A
ida de Carmindinha na costura e Xoxombo estudando na Missão, trouxe
zanga na Tunica. A menina começou refilar, todos os dias sempre água
para cartar, era longe, sá Domingas já não podia, ainda mais agora
a Espanhola para pastar no fim da tarde e o capim ali à volta não
tinha, estava todo roído. E depois, como ia brincar mesmo com as
outras miúdas, como antigamente, com a voz do velho capitão sempre
a avisar-lhe:
— Cuidado,
Tunica! Não deixa o chibo do sô Viriato chegar na Espanhola!
Não deixa a Espanhola sozinha! Guarda bem a cabrinha!
Tunica
saía sempre muxoxando, menina muito saliente, só gostava era ir na
loja para ouvir o rádio cheio de sambas e de rumbas. Mas, nos
sábados, Xoxombo não tinha escola e, nesses dias, o menino é que
ia pastar a cabra, gostava mesmo este trabalho, sentando debaixo do
imbondeiro para zunir pedrinhas e estudar geografia e ciências. Zeca
Bunéu e os outros seguiam com ele, aproveitando essas tardes para
pôr gaiola de alçapão ou armar o visgo para os plimplaus ou
perdiam-se pelo areal, procurando coisas no monte de lixo e deixando
o amigo para lhes assobiar se viessem os passarinhos.
Para
Xoxombo, capitão Abano não punha aviso especial. Tinha confiança
no filho, conhecia sua pontaria com a fisga e eram sem conta as
pedradas nos cornos dos chibos. Outras vezes ainda, subia o caminho
pelo capim para espreitar o menino no seu trabalho. Ali ficava,
debaixo da árvore, recordando geografia com o filho que era barra
nesse assunto, até lhe punha problemas a ele, marinheiro de barco de
cabotagem com viagens para cima até às ilhas verdes de São Tomé e
para baixo chegando em Walvis Bay.
Xoxombo
tinha sempre muita atenção no bode de sô Viriato, grande e feio,
com uma barba suja pendurada no focinho e perseguindo tudo quanto era
cabra. Sá Domingas não queria a Espanhola coberta, estava
dizer a cabrinha ainda era nova e lhe avisava sempre toda a
esperteza, falando o bode como muito perigoso.
Nessa
tarde, o grande rebanho pastava perto. O cacimbo estava para chegar e
as cabras andavam espalhadas pelo capim dentro, roendo os últimos
verdes das grandes chuvas, chamando os pequenos cabritos que saíam
nas corridas, aos saltos, fingindo pelejar. Debaixo dum muxixe os
pastores assobiavam ou zuniam pedras e, numa pequena corrida, o
rebanho juntava outra vez, ficando a pastar, sacudindo as moscas. O
velho chibo andava mais longe, sozinho, mas com um pequeno vento que
soprava do mar do Mussulo o cheiro dele chegava bem debaixo do pau
onde estava Xoxombo. O menino tinha amarrado a Espanhola ali
pertinho, no meio dum capim bom, e ouvia-lhe a roer as folhas,
falando às vezes para responder nas amigas que andavam mais longe.
De vez em quando, deixando o livro, Xoxombo olhava no Cinco, nos
cajueiros torcidos onde Zeca e os outros andavam ou então espiava o
caminho, esperando o velho capitão para lhe dar mais lição na
geografia. Assim, nessa calma do fim de tarde, com um vento fresco
empurrando nuvens brancas no céu, sentindo Espanhola ali
pertinho, Xoxombo deixou-se distrair nas figuras do livro.
É
aqui mesmo que as histórias desencontram.
Como
conta o Zeca Bunéu e outros meninos do musseque que andavam lá em
cima, miúdo Xoxombo, nessa hora, queria fazer malandro com a
cabrinha. Daí o chibo preto correu para ele e pôs-lhe umas
cornadas. Até hoje ninguém que percebe porquê o Zeca e os outros
falam sempre esta história assim. É verdade que, depois das
confusões do Zito, o Xoxombo ficou diferente, já não era aquele
menino antigo. Mas também não era aquele miúdo de malandro como
eles dizem. O Zeca jura, ainda hoje, que passou como ele conta: ele
mesmo é que viu, ninguém que pode discutir o que ele fala. Outra
coisa que conta mais, é que foi mesmo Zeca quem apareceu no
musseque, correndo na casa do capitão, a chamar sá Domingas,
gritando, assustado, o bode do sô Viriato estava matar o Xoxombo.
Mas
Carmindinha e a família não aceitam essa história assim. Embora
triste, a menina diz sempre, com raiva, que Xoxombo era miúdo,
estava querer tapar a cabra com o corpo dele para lhe escapar do
bode, e por isso os cornos do velho macho lhe feriram, furando-lhe
dois furos e enchendo-lhe de cornadas por todos os lados.
Velho
capitão saiu nas corridas, ninguém que lhe apanhou, mesmo velho
como era. Rodeando sá Domingas, a tremer agarrada na Carmindinha,
toda a gente do nosso musseque foi também no imbondeiro. Quando lá
chegaram, o menino estava desmaiado no chão, os miúdos à volta,
atrapalhados, ninguém que sabia o que ia fazer. Bento Abano,
abaixado, levantava-lhe a cabeça e punha chapadas pequenas na cara
do filho, queria-lhe acordar; mas o sangue corria das feridas e,
sempre que respirava, saía na boca e pintava a camisa e os braços
do velho pai.
O
sol da tarde já tinha fugido, só o céu azul era agora vermelho
como o sangue do Xoxombo. Soprava um vento pequeno que levava as
lamentações e choros das mulheres ali à volta. Mas ninguém que
resolvia nada, só o velho capitão continuava a limpar o sangue. Foi
mesmo o Zeca Bunéu que salvou o caso. Na zuna, todos viram-lhe
correr pelo capim, aos saltos parecia era cabrito, para esquivar os
cacos; mais tarde, quando chegou a ambulância a gritar a buzina dela
e levaram o Xoxombo no Hospital Central é que a gente soubemos que o
menino adiantou correr na padaria, onde que meu pai estava trabalhar,
e pediu-lhe para telefonar no hospital.
Nesse
fim de tarde, toda a gente ficou ainda muito tempo consolando sá
Domingas e as meninas, falando não era nada, Xoxombo ia voltar
mesmo, mas só dez horas já é que o capitão apareceu. A cara velha
parecia era de morto e não falava direito para ninguém, homem
delicado como só ele, percebemos que era perigo, o Xoxombo tinha que
ficar no hospital.
Três
semanas ali o fomos ver sempre. Dona Branca e seu homem, o mestre
sapateiro, com Zeca Bunéu muito penteado; minha madrasta, puxando-me
nas orelhas, fazendo queixa os meus dedos cheios de tinta que não
saía mais; Carmindinha, com seu sorriso um pouco triste, que ficou
sempre assim, e que eu gostava tanto; Tunica, sempre alegre; velho
capitão, mais magro, mais velho, sofrendo a doença do único filho
macho; e sua companheira, resignada com a vontade de Deus, como ela
dizia.
O
Biquinho veio mesmo de longe, do Bairro Operário onde que estava
morar agora e até o Antoninho e o Nanito lhe levaram os doces para
ele. Só o Zito, coitado, não apareceu, estava outra vez na
esquadra.
Mas
o corno do velho chibo tinha furado muito fundo no pulmão e Xoxombo,
fraco, não aguentou. Uma noite triste a gente lhe velámos e vieram
os amigos de todos os lados. Penso que foi nessa noite que, pela
primeira vez, as minhas mãos apertaram as de Carmindinha e sá
Domingas chorou, entre lágrimas caladas, um sorriso de aprovação.
A certeza só tenho que o primeiro beijo que dei-lhe, muito leve,
muito cheio de medo, foi atrás da buganvília da porta do Cemitério
Velho, naquele dia de chuva pequena em que levámos a enterrar o
nosso companheiro de brincadeiras Xoxombo.
*
Assim
nasceu a alcunha: os que estavam morar mais longe do nosso musseque,
quando souberam a história, riam-se, gozavam e diziam que no nosso
grupo até faziam malandro com cabras. Daí começaram referir o
nosso companheiro morto como Xoxombo Trepa-na-Cabra.
É
esta a história. Pena que eu não tivesse posto bem. Xoxombo vai-me
desculpar mas é para fazer justiça à sua memória que eu conto
mesmo assim.
Quanto
a ti, Carmindinha, naquela conversa da costura, tua mãe é que
sabia. Teu pai, velho e saudoso capitão Bento Abano, nunca quis
acreditar essa verdade. Tenho ou não tenho razão, dona Mindinha, sô
pessora de corte e lavores da Associação Regional que hoje encontro
na porta do Cemitério Alto-das-Cruzes, onde está plantado e
floresce o nosso amigo e teu irmão Xoxombo Trepa-na-Cabra?
José Luandino Vieira, in Nosso Musseque
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