Entendem
os filósofos que nosso conflito essencial e drama talvez único seja
mesmo o estar-no-mundo. Chico, o herói, não perquiria tanto.
Deixava de interpretar as séries de símbolos que são esta nossa
outra vida de aquém-túmulo, tãopouco pretendendo ele próprio
representar de símbolo; menos, ainda, se exibir sob farsa. De sobra
afligia-o a corriqueira problemática quotidiana, a qual tentava,
sempre que possível, converter em irrealidade. Isto, a pifar, virar
e andar, de bar a bar.
Exercera-se
num, até às primeiras duvidações diplópicas: — “Quando...
— levantava doutor o indicador — ...
quando eu achar que estes dois dedos aqui são quatro”...
Estava sozinho, detestava a sozinhidão. E arejava-o, com a animação
aquecente, o chamamento de aventuras. Saiu de lá já meio
proparoxítono.
E,
vindo, noé, pombinho assim, montado-na-ema, nem a calçada nem a rua
olhosa lhe ofereciam latitude suficiente. Com o que, casual, por ele
perpassou um padre conhecido, que retirou do breviário os óculos,
para a ele dizer: — Bêbado,
outra vez... — em pito de pastor a ovelha. —
É? Eu também... — o Chico respondeu, com, báquicos, o
melhor soluço e sorriso.
E,
como a vida é também alguma repetição, dali a pouco de novo o
apostrofaram: — Bêbado, outra
vez? E: — Não
senhor... — o Chico retrucou — ...
ainda é a mesma.
E,
mais três passos, pernibambo, tapava o caminho a uma senhora, de
paupérrimas feições, que em ira o mirou, com trinta espetos. —
Feia! — o Chico disse; fora-se-lhe a galanteria. —
E você, seu bêbado!? — megerizou a cuja. E, aí, o
Chico: — Ah, mas... Eu? ...
Eu, amanhã, estou bom...
E,
continuando, com segura incerteza, deu consigo noutro local, onde se
achavam os copoanheiros, com método iam combeber. Já o José, no
ultimado, errava mão, despejando-se o preciosíssimo líquido orelha
adentro. — Formidável!
Educaste-a? — perguntou o João, de apurado falar. —
Não. Eu bebo para me desapaixonar... Mas o Chico possuía
outros iguais motivos: — E eu
para esquecer... — Esquecer o que? — Esqueci.
E,
ao cabo de até que fora-de-horas, saíram, Chico e João empunhando
José, que tinha o carro. No que, no ato, deliberaram, e adiaram, e
entraram, ora em outra porta, para a despedidosa dose. João e Chico
já arrastando o José, que nem que a um morto proverbial. —
Dois uísques, para nós... — Chico e João pediram —
e uma coca-cola aqui para o amigo, porque ele é quem vai dirigir...
E
— quem sabe como e a que poder de meios — entraram no auto,
pondo-o em movimento. Por poucos metros: porque havia um poste. Com
mais o milagre de serem extraídos dos escombros, salvos e sãos, os
bafos inclusive. — Qual dos
senhores estava na direção? — foi-lhes perguntado. Mas:
— Ninguém nenhum. Nós todos
estávamos no banco de trás...
E,
deixado o José, que para mais não se prezava, Chico e João
precisavam vagamente de voltar a casas. O Chico, sinuoso,
trambecando; de que valia, em teoria, entreafastar tanto as pernas?
Já o João, pelo sim, pelo não, sua marcha ainda mais muito
incoordenada. — Olhe lá: eu
não vou contar a ninguém onde foi que estivemos até agora...
— o João predisse; epilogava. E ao João disse o Chico: —
Mas, a mim, que sou amigo, você não podia contar?
E,
de repente, Chico perguntou a João: —
Se é capaz, dê-me uma razão para você se achar neste estado?! Ao
que o João obtemperou: — Se
eu achasse a menorzinha razão, já tinha entrado em lar — para
minha mulher ma contestar...
E,
desgostados com isso, João deixou Chico e Chico deixou João. Com o
que, este penúltimo, alegre embora física e metafisicamente só,
sentia o universo: chovia-se-lhe. —
Sou como Diógenes e as Danáides... — definiu-se, para
novo prefácio. Mas, com alusão a João: —
É isto... Bêbados fazem muitos desmanchos... — se
consolou, num tambaleio. Dera de rodear caminhos, semi-audaz em
qualquer rumo. E avistou um avistado senhor e com ele se abraçou: —
Pode me dizer onde é que estou? — Na esquina de 12 de Setembro com
7 de Outubro. — Deixe de datas e detalhes! Quero saber é o nome da
cidade...
E
atravessou a rua, zupicando, foi indagar de alguém: —
Faz favor, onde é que é o outro lado? — Lá... —
apontou o sujeito. — Ora! Lá
eu perguntei, e me disseram que era cá...
E
retornou, mistilíneo, porém, porém. Tá que caiu debruçado em
beira de um tanque, em público jardim, quase com o nariz na água —
ali a lua, grande, refletida: — Virgem,
em que altura eu já estou!... E torna que, se-soerguido,
mais se ia e mais capengava, adernado: pois a caminhar com um pé no
meio-fio e o outro embaixo, na sarjeta. Alguém, o bom transeunte,
lhe estendeu mão, acertando-lhe a posição. —
Graças a Deus! — deu. —
Não é que eu pensei que estava coxo?
E,
vai, uma árvore e ele esbarraram, ele pediu muitas desculpas.
Sentou-se a um portal, e disse-se, ajuizado: —
É melhor esperar que o cortejo todo acabe de passar...
E,
adiante mais, outra esbarrada. Caiu: chão e chumbo. Outro próximo
prestimou-se a tentar içá-lo. —
Salve primeiro as mulheres e as crianças! — protestou o
Chico. — Eu sei nadar...
E
conseguiu quadrupedar-se, depois verticou-se, disposto a prosseguir
pelo espaço o seu peso corporal. Daí, deu contra um poste.
Pediu-lhe: — Pode largar meu
braço, Guarda, que eu fico em pé sozinho...
Com susto, recuou, avançou de novo, e idem, ibidem, itidem,
chocou-se; e ibibibidem. Foi às lágrimas: —
Meu Deus, estou perdido numa floresta impenetrável!
E,
chorado, deu-lhe a amável nostalgia. Olhou com ternura o chapéu,
restado no chão: — Se não me
abaixo, não te levanto. Se me abaixo, não me levanto. Temos de nos
separar, aqui...
E,
quando foi capaz de mais, e aí que o interpelaram: —
Estou esperando o bonde... — explicou. —
Não tem mais bonde, a esta hora. E: —
É? Então, por que é que os trilhos estão aí no chão?
E
deteve mais um passante e perguntou-lhe a hora. Daí: —
Não entendo... — ingrato resmungou. —
Recebo respostas diferentes,
o dia inteiro.
E
não menos deteve-o um polícia: —
Você está bebaço borracho! — Estou não estou... — Então,
ande reto nesta linha do chão. — Em qual das duas?
E
foi de ziguezague, veio de zaguezigue. Viram-no, à entrada de um
edifício, todo curvabundo, tentabundo. — Como é que o senhor quer
abrir a porta com um charuto? — É...
Então, acho que fumei a chave...
E,
hora depois, peru-de-fim-de-ano, pairava ali, chave no ar, na mão,
constando-se de tranquilo terremoto. —
Eu? Estou esperando a vez da minha casa passar, para poder abrir...
Meteram-no a dentro.
E,
forçando a porta do velho elevador, sem notar que a cabine se achava
parada lá por cima, caiu no poço. Nada quebrou. Porém: —
Raio de ascensorista! Tenho a certeza que disse: — Segundo andar!
E,
desistindo do elevador, embriagatinhava escada acima. Pôde entrar no
apartamento. A mulher esperava-o de rolo na mão. —
Ah, querida! Fazendo uns pasteizinhos para mim? — o Chico
se comoveu.
E,
caindo em si e vendo mulher nenhuma, lembrou-se que era solteiro, e
de que aquilo seriam apenas reminiscências de uma antiquíssima
anedota. Chegou ao quarto. Quis despir-se, diante do espelho do
armário: — Que?! Um homem
aqui, nu pela metade? Sai, ou eu te massacro!
E,
avançando contra o armário, e vendo o outro arremeter também ao
seu encontro, assestou-lhe uma sapatada, que rebentou com o espelho
nos mil pedaços de praxe. —
Desculpe, meu velho. Também, quem mandou você não tirar os óculos?
— o Chico se arrependeu.
E,
com isso, lançou; tumbou-se pronto na cama; e desapareceu de si
mesmo.
Guimarães Rosa, in Tutameia
Nenhum comentário:
Postar um comentário