um pássaro-martelo levanta voo. Passa por mim rondando, curioso. Espreito-lhe o bico a certificar se vai carregado. A lenda diz que o pássaro retira ossos das sepulturas, que voa carregado de panos, unhas e dentes. E até uma tíbia lhe serve de travesseiro. Mas esta ave vai limpa e se afasta cantando. Até que o céu dissolve o bicho voador.
O cemitério está deserto. Grito por Nyembeti. Escuto a sua voz, num abafo. Olho em volta, não se vê ninguém. A voz dela vem do fundo da terra. A bela moça se converteu numa raiz? Ou, pior: numa alma depenada? Vou andando entre as campas até que descubro: Nyembeti está no fundo de uma inacabada sepultura. Está cavando, a uns dois metros de profundidade.
Como é, Nyembeti, a terra já não está fechada?
Ela acena afirmativamente e, para reforçar, esfarela areia por entre os dedos. Essa era a grande notícia. O chão se abrira, o céu se desabotoara. Razão tinha a ave pressageira.
Essa sepultura é para quem? Nyembeti encolheu os ombros. Nem ideia fazia.
Quem sabe para ela mesma, triste e só? Lhe apetecera escavar, assim, para desvanecer melancolias. Sem mais razão.
A coveira pede-me que chegue à berma do grande buraco. Quando me aproximo sou atacado de vertigem, uma zonzura me escurece e me apercebo vagamente que me despenho nos abismos. Já longe da claridade sinto que a coveira me puxa para o fundo da sepultura e ali, sob a areia que tomba, ela se lança sobre mim. Estou deitado de costas, Nyembeti se recorta em contraluz. O céu é um escasso rectângulo. Parece a falha no telhado de nossa casa grande. É isso, então: aquela é a minha derradeira residência e aquele buraco lá em cima é o ausentado tecto por onde a casa respira. E não vejo mais. Estou cego, o escuro toma conta de mim, as trevas penetram em meus ouvidos e em todos os meus sentidos. Ainda sinto a nudez de Nyembeti se ajustar sobre o meu corpo. A última coisa que confirmo: não há quente como o da boca. Não há incêndio que chegue à febre dos corpos se amando.
Acordo, sem consciência de quanto tempo estive ausente. Nyembeti está sentada e me passa um pano molhado pelo rosto. Sorrio. Uma vaga lembrança de um riso de menino se desenha, em névoa: eu brincando no fundo da cova com uma outra criança. A recordação não refaz o rosto e eu estou demasiado cansado para retocar esse fantasma.
Estendo o pano e Nyembeti espreme-o sobre o peito. Vejo a água se encarreirar, em missangas, sobre o peito dela. E me pergunto: estarei condenado a amar aquela mulher apenas na vertigem do sonho? Afinal, entendo: eu não podia possuir aquela mulher enquanto não tomasse posse daquela terra. Nyembeti era Luar-do-Chão.

Mia Couto, in Um Rio Chamado Tempo, Uma Casa Chamada Terra

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