terça-feira, 20 de setembro de 2022

O homem absurdo

A conquista

Não”, diz o conquistador, “não creia que por amar a ação me foi preciso desaprender a pensar. Ao contrário, posso perfeitamente definir aquilo em que acredito. Porque acredito com força e vejo-o com uma visão clara e precisa”. Desconfie dos que dizem: “Isso eu conheço bem demais para poder exprimi-lo.” Porque, se não o podem, é porque não o conhecem ou porque, por preguiça, pararam na casca.
Não tenho muitas opiniões. No final de uma vida, o homem percebe que passou anos se convencendo de uma única verdade. Mas uma só, se é evidente, é bastante para a direção de uma existência. No meu caso, decididamente tenho alguma coisa a dizer sobre o indivíduo. Deve-se falar disso com aspereza e, se preciso, com o devido desprezo.
Um homem é um homem mais pelas coisas que cala do que pelas que diz. Não falta muito para eu me calar. Mas acredito firmemente que todos aqueles que julgaram o indivíduo o têm feito com muito menos experiência do que nós para fundamentar seu julgamento. A inteligência, a comovedora inteligência talvez tenha pressentido o que era preciso verificar. Mas a época, suas ruínas e seu sangue nos cumulam de evidências. Era possível a povos antigos, e mesmo aos mais recentes antes da nossa era maquinal, pesar os prós e contras da sociedade e do indivíduo, procurar qual devia servir o outro. Isso era possível, antes de tudo, em vista dessa aberração insistente no coração do homem e segundo a qual os seres foram postos no mundo para servir ou serem servidos. E era possível, também, porque nem a sociedade nem o indivíduo tinham ainda mostrado toda a sua aptidão.
Vi espíritos sensatos se maravilharem com obras-primas de pintores holandeses nascidos no coração das sangrentas guerras de Flandres e se comoverem com as preces dos místicos silesianos elevadas em meio à pavorosa Guerra dos Trinta Anos. Os valores eternos, ante seus olhos assombrados, sobrenadam acima dos tumultos seculares. Mas o tempo continuou andando. Os pintores de hoje estão privados dessa serenidade. Mesmo se têm no fundo o coração necessário ao criador, um coração seco, quero dizer, ele não é de nenhuma utilidade, pois todo o mundo e o próprio santo estão mobilizados. Eis aí, talvez, o que senti mais profundamente. A cada forma abortada nas trincheiras, a cada traço, metáfora ou oração triturada sob as ferragens, o eterno perde uma partida. Consciente de que não posso me separar do meu tempo, resolvi ser unha e carne com ele. É porque não ligo muito para o indivíduo a não ser que me pareça ridículo e humilhado. Ciente de que não há causas vitoriosas, tomo gosto pelas causas perdidas: elas requerem uma alma inteira, igual à sua derrota, como a suas vitórias passageiras. Para quem se sente solidário com o destino desse mundo, o choque das civilizações tem alguma coisa de angustiante. Fiz minha essa angústia, ao mesmo tempo que quis jogar aí minha partida. Entre a história e o eterno escolhi a história porque gosto das certezas. Pelo menos dela estou certo, e como negar esta força que me esmaga?
Acaba sempre chegando um tempo em que é preciso escolher entre a contemplação e a ação. Chama-se isso tornar-se um homem. Essas dilacerações são terríveis. Mas, para um coração orgulhoso, não pode haver meio termo. Há Deus ou o tempo, essa cruz ou essa espada. Esse mundo tem um sentido mais alto, que ultrapassa as suas agitações, ou não há nada verdadeiro a não ser essas agitações. É necessário viver com o tempo e morrer com ele ou se subtrair a ele para uma vida maior. Sei que se pode transigir e que se pode viver no século acreditando no eterno. Isso se chama aceitar. Mas essa palavra me repugna, e eu quero tudo ou nada. Se escolho a ação, não pense que a contemplação me seja como uma terra desconhecida. Mas ela não pode me dar tudo e, privado do eterno, quero me aliar ao tempo. Não quero fazer constar na minha conta nem saudade nem amargura: só quero é ver com clareza. É como lhe digo: amanhã você será mobilizado. Para você e para mim, isso é uma libertação. O indivíduo não pode nada e, no entanto, pode tudo. Nessa maravilhosa disponibilidade você compreende por que o exalto e o esmago ao mesmo tempo. E o mundo que o tritura e sou eu que o liberto. Eu lhe forneço todos os seus direitos.
Os conquistadores sabem que a ação, em si, é inútil. Só existe uma ação útil: a que restaura o homem e a terra. Eu não vou nunca restaurar os homens. Mas é preciso fazer “como se”. Pois o caminho da luta me leva a redescobrir a carne. Mesmo humilhada, a carne é a minha única certeza. Só posso viver dela. A criatura é a minha pátria. Eis por que escolhi esse esforço absurdo e sem perspectiva. Eis por que estou do lado da luta. A época se presta a isso, já o disse. Até aqui a grandeza de um conquistador era geográfica. Media-se pela extensão dos territórios vencidos. Não é por acaso que a palavra mudou de sentido e já não designa o general vencedor. A grandeza mudou de campo. Ela está no protesto e no sacrifício sem futuro. Também aí, não é por gosto da derrota. A vitória seria desejável. Mas só há uma vitória, e é eterna. É a que nunca terei. Eis para onde eu aponto e ao que me agarro. Uma revolução sempre se realiza contra os deuses, a começar por aquela de Prometeu, o primeiro dos conquistadores modernos. É uma reivindicação do homem contra seu destino: a reivindicação do pobre é apenas um pretexto. Mas eu só posso me apoderar desse espírito em seu ato histórico e é aí que o encontro. Não acredite, porém, que me deleito com isso: ante a contradição essencial, sustento minha humana contradição. Instalo minha lucidez no meio daquilo que a desmente. Exalto o homem diante do que o esmaga e minha liberdade, minha revolta e minha paixão se reúnem assim nessa tensão, nesse discernimento e nessa repetição desmesurada.
Sim, o homem é seu próprio fim. E é seu único fim. Se quer ser alguma coisa, é nesta vida. Agora eu o sei de sobra. Algumas vezes, os conquistadores falam de vencer e dominar. Mas é sempre “se dominar” que eles ouvem. Você bem sabe o que isso quer dizer. Todo homem se sentiu, em certos momentos, igual um a deus. É pelo menos assim que o dizem. Mas isso provém de que, num clarão, ele sentiu a espantosa grandeza do espírito humano. Os conquistadores são apenas aqueles dentre os homens que sentem suficientemente sua força para estarem seguros de viver todo o tempo em suas alturas e na plena consciência dessa grandeza. É uma questão aritmética, de mais ou de menos. Os conquistadores podem mais. Mas eles não podem mais que o próprio homem, quando o quer. É por que eles não deixam nunca o crisol humano, que mergulha todo em brasa na alma das revoluções.
Eles encontram a criatura mutilada, mas também redescobrem os únicos valores que amam e que admiram, o homem e seu silêncio. É ao mesmo tempo sua miséria e sua riqueza. Para eles, só existe um luxo: o das relações humanas. Como não compreender que nesse universo vulnerável tudo o que é humano, e nada mais que isso, adquire um sentido mais acalorado? Rostos estendidos, fraternidade ameaçada, amizade tão forte e tão pudica dos homens entre si, são as verdadeiras riquezas, porque são perecíveis. É no meio deles que o espírito sente melhor os seus poderes e limites. Numa palavra, sua eficácia. Alguns falaram de gênio. Mas ao gênio – é bom ir dizendo logo – prefiro a inteligência. É preciso dizer que ela pode então ser magnífica. Aclara esse deserto e o domina. Conhece suas servidões e as ilustra. Morrerá ao mesmo tempo que esse corpo. Mas o saber é a sua liberdade.
Nós não o ignoramos: todas as Igrejas estão contra nós. Um coração tão aplicado se esquiva ao eterno e todas as Igrejas, divinas ou políticas, aspiram ao eterno. A felicidade e a coragem, o salário ou a justiça são, para elas, fins secundários. É uma doutrina que trazem e nos impõem subscrever. Mas eu não tenho nada a fazer com as ideias ou com o eterno. As verdades que estão na minha escala podem ser tocadas com a mão. Não posso me separar delas. Eis por que você não pode basear nada em mim: nada do conquistador dura muito, sequer suas doutrinas.
No extremo de tudo isso, apesar de tudo, está a morte. Nós sabemos. Sabemos também que ela liquida tudo. Eis por que esses cemitérios que cobrem a Europa, e que obsedam alguns dentre nós, são horrorosos. Só se embeleza aquilo que se ama e a morte nos repugna, nos fatiga. Também ela está conquistando. O último Carrara, prisioneiro numa Pádua esvaziada pela peste, sitiada pelos venezianos, percorria aos urros as salas de seu palácio deserto: apelava para o demônio e lhe pedia a morte. Era uma forma de superá-la. E é ainda um traço de coragem próprio do Ocidente ter tornado tão horríveis os lugares em que a morte se crê honrada. No universo do revoltado, a morte exalta a injustiça. Ela é o supremo abuso.
Outros, igualmente sem transigir, escolheram o eterno e denunciaram a ilusão deste mundo. Seus cemitérios sorriem, povoados de flores e de pássaros. Isso convém ao conquistador e lhe dá a imagem clara do que ele repeliu. Escolheu, ao contrário, a cerca de ferro preto ou a vala comum. Os melhores dentre os homens do eterno às vezes se sentem tomados de um espanto repleto de consideração e piedade diante de espíritos que podem viver com uma semelhante imagem de sua morte. No entanto, esses espíritos extraem daí a sua força e a sua justificação. Nosso destino está diante de nós e é ele que desafiamos. Menos por orgulho do que por consciência da nossa condição sem perspectiva. Também nós, até nós temos às vezes piedade de nós mesmos. É a única compaixão que nos parece aceitável: um sentimento que talvez você não compreenda e ache pouco viril. No entanto, são os mais audaciosos dentre nós que o experimentam. Mas nós chamamos viris os lúcidos e não queremos uma força que se separe da lucidez.
Uma vez mais não são morais que essas imagens propõem, e não implicam julgamentos: são desenhos. Só delineiam um estilo de vida. O amante, o comediante ou o aventureiro representam o absurdo. Mas de igual modo, se o quiserem, o casto, o funcionário ou o presidente da república. Basta saber e não mascarar nada. Nos museus italianos encontram-se às vezes pequenas telas pintadas que o padre mantinha diante do rosto dos condenados para lhes esconder o cadafalso. O salto em todas as suas formas, a precipitação no divino ou no eterno, a entrega às ilusões do cotidiano ou da ideia, todas essas telas escondem o absurdo. Mas há funcionários sem telas e é desses que eu quero falar.
Escolhi os mais extremados. A esse ponto, o absurdo lhes dá um poder real. É verdade que esses príncipes estão sem reino mas eles têm sobre os outros a vantagem de saber que todas as realezas são ilusórias. Eles sabem, eis aí toda a sua grandeza, e é inútil querer falar a seu respeito de infelicidade secreta ou das cinzas da desilusão. Estar crivado de esperança não é desesperar. As chamas da terra bem valem os perfumes terrestres. Nem eu nem ninguém pode julgá-los aqui. Eles não procuram ser melhores: tentam ser consequentes. Se a palavra sábio se aplica ao homem que vive do que tem sem especular sobre o que não tem, então aqueles são sábios. Um deles, conquistador mas no terreno do espírito, Don Juan mas do conhecimento, comediante mas da inteligência, sabe-o melhor que qualquer um: “Não se merece de maneira alguma um privilégio sobre a terra e no céu quando se levou uma querida e suave doçura de carneiro até a perfeição: não se continua menos, na melhor das hipóteses, a ser um caro carneirinho ridículo e nada mais - mesmo admitindo que não se arrebente de vaidade e que não se provoque escândalo com as atitudes de juiz.”
Era preciso, em todo caso, devolver ao raciocínio absurdo rostos mais calorosos. A imaginação pode acrescentar muitos outros, revirados no tempo e no exílio, que também sabem viver de conformidade com um universo sem futuro e sem fraqueza. Esse mundo absurdo e sem deus se povoa então de homens que pensam claro e não esperam mais. E ainda não falei do mais absurdo dos personagens, que é o criador.

Albert Camus, in O Mito de Sísifo – Ensaio sobre o absurdo

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