domingo, 11 de setembro de 2022

O homem absurdo

A comédia

O espetáculo,” diz Hamlet, “eis a armadilha com que apanharei a consciência do rei”. Apanhar é a palavra certa. Porque a consciência anda depressa ou se encolhe. É preciso capturá-la em pleno voo, nesse momento inestimável em que ela lança sobre si mesma um olhar fugaz. O homem cotidiano não gosta nada de perder tempo. Tudo o impulsiona no sentido oposto. Mas, ao mesmo tempo, nada lhe interessa mais do que ele próprio, sobretudo quanto ao que ele poderia ser. Daí seu gosto pelo teatro, pelo espetáculo, em que lhe são propostos tantos destinos de que ele recebe a poesia sem lhes sofrer a amargura. Pelo menos ali se reconhece o homem inconsciente e continua a se apressar para sabe-se lá que esperança. O homem absurdo começa onde este último termina, e onde, parando de admirar o jogo, o espírito quer entrar nele. Penetrar em todas essas vidas, experimentá-las em sua diversidade, é exatamente representá-las. Não digo que os atores em geral correspondam a esse apelo, que eles são homens absurdos mas que seu destino é um destino absurdo que poderia seduzir e atrair um coração aberto. Isso era necessário apresentar para entender sem contrassenso o que se segue.
O ator reina no perecível. É sabido que de todas as glórias a sua é a mais efêmera.
Isso pelo menos é dito nas conversas. Mas todas as glórias são efêmeras. Do ponto de vista de Sírius, as obras de Goethe dentro de dez mil anos serão pó, e seu nome será esquecido. Alguns arqueólogos, quem sabe, procurarão “testemunhos” do nosso tempo. Essa ideia sempre tem sido educativa. Bem considerada, ela reduz as nossas agitações à nobreza profunda que se acha na indiferença e principalmente orienta as nossas preocupações para o mais seguro, isto é, para o imediato. De todas as glórias, a menos enganosa é a que se vive.
O ator escolheu, portanto, a glória incontável, aquela que se consagra e se experimenta. É ele quem extrai a melhor conclusão desse fato de que, um dia, tudo tem de morrer. Um ator tem sucesso ou não o tem. Um escritor mantém uma esperança mesmo se é desconhecido. Supõe que suas obras testemunharão o que ele foi. O ator nos deixará, no máximo, uma fotografia e nada do que ele era: seus gestos e seus silêncios, seu fôlego estrito ou sua respiração no amor não chegarão até nós. Não ser conhecido dele é não representar e não representar é morrer cem vezes em todos os seres que ele teria animado ou ressuscitado.
O que há de assombroso em achar uma glória perecível edificada sobre as mais efêmeras das criações? O ator tem três horas para ser Iago ou Alceste, Fedra ou Gloucester. Nessa curta passagem, ele os faz nascer e morrer sobre cinquenta metros quadrados de tablado. Jamais o absurdo foi tão bem ou por tão longo tempo ilustrado. Essas vidas maravilhosas, esses destinos únicos e completos que crescem e se acabam entre paredes e em algumas horas, que síntese mais reveladora desejar? Ao deixar o palco, Sigismundo não é mais nada. Duas horas depois, é visto jantando fora. É talvez nesses momentos que a vida é um sonho. Mas depois de Sigismundo vem um outro. O herói que sofre de incerteza substitui o homem que ruge após sua vingança. Percorrendo assim os séculos e os espíritos, imitando o homem tal como pode ser e tal como é, o ator se junta a esse outro personagem absurdo que é o viajante. Como este, ele esgota alguma coisa e caminha incessantemente. É o viajante do tempo e, no caso dos melhores, o viajante perseguido pelas almas. Se a moral da quantidade não pudesse nunca encontrar um alimento, se daria bem com essa cena singular. Em que medida o ator se beneficia desses personagens, é difícil dizer. Mas o importante não está aí. Trata-se de saber, apenas, até que ponto ele se identifica com essas vidas insubstituíveis. Acontece, realmente, que ele as transporta consigo, e que elas excedem sutilmente o tempo e o espaço em que nasceram: acompanham o ator, que já não se separa facilmente daquilo que ele foi. Ocorre que, para pegar o seu copo, ele redescobre o gesto de Hamlet levantando a taça. Não, não é tão grande a distância que o separa dos seres que ele faz viver. Ilustra, então, todos os meses, ou todos os dias, e abundantemente, essa verdade tão fecunda de que não há fronteira entre o que um homem quer e o que ele é. Até que ponto o parecer faz o ser é que ele demonstra, se ocupando sempre de representar cada vez melhor.
Porque esta é a sua arte, a de fingir totalmente, de entrar o mais fundo possível em vidas que não são as suas. Ao final de seu esforço, sua vocação se aclara: aplicar-se de todo o coração em não ser nada ou em ser muitos. Quanto mais estreito é o limite que lhe é dado para criar seu personagem, tanto mais necessário lhe é o talento. Vai morrer dentro de três horas sob o rosto que hoje é o seu. É preciso que em três horas experimente e expresse todo um destino excepcional. Isso se chama perder-se para se reencontrar. Dentro de três horas, ele vai até o fim do caminho sem saída que o homem da plateia leva a vida inteira para percorrer.
Mimo do perecível, o ator só se exerce e se aperfeiçoa na aparência. A convenção do teatro é que o coração se exprime e se faz compreender apenas pelos gestos e no corpo – ou pela voz, que é tanto alma quanto corpo. A lei dessa arte quer que tudo seja ampliado e se traduza em carne. Se fosse preciso, em cena, amar como se ama, usar essa insubstituível voz do coração, olhar como se contempla, nossa linguagem ficaria cifrada. Aqui os silêncios têm de se fazer entender. O amor eleva o tom e a própria imobilidade deve integrar o espetáculo. O corpo é rei. Não é “teatral” quem quer e essa palavra, erroneamente desconsiderada, compreende toda uma estética e toda uma moral. A metade de uma vida humana se passa em subentender, desviar a cabeça e se calar. O ator, aqui, é o intruso. Quebra o encanto dessa alma acorrentada e as paixões enfim se lançam sobre a cena. Falam em todos os gestos, vivem somente de gritos. Assim o ator compõe seus personagens para a exibição. Desenha-os ou os esculpe, funde-se com sua forma imaginária e dá a seus fantasmas o seu sangue. Falo do grande teatro, é claro, o que dá ao ator a oportunidade de preencher seu destino todo físico. Vejam Shakespeare. Nesse teatro essencialmente do movimento são os furores do corpo que dirigem a dança. Eles explicam tudo. Sem eles, tudo se desmoronaria. Jamais o Rei Lear iria ao seu encontro marcado com a loucura sem o gesto brutal que exila Cordélia e condena Edgar. É justo, então, que essa tragédia se desenvolva sob o signo da demência. As almas estão entregues aos demônios e à sua sarabanda. Nada menos que quatro loucos, um por ofício, outro por vontade, os dois últimos por aflição: quatro corpos desordenados, quatro rostos indizíveis de uma mesma condição.
A própria escala do corpo humano é insuficiente. A máscara e os coturnos, a maquiagem que reduz e acentua o rosto em seus elementos essenciais, os figurinos que exageram e simplificam, esse universo sacrifica tudo à aparência e é feito apenas para o olho. Por um milagre absurdo, é também o corpo que traz o conhecimento. Eu jamais compreenderia bem Iago senão o representando. Não me adianta ouvi-lo: eu só o apreendo no momento em que o vejo. Do personagem absurdo, o ator consequentemente tem a monotonia, essa silhueta única, atordoante, a um tempo estranha e familiar, que ele faz passear através de todos os personagens. Também aí a grande obra teatral favorece essa unidade de tom. É aí que o ator se contradiz: o mesmo e, no entanto, tão diverso, tantas almas resumidas por um só corpo. Mas é a própria contradição absurda esse indivíduo que quer atingir tudo e viver tudo, essa vã tentativa, essa teimosia sem paradeiro. O que sempre se contradiz, no entanto, nele se une. Ele está nesse lugar em que o corpo e o espírito se reencontram e se ligam, em que o segundo, cansado de seus fracassos, se volta para seu mais fiel aliado. “E abençoados sejam aqueles” diz Hamlet “cujo sangue e julgamento são tão curiosamente misturados que eles não são flauta em que o dedo da fortuna faz cantar o buraco que lhe apraz”.
Como a Igreja não teria condenado semelhante exercício por parte do ator? Ela repudiava nessa arte a multiplicação herética das almas, a intemperança das emoções, a pretensão escandalosa de um espírito que se recusa a só viver um destino e se precipita em todos os excessos. Ela lhe prescrevia esse gosto do presente e esse triunfo de Proteu que são a negação de tudo que ela ensina. A eternidade não é um jogo. Um espírito bastante insensato para preferir a ela uma comédia não tem mais salvação. Entre “por toda parte” e “sempre”, ele não tem compromisso. Daí esse ofício tão depreciado poder originar um conflito espiritual descomedido. “O que importa” diz Nietzsche “não é vida eterna, é a eterna vivacidade”. Todo o drama está realmente nessa escolha.
Adriana Lecouvreur, em seu leito de morte, consentiu em se confessar e comungar, mas se recusou a abjurar sua profissão. Perdeu, por isso, o benefício confessional. O que era isso pois, realmente, senão tomar contra Deus o partido de sua profunda paixão? E essa mulher em agonia, recusando entre lágrimas renegar o que chamava sua arte provava uma grandeza que jamais atingira diante da ribalta. Foi seu mais belo papel, e o mais difícil de desempenhar. Escolher entre o céu e uma irrisória fidelidade, se preferir à eternidade ou a se submergir em Deus é a tragédia secular em que é preciso tomar parte.
Os comediantes da época se sabiam excomungados. Ingressar na profissão era escolher o Inferno. E a Igreja distinguia neles seus piores inimigos. Alguns literatos se indignam: “Imagine, recusar a Molière os últimos socorros!” Mas isso era justo para aquele que morreu em cena e encerrou sob a pintura do rosto uma vida inteira devotada à dispersão. Invoca-se a seu respeito o gênio que dispensa tudo. Mas o gênio não dispensa nada, exatamente porque se recusa a isso.
O ator sabia, então, que punição lhe estava reservada. Mas que sentido podiam ter tão vagas ameaças diante do último castigo que a vida lhe preparava? Era esse que ele antecipadamente experimentava, e aceitava por inteiro. Para o ator, como para o homem absurdo, uma morte prematura é irreparável. Nada pode compensar a soma dos rostos e dos séculos que ele, sem isso, teria percorrido. Mas, seja como for, se trata de morrer. Porque o ator está sem dúvida em toda parte, mas o tempo também o acorrenta e exerce sobre ele seu efeito.
Basta então um pouco de imaginação para sentir o que significa um destino de ator. É no tempo que ele compõe e enumera seus personagens. É também no tempo que aprende a dominá-los. Quanto mais vidas diferentes ele viveu, melhor se separa delas. Chega o tempo em que é preciso morrer no palco e no mundo. O que ele viveu está diante dele. Vê com clareza. Sente o que essa aventura tem de dilacerante e de insubstituível. Ele sabe e pode, agora, morrer. Há casas de repouso para velhos comediantes.

Albert Camus, in O Mito de Sísifo – Ensaio sobre o absurdo

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