No
princípio da década de 60, quando trabalhava numa editorial de
Lisboa, publiquei um livro com o título de Seis milhões de
mortos em que era relatada a acção de Adolf Eichmann como
principal executor da operação de extermínio de judeus (seis
milhões foram) levada a cabo de modo sistemático, quase científico,
nos campos de concentração nazis. Crítico como tenho sido sempre
dos abusos e repressões exercidos por Israel sobre o povo palestino,
o meu principal argumento dessa condenação foi e continua a ser de
ordem moral: os inenarráveis sofrimentos infligidos aos judeus ao
longo da História e, em particular, no quadro da chamada “solução
final”, deveriam ser para os israelitas de hoje (dos últimos
sessenta anos para maior exactidão) a melhor das razões para não
imitarem na terra palestina os seus carrascos. Do que Israel
necessita realmente é de uma revolução moral. Firme nesta
convicção nunca neguei o Holocausto, somente me permiti estender
essa noção aos vexames, às humilhações, às violências de todo
o tipo a que o povo palestino tem estado submetido. É o meu direito
e os factos se têm encarregado de me dar razão.
Sou
um escritor livre que se exprime tão livremente quanto a organização
do mundo que temos lho permite. Não disponho de tanta informação
sobre este assunto como aquela que está ao alcance do papa e da
Igreja Católica em geral, o que conheço destas matérias desde o
princípio dos anos 60 me basta. Parece-me portanto altamente
reprovável o comportamento ambíguo do Vaticano em toda esta questão
dos bispos de obediência Lefebvre, primeiro excomungados e agora
limpos de pecado por decisão papal. Ratzinger nunca foi pessoa das
minhas simpatias intelectuais. Vejo-o como alguém que se esforça
por disfarçar e ocultar o que efectivamente pensa. Em membros da
Igreja não é procedimento raro, mas a um papa até um ateu como eu
tem o direito de exigir frontalidade, coerência e consciência
crítica. E autocrítica.
José Saramago, in O caderno
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