terça-feira, 13 de setembro de 2022

Zeca Bunéu e outros


I

Alcunha, quando a gente tem, tem por alguma razão. Essa verdade defendia-lhe sempre que a sorte me juntava com Zeca Bunéu e Carmindinha, lembrando Xoxombo. Tunica não estava mais nessas reuniões, a vida tinha-lhe levado na Europa, com seu jeito de cantar rumbas e sambas. Menina-perdida, falava sá Domingas; a vida é grande e não são só as nossas palavras que chegam para lhe mudar, desculpava a gente. Carmindinha ficava calada, não punha opinião, mas sabíamos como lhe doía a lembrança da irmã Tunica.
Nossas reuniões eram, às vezes, em casa de sá Domingas, quando eu namorava Carmindinha. Zeca Bunéu vinha mais tarde me chamar com nosso assobio-de-bairro mas acabava também na conversa. E com sá Domingas, já velha de cabelos brancos, e Bento Abano ainda lendo o jornal sem óculos, calado no seu canto, quantas vezes não recordávamos! Nunca que faltava a presença de Xoxombo em nossas conversas, mesmo com as lágrimas a descer na cara cheia de rugas de mamã Domingas. Carmindinha punha sempre igual sua história da alcunha do menino. E a defendia, séria. Mas Zeca Bunéu, com essa sua mania de contar as coisas como ele pensava, escolhia aquela outra, de mais malandro, que todos miúdos sabiam, aquela que servia o seu jeito de menino de musseque. Nessas conversas, minha opinião não entrava. Gostava, é verdade, de ver o Zeca com grandes gestos e risadas, os olhos muito grandes piscando, contar a história como ele sabia. Mas olhava com amor para Carmindinha, bondosa, cadavez zangada mesmo, defendendo o irmão. Só quando sá Domingas começava lagrimar pela saudade que lhe púnhamos e Bento tossia em sua cadeira de bordão, eu interrompia. Mal, confesso. Só falava as palavras de toda a gente: alcunha quando alguém tem, tem uma razão; e se todos referiam Xoxombo da mesma maneira, não interessava a origem ou a história da alcunha.
Então a conversa mudava. O mar, as ilhas, os ventos chegavam na voz do capitão Bento; sá Domingas ia no pequeno armário, punha abafado para todos, quitoto para o Zeca, era só essa bebida o menino gostava, a gente bebia. Carmindinha costurava e eu mirava o capitão e o Zeca nessas discussões do mar e só metia mesmo para falar do nosso jornal e os jornais do antigamente onde o mestre escrevia. E, nesse barulho pequeno da conversa assim, mamã Domingas cochilando era aviso de sairmos embora.
Saíamos. Carmindinha vinha ainda na porta, deixava que eu lhe apertasse nos seios pequenos debaixo do quimone e ficava a mirar-nos, indo pela noite. Com Zeca Bunéu, nesses dias de conversa do Xoxombo, quase sempre andávamos passear à toa pela nossa cidade adormecida, falando o menino e o nosso musseque antigo.
Hoje, dia dois de Novembro, encontrei Carmindinha na porta do Cemitério Velho. Foi este encontro o primeiro depois de nossa zanga de muitos anos e nele não precisámos falar o Xoxombo: o menino esteve sempre connosco no vestido preto e no cheiro que as flores-de-mortos deixam nas pessoas. A sua história, desde essa hora, não quis-me largar mais. O tempo que já passou comeu as coisas pequenas, apagou insignificâncias mas iluminou aquilo que interessa. Afastado de Carmindinha todos estes anos, fugi a sua influência, a sua bondade na defesa do irmão. E, sem Carmindinha com a gente, eu e o Zeca Bunéu nunca mais falámos o Xoxombo.
Talvez agora com as coisas que os anos e a vida mostraram, vindas de muitas pessoas diferentes, eu possa pôr bem a história do Xoxombo. Se não conseguir, a culpa não é dele nem da confusão que lhe pôs a alcunha. É minha, que meti literatura aí onde tinha vida e substituí calor humano por anedota. Mas vou contar na mesma.

1.

Quando foi que as vizinhas festejaram, com muitas falas e risos nas portas, o regresso da família do capitão Bento de Jesus Abano, mestre de barco de cabotagem, à conversa com todos seus antigos amigos, com toda a gente do musseque? Muito tempo antes de eu chegar para morar com minha madrasta, disse-me Carmindinha; e já depois que esfriaram relações com seus vizinhos pegados, o mestre sapateiro, pai do Zeca Bunéu. Porque teve um tempo, com seus amigos brancos, só falavam quando era preciso, quando as galinhas-do-mato ciscavam nos quintais e era de pedir desculpa, ou a Espanhola, a pequena cabra, rebentava na corda que lhe prendia na mulemba e ia roer as folhas novas das mandioqueiras, derrubando as panelas de barro e as latas de água, às vezes fazendo mesmo buraco nos cercados de aduelas e arcos.
Passou então aquela grande confusão do Zeca Bunéu, dia que roubou ainda os versos daquele mulato sapateiro, o Silva Xalado, e adiantou-lhe fazer pouco na frente de todos. Essa malandragem o pai dele gabava-lhe sempre, mas daí mesmo é que a família de Bento Abano começou se afastar, não vinha mais na porta para sunguilar e adiantaram lamentar nos vizinhos, falando não estava certo essas brincadeiras assim de desrespeitar as pessoas, um coitado sem pai nem mãe, vejam só, feito pouco por um miúdo! E as mulheres, pouco pouco, começaram chegar para sá Domingas, oferecer suas coisas, pedir empréstimo de vizinha. Mesmo de mais longe, como a mulher de sô Augusto, pai do Biquinho, as amigas apareciam às vezes para trazer Espanhola ou emprestar os monas para pastar a cabra para lá do imbondeiro onde o capim estava novo. Sá Domingas, alma boa, ficava comovida com essa amizade e Bento também gostava esse regresso à sua gente, como ele dizia.
Carmindinha crescia todos os dias, já não ligava nos miúdos, não tinha mais suas brincadeiras, todas as horas arrumando, ajudando a mãe na cozinha, remendando a roupa. E sá Domingas gabava as mãos da filha, seu jeito para todos os trabalhos de casa:
Ai, mana! Assim dá gosto. Essa Tunica, não posso nem lhe mandar cartar lata d’água. Meia hora no caminho, só batuque no fundo da lata. Agora essa minha mais velha?! Deixa só! É mestre, te digo, mana. Pena Bento não pode lhe mandar estudar. Mão de passarinho, mana, mão de passarinho!
Com estas conversas e outras confusões os cacimbos chegavam sempre nos fins das chuvas, secavam os capins para as fogueiras dos meninos, o sol descansava mas, mais tarde, pouco pouco, aparecia outra vez, amarelo e raivoso com seu calor e os ventos do mar traziam as nuvens cheias de água. As grandes chuvadas corriam na areia do musseque, verdes capins rebentavam, os cajus ficavam maduros e a vida andava com os meninos indo na escola ou na brincadeira, as mães e as filhas sempre a falar seus trabalhos de todos os dias, os acontecimentos, os ditos, as zangas.
E, com o tempo assim a passar, fugiam as zangas como fumo; sá Domingas e Bento Abano começaram outra vez a falar com seus vizinhos brancos, vizinhança de pessoa pobre não pode continuar zangada, é verdade mesmo. Durante muitos meses o musseque arranjou uma calma de todos os dias, só estragada, às vezes, pelas partidas dos miúdos, confusões que arranjavam e outras histórias da vida.
Também a fama de Carmindinha foi crescendo. Costurava calções para os meninos, depois pequenas camisas e um dia, numa tarde, todas as vizinhas gabaram um bonito vestido de chita que arranjou para a Tunica.
Auá! Nem parece é uma miúda!
É o que lhes digo, mana. Pena Bento não pode...
Tem razão, tens razão. Mas ouvi que lá em baixo tem uma escola de graça, na Baixa…
Dizem, mana Sessá! Dizem! Mas não aceito. De graça, para preto e mulato? Não pode, desculpa, mas não acredito.
Não é, mana Domingas, não é! É mesmo da Liga. Quem me disse foi a filha do falecido Matias que anda lá. Ontem, naquela hora da tarde, passou aqui, recado da tia, ela é que me contou!
Sá Domingas pôs muxoxo e disse, trocista:
Ala chiça, homê! Se fosse uma pessoa… Agora essa Joanica, filha da falecida? Sukuama! Não acredito, se calhar tem mas é escola de pouca-vergonha...
Carmindinha, que recebia elogios das suas mais velhas, meteu na conversa:
Verdade, mamã, Joanica diz verdade. Já me tinha contado. Até a Teresa de sô Gaspar tá andar lá. Não precisa pagar.
Bem, menina! Se é assim, um dia vou ir na Baixa visitar minhas amigas dos Coqueiros e já vou saber.
As vizinhas concordaram com a cabeça e, sempre gabando o jeito de Carmindinha, foram saindo, prometendo trabalho para a menina. Quando toda a gente foi embora, a mãe e a filha sentaram na cadeira grande, de bordão, e ficaram conversar baixinho. Bento não estava, tinha saído buscar miúdo Xoxombo na escola da Missão e Tunica andava longe, para lá do imbondeiro, brincando com as outras meninas e deixando Espanhola roer as plantas nos muros dos quintais.
Foi numa noite escura e quente que passou a grande confusão.
Nesse dia, na hora da tarde, sá Domingas vestindo os bonitos panos que Bento tinha lhe trazido de Matadi e suas sandálias de verniz, saiu com miúda Tunica, areal abaixo, cruzando a Ingombota no caminho dos Coqueiros. Mas só à noite, meia-noite já passava, é que toda a gente começou ouvir as macas, barulho de mobília arrastando, vozes falando alto, às vezes os gritos de sá Domingas e o choro de Carmindinha, Tunica e Xoxombo na porta berrando pareciam era cabritos. Não tinha lua, não tinha luz no musseque, só os candeeiros de petróleo e as lâmpadas de azeite-palma começaram piscar dentro das casas. As vizinhas foram chegando, embrulhadas nos panos, com os homens atrás, alguns ainda vestindo, perguntando dos miúdos o que passava e recebendo só choro de cabrito sem cabra. Com a muita gente na porta, os gritos de sá Domingas ganharam coragem e a sua voz, quase sempre calma, ouvia-se zangada:
É verdade, é verdade! Pode-me dar porrada, não me queixo! Pode-me matar, não me queixo! Mas essa menina vai na escola de aprender costura sim. Sou eu que digo!
Sentia-se outra vez o barulho da mobília e a voz forte de Bento cobria todos os ruídos e choros:
Já disse, não repito. Filha minha não vai na Baixa, nem que me mate! P’ra vir aí com vestido de branca, com os beiços pintados, sapatos de madeira? Nunca, enquanto existir capitão Bento Abano!
Carmindinha, chorona e irritada, metia-se da porta:
Mas eu quero, mas eu quero! Não tem mal, quero aprender a costura, já disse!
Fugia com medo, toda a gente recuava. Bento vinha de dentro, no escuro só se viam as cuecas brancas, compridas, e a menina fugia com medo, toda a gente recuava. Aproveitando, sá Domingas berrava, exigia:
Aiuê, acudam, acudam, vizinhas! Bento vai me matar. E porquê, então?... Porque quero a minha filha na costura, quero ela vai ser modista, não lhe quero no ferro e na selha todos os dias...
Chorava. Bento aumentava suas conversas da perdição da vida na Baixa, os maus exemplos, a imoralidade que ia ganhando caminho no meio do povo. Falava isto em altos gritos como nunca ninguém pensou o capitão, sempre de falas mansas, pudesse pôr.
Já disse, eu é que mando! Filha minha tem a educação da mãe, a educação da avó, a educação do nosso povo. Não deixo ela se perder na Baixa. Curso de costura, curso de costura!... Eu já sei o que é isso! Deixa só o cabaço numa esquina e aparece com filho na barriga. Quem foi, quem foi, ninguém sabe! Não, não, minha filha, nunca!
Era tanto barulho, a atenção dos vizinhos no que se passava na casa do mestre de barco de cabotagem, os miúdos a chorar na porta, que ninguém viu o freguês da Albertina a sair enquando ela, gorda, veio de dentro da cubata e, sem pedir licença nem nada, atravessou, afastou os meninos chorosos e entrou na casa do capitão.
Toda a gente ficou mesmo admirada. Como é Albertina não tinha assim vergonha, entrar ainda naquela cubata, todo o musseque sabia ela falava só bom dia-boa tarde para sá Domingas, por causa uma confusão antiga, muita gente nem lembrava já?
Mas a branca já estava lá dentro, arreganhando a sua voz de vinho:
Ala pôça, homê! Aqui não há civilização? Vamos a calar a boca, alguém que acende a luz!
Uma mão passou um fósforo aceso e Albertina, procurando, acendeu um candeeiro. Na luz amarela que de repente apareceu na pequena sala, sá Domingas com seus panos de baixo, gorda, as mamas grandes baloiçando com os soluços, escondeu encolhida num canto; Bento, atrapalhado, as mãos à frente da barriga, as cuecas muito compridas, mostrava o corpo ossudo e cabeludo que ele queria esquivar no mais escuro da sala. A Albertina entrou tão depressa que o capitão ficou quieto, calado, não podia mesmo falar. A vizinha, dona da situação, arreganhava:
Sukuama! Já não pode se viver neste musseque? Trabalho toda a noite, não durmo de dia, e meus vizinhos ainda me chateiam? E vocês aí fora, seus lázaros, homé! Em vez de desapartarem, aí feitos burros a olhar e a rir. Xê, você seu capitão de barco de ferrugem, vai-te vestir mas é!... E com esses miúdos aqui em casa é melhor dar bons exemplos. É assim que se fala a vida da família?... Poça! Não sabem conversar como gente? Seus incivilizados!
E a bater na infeliz, vejam só! Isso é de homem então?...
Outros vizinhos já tinham entrado e ajudavam sá Domingas a se tapar e a sentar na cadeira. Tunica e Xoxombo correram na mãe, Carmindinha foi no quarto e voltou com as calças do capitão. Vestido, o velho marinheiro arranjou a antiga dignidade e, já não falando tão alto, foi pedindo desculpa mas dizendo também que conversa de homem e mulher é homem e mulher quem resolve. Depois, com muito jeito outra vez, sua calma e boa educação de fama no musseque, pediu nos vizinhos para não estragarem suas noites de sono, melhor era ir embora acabar de dormir porque não estava passar nada de importância. Só as mulheres ficaram algum tempo a lamentar em voz baixa, despedindo com muitos conselhos, até que sá Domingas ficou sozinha com Tunica e Carmindinha. Bento, envergonhado, já tinha ido para dentro com Xoxombo e os vizinhos ouviram dar volta na fechadura. Albertina, remexendo o mataco, foi gozando na saída, malandra:
Pena você já está velha, mana Domingas! Te ensinava o remédio para esse capitão ferrugento. Assim você tem que esperar uns dias. Ou então manda ele no meu quarto, que eu devolvo direitinho parece é pau de vassoura!...
Sá Domingas pôs um sorriso e, juntando a si as duas filhas, respondeu mais aliviada:
Ená! Ainda não estou precisar jindungo no mataco, Albertina... Já ganhei, o que eu quero é esta menina na costura!
Vagaroso, o silêncio voltou na noite do musseque, foram-se apagando os pequenos grupos de conversa e riso e só a branca Albertina ficou sentada na porta, penteando os cabelos e falando no seu cão cabíri.
Assim ninguém que se espantou com o sucedido, no dia seguinte. Logo que Bento saiu com Xoxombo na aula da Missão, sá Domingas, com Carmindinha muito direita no vestido feito por ela mesma, e bem penteada, desceu pelo antigo caminho da Ingombota, direcção da Baixa.
Nesse fim de tarde, os sorrisos largos das vizinhas, com olhares de lado para Bento, lendo na porta, quando Carmindinha chegou com os papéis na mão, acompanhando Teresa e Joanica, foram a confirmação da vitória de sá Domingas. Quando avistou as meninas, capitão Abano dobrou o jornal e, falando que ia buscar o Xoxombo e a Espanhola, meteu pelo caminho acima.

José Luandino Vieira, in Nosso Musseque

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