I
Alcunha,
quando a gente tem, tem por alguma razão. Essa verdade defendia-lhe
sempre que a sorte me juntava com Zeca Bunéu e Carmindinha,
lembrando Xoxombo. Tunica não estava mais nessas reuniões, a vida
tinha-lhe levado na Europa, com seu jeito de cantar rumbas e sambas.
Menina-perdida, falava sá Domingas; a vida é grande e não são só
as nossas palavras que chegam para lhe mudar, desculpava a gente.
Carmindinha ficava calada, não punha opinião, mas sabíamos como
lhe doía a lembrança da irmã Tunica.
Nossas
reuniões eram, às vezes, em casa de sá Domingas, quando eu
namorava Carmindinha. Zeca Bunéu vinha mais tarde me chamar com
nosso assobio-de-bairro mas acabava também na conversa. E com sá
Domingas, já velha de cabelos brancos, e Bento Abano ainda lendo o
jornal sem óculos, calado no seu canto, quantas vezes não
recordávamos! Nunca que faltava a presença de Xoxombo em nossas
conversas, mesmo com as lágrimas a descer na cara cheia de rugas de
mamã Domingas. Carmindinha punha sempre igual sua história da
alcunha do menino. E a defendia, séria. Mas Zeca Bunéu, com essa
sua mania de contar as coisas como ele pensava, escolhia aquela
outra, de mais malandro, que todos miúdos sabiam, aquela que servia
o seu jeito de menino de musseque. Nessas conversas, minha opinião
não entrava. Gostava, é verdade, de ver o Zeca com grandes gestos e
risadas, os olhos muito grandes piscando, contar a história como ele
sabia. Mas olhava com amor para Carmindinha, bondosa, cadavez zangada
mesmo, defendendo o irmão. Só quando sá Domingas começava
lagrimar pela saudade que lhe púnhamos e Bento tossia em sua cadeira
de bordão, eu interrompia. Mal, confesso. Só falava as palavras de
toda a gente: alcunha quando alguém tem, tem uma razão; e se todos
referiam Xoxombo da mesma maneira, não interessava a origem ou a
história da alcunha.
Então
a conversa mudava. O mar, as ilhas, os ventos chegavam na voz do
capitão Bento; sá Domingas ia no pequeno armário, punha abafado
para todos, quitoto para o Zeca, era só essa bebida o menino
gostava, a gente bebia. Carmindinha costurava e eu mirava o capitão
e o Zeca nessas discussões do mar e só metia mesmo para falar do
nosso jornal e os jornais do antigamente onde o mestre escrevia. E,
nesse barulho pequeno da conversa assim, mamã Domingas cochilando
era aviso de sairmos embora.
Saíamos.
Carmindinha vinha ainda na porta, deixava que eu lhe apertasse nos
seios pequenos debaixo do quimone e ficava a mirar-nos, indo pela
noite. Com Zeca Bunéu, nesses dias de conversa do Xoxombo, quase
sempre andávamos passear à toa pela nossa cidade adormecida,
falando o menino e o nosso musseque antigo.
Hoje,
dia dois de Novembro, encontrei Carmindinha na porta do Cemitério
Velho. Foi este encontro o primeiro depois de nossa zanga de muitos
anos e nele não precisámos falar o Xoxombo: o menino esteve sempre
connosco no vestido preto e no cheiro que as flores-de-mortos deixam
nas pessoas. A sua história, desde essa hora, não quis-me largar
mais. O tempo que já passou comeu as coisas pequenas, apagou
insignificâncias mas iluminou aquilo que interessa. Afastado de
Carmindinha todos estes anos, fugi a sua influência, a sua bondade
na defesa do irmão. E, sem Carmindinha com a gente, eu e o Zeca
Bunéu nunca mais falámos o Xoxombo.
Talvez
agora com as coisas que os anos e a vida mostraram, vindas de muitas
pessoas diferentes, eu possa pôr bem a história do Xoxombo. Se não
conseguir, a culpa não é dele nem da confusão que lhe pôs a
alcunha. É minha, que meti literatura aí onde tinha vida e
substituí calor humano por anedota. Mas vou contar na mesma.
1.
Quando
foi que as vizinhas festejaram, com muitas falas e risos nas portas,
o regresso da família do capitão Bento de Jesus Abano, mestre de
barco de cabotagem, à conversa com todos seus antigos amigos, com
toda a gente do musseque? Muito tempo antes de eu chegar para morar
com minha madrasta, disse-me Carmindinha; e já depois que esfriaram
relações com seus vizinhos pegados, o mestre sapateiro, pai do Zeca
Bunéu. Porque teve um tempo, com seus amigos brancos, só falavam
quando era preciso, quando as galinhas-do-mato ciscavam nos quintais
e era de pedir desculpa, ou a Espanhola, a pequena cabra,
rebentava na corda que lhe prendia na mulemba e ia roer as folhas
novas das mandioqueiras, derrubando as panelas de barro e as latas de
água, às vezes fazendo mesmo buraco nos cercados de aduelas e
arcos.
Passou
então aquela grande confusão do Zeca Bunéu, dia que roubou ainda
os versos daquele mulato sapateiro, o Silva Xalado, e adiantou-lhe
fazer pouco na frente de todos. Essa malandragem o pai dele
gabava-lhe sempre, mas daí mesmo é que a família de Bento Abano
começou se afastar, não vinha mais na porta para sunguilar e
adiantaram lamentar nos vizinhos, falando não estava certo essas
brincadeiras assim de desrespeitar as pessoas, um coitado sem pai nem
mãe, vejam só, feito pouco por um miúdo! E as mulheres, pouco
pouco, começaram chegar para sá Domingas, oferecer suas coisas,
pedir empréstimo de vizinha. Mesmo de mais longe, como a mulher de
sô Augusto, pai do Biquinho, as amigas apareciam às vezes para
trazer Espanhola ou emprestar os monas para pastar a cabra
para lá do imbondeiro onde o capim estava novo. Sá Domingas, alma
boa, ficava comovida com essa amizade e Bento também gostava esse
regresso à sua gente, como ele dizia.
Carmindinha
crescia todos os dias, já não ligava nos miúdos, não tinha mais
suas brincadeiras, todas as horas arrumando, ajudando a mãe na
cozinha, remendando a roupa. E sá Domingas gabava as mãos da filha,
seu jeito para todos os trabalhos de casa:
— Ai,
mana! Assim dá gosto. Essa Tunica, não posso nem lhe mandar cartar
lata d’água. Meia hora no caminho, só batuque no fundo da lata.
Agora essa minha mais velha?! Deixa só! É mestre, te digo, mana.
Pena Bento não pode lhe mandar estudar. Mão de passarinho, mana,
mão de passarinho!
Com
estas conversas e outras confusões os cacimbos chegavam sempre nos
fins das chuvas, secavam os capins para as fogueiras dos meninos, o
sol descansava mas, mais tarde, pouco pouco, aparecia outra vez,
amarelo e raivoso com seu calor e os ventos do mar traziam as nuvens
cheias de água. As grandes chuvadas corriam na areia do musseque,
verdes capins rebentavam, os cajus ficavam maduros e a vida andava
com os meninos indo na escola ou na brincadeira, as mães e as filhas
sempre a falar seus trabalhos de todos os dias, os acontecimentos, os
ditos, as zangas.
E,
com o tempo assim a passar, fugiam as zangas como fumo; sá Domingas
e Bento Abano começaram outra vez a falar com seus vizinhos brancos,
vizinhança de pessoa pobre não pode continuar zangada, é verdade
mesmo. Durante muitos meses o musseque arranjou uma calma de todos os
dias, só estragada, às vezes, pelas partidas dos miúdos, confusões
que arranjavam e outras histórias da vida.
Também
a fama de Carmindinha foi crescendo. Costurava calções para os
meninos, depois pequenas camisas e um dia, numa tarde, todas as
vizinhas gabaram um bonito vestido de chita que arranjou para a
Tunica.
— Auá!
Nem parece é uma miúda!
— É
o que lhes digo, mana. Pena Bento não pode...
— Tem
razão, tens razão. Mas ouvi que lá em baixo tem uma escola de
graça, na Baixa…
— Dizem,
mana Sessá! Dizem! Mas não aceito. De graça, para preto e mulato?
Não pode, desculpa, mas não acredito.
— Não
é, mana Domingas, não é! É mesmo da Liga. Quem me disse foi a
filha do falecido Matias que anda lá. Ontem, naquela hora da tarde,
passou aqui, recado da tia, ela é que me contou!
Sá
Domingas pôs muxoxo e disse, trocista:
— Ala
chiça, homê! Se fosse uma pessoa… Agora essa Joanica, filha da
falecida? Sukuama! Não acredito, se calhar tem mas é escola de
pouca-vergonha...
Carmindinha,
que recebia elogios das suas mais velhas, meteu na conversa:
— Verdade,
mamã, Joanica diz verdade. Já me tinha contado. Até a Teresa de sô
Gaspar tá andar lá. Não precisa pagar.
— Bem,
menina! Se é assim, um dia vou ir na Baixa visitar minhas amigas dos
Coqueiros e já vou saber.
As
vizinhas concordaram com a cabeça e, sempre gabando o jeito de
Carmindinha, foram saindo, prometendo trabalho para a menina. Quando
toda a gente foi embora, a mãe e a filha sentaram na cadeira grande,
de bordão, e ficaram conversar baixinho. Bento não estava, tinha
saído buscar miúdo Xoxombo na escola da Missão e Tunica andava
longe, para lá do imbondeiro, brincando com as outras meninas e
deixando Espanhola roer as plantas nos muros dos quintais.
Foi
numa noite escura e quente que passou a grande confusão.
Nesse
dia, na hora da tarde, sá Domingas vestindo os bonitos panos que
Bento tinha lhe trazido de Matadi e suas sandálias de verniz, saiu
com miúda Tunica, areal abaixo, cruzando a Ingombota no caminho dos
Coqueiros. Mas só à noite, meia-noite já passava, é que toda a
gente começou ouvir as macas, barulho de mobília arrastando, vozes
falando alto, às vezes os gritos de sá Domingas e o choro de
Carmindinha, Tunica e Xoxombo na porta berrando pareciam era
cabritos. Não tinha lua, não tinha luz no musseque, só os
candeeiros de petróleo e as lâmpadas de azeite-palma começaram
piscar dentro das casas. As vizinhas foram chegando, embrulhadas nos
panos, com os homens atrás, alguns ainda vestindo, perguntando dos
miúdos o que passava e recebendo só choro de cabrito sem cabra. Com
a muita gente na porta, os gritos de sá Domingas ganharam coragem e
a sua voz, quase sempre calma, ouvia-se zangada:
— É
verdade, é verdade! Pode-me dar porrada, não me queixo! Pode-me
matar, não me queixo! Mas essa menina vai na escola de aprender
costura sim. Sou eu que digo!
Sentia-se
outra vez o barulho da mobília e a voz forte de Bento cobria todos
os ruídos e choros:
— Já
disse, não repito. Filha minha não vai na Baixa, nem que me mate!
P’ra vir aí com vestido de branca, com os beiços pintados,
sapatos de madeira? Nunca, enquanto existir capitão Bento Abano!
Carmindinha,
chorona e irritada, metia-se da porta:
— Mas
eu quero, mas eu quero! Não tem mal, quero aprender a costura, já
disse!
Fugia
com medo, toda a gente recuava. Bento vinha de dentro, no escuro só
se viam as cuecas brancas, compridas, e a menina fugia com medo, toda
a gente recuava. Aproveitando, sá Domingas berrava, exigia:
— Aiuê,
acudam, acudam, vizinhas! Bento vai me matar. E porquê, então?...
Porque quero a minha filha na costura, quero ela vai ser modista, não
lhe quero no ferro e na selha todos os dias...
Chorava.
Bento aumentava suas conversas da perdição da vida na Baixa, os
maus exemplos, a imoralidade que ia ganhando caminho no meio do povo.
Falava isto em altos gritos como nunca ninguém pensou o capitão,
sempre de falas mansas, pudesse pôr.
— Já
disse, eu é que mando! Filha minha tem a educação da mãe, a
educação da avó, a educação do nosso povo. Não deixo ela se
perder na Baixa. Curso de costura, curso de costura!... Eu já sei o
que é isso! Deixa só o cabaço numa esquina e aparece com filho na
barriga. Quem foi, quem foi, ninguém sabe! Não, não, minha filha,
nunca!
Era
tanto barulho, a atenção dos vizinhos no que se passava na casa do
mestre de barco de cabotagem, os miúdos a chorar na porta, que
ninguém viu o freguês da Albertina a sair enquando ela, gorda, veio
de dentro da cubata e, sem pedir licença nem nada, atravessou,
afastou os meninos chorosos e entrou na casa do capitão.
Toda
a gente ficou mesmo admirada. Como é Albertina não tinha assim
vergonha, entrar ainda naquela cubata, todo o musseque sabia ela
falava só bom dia-boa tarde para sá Domingas, por causa uma
confusão antiga, muita gente nem lembrava já?
Mas
a branca já estava lá dentro, arreganhando a sua voz de vinho:
— Ala
pôça, homê! Aqui não há civilização? Vamos a calar a boca,
alguém que acende a luz!
Uma
mão passou um fósforo aceso e Albertina, procurando, acendeu um
candeeiro. Na luz amarela que de repente apareceu na pequena sala, sá
Domingas com seus panos de baixo, gorda, as mamas grandes baloiçando
com os soluços, escondeu encolhida num canto; Bento, atrapalhado, as
mãos à frente da barriga, as cuecas muito compridas, mostrava o
corpo ossudo e cabeludo que ele queria esquivar no mais escuro da
sala. A Albertina entrou tão depressa que o capitão ficou quieto,
calado, não podia mesmo falar. A vizinha, dona da situação,
arreganhava:
— Sukuama!
Já não pode se viver neste musseque? Trabalho toda a noite, não
durmo de dia, e meus vizinhos ainda me chateiam? E vocês aí fora,
seus lázaros, homé! Em vez de desapartarem, aí feitos burros a
olhar e a rir. Xê, você seu capitão de barco de ferrugem, vai-te
vestir mas é!... E com esses miúdos aqui em casa é melhor dar bons
exemplos. É assim que se fala a vida da família?... Poça! Não
sabem conversar como gente? Seus incivilizados!
E
a bater na infeliz, vejam só! Isso é de homem então?...
Outros
vizinhos já tinham entrado e ajudavam sá Domingas a se tapar e a
sentar na cadeira. Tunica e Xoxombo correram na mãe, Carmindinha foi
no quarto e voltou com as calças do capitão. Vestido, o velho
marinheiro arranjou a antiga dignidade e, já não falando tão alto,
foi pedindo desculpa mas dizendo também que conversa de homem e
mulher é homem e mulher quem resolve. Depois, com muito jeito outra
vez, sua calma e boa educação de fama no musseque, pediu nos
vizinhos para não estragarem suas noites de sono, melhor era ir
embora acabar de dormir porque não estava passar nada de
importância. Só as mulheres ficaram algum tempo a lamentar em voz
baixa, despedindo com muitos conselhos, até que sá Domingas ficou
sozinha com Tunica e Carmindinha. Bento, envergonhado, já tinha ido
para dentro com Xoxombo e os vizinhos ouviram dar volta na fechadura.
Albertina, remexendo o mataco, foi gozando na saída, malandra:
— Pena
você já está velha, mana Domingas! Te ensinava o remédio para
esse capitão ferrugento. Assim você tem que esperar uns dias. Ou
então manda ele no meu quarto, que eu devolvo direitinho parece é
pau de vassoura!...
Sá
Domingas pôs um sorriso e, juntando a si as duas filhas, respondeu
mais aliviada:
— Ená!
Ainda não estou precisar jindungo no mataco, Albertina... Já
ganhei, o que eu quero é esta menina na costura!
Vagaroso,
o silêncio voltou na noite do musseque, foram-se apagando os
pequenos grupos de conversa e riso e só a branca Albertina ficou
sentada na porta, penteando os cabelos e falando no seu cão cabíri.
Assim
ninguém que se espantou com o sucedido, no dia seguinte. Logo que
Bento saiu com Xoxombo na aula da Missão, sá Domingas, com
Carmindinha muito direita no vestido feito por ela mesma, e bem
penteada, desceu pelo antigo caminho da Ingombota, direcção da
Baixa.
Nesse
fim de tarde, os sorrisos largos das vizinhas, com olhares de lado
para Bento, lendo na porta, quando Carmindinha chegou com os papéis
na mão, acompanhando Teresa e Joanica, foram a confirmação da
vitória de sá Domingas. Quando avistou as meninas, capitão Abano
dobrou o jornal e, falando que ia buscar o Xoxombo e a Espanhola,
meteu pelo caminho acima.
José Luandino Vieira, in Nosso Musseque
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