sábado, 24 de setembro de 2022

Cida

A Cida morava na praça Antônio Callado, endereço bacana a poucos passos do mar do Leblon. Na época em que eu caminhava no calçadão da praia, me habituei a vê-la duas vezes por dia, na ida e na volta para casa. Era uma mulher até bonita, apesar da pele rude e dos dentes maltratados; tinha entre trinta e quarenta anos e usava roupas de grife ao sol do meio-dia. Eram longos, tailleurs, pantalonas e até uma estola de lebre que as moradoras dos prédios ricos lhe doavam por caridade e por deboche. Também graças à vizinhança ela aproveitava sobras de refeições e tinha um travesseiro para deitar a cabeça no banco de cimento. Em noites de chuva dormia numa guarita abandonada na calçada do canal do Leblon, bem em frente ao seu jardim. E nas águas não muito limpas desse canal fazia suas necessidades, se lavava e lavava suas roupas finas, conforme ouvi dos porteiros dos prédios no entorno. Ao atravessar a praça, no começo eu lhe deixava uma nota de dois reais, o preço de uma água de coco, que ela guardava numa caixa de sapatos sem agradecer nem erguer os olhos. Aumentei o agrado para três, quatro, cinco, mas só a partir dos dez reais ela me deu confiança e me apresentou seu mundo: o pé de feijão, as marias-sem-vergonha, a corrida de formigas. Chamava as formigas pelo número, 106, 132, 443, que era o das linhas de ônibus que paravam do outro lado do pontilhão. Citava o nome dos motoristas e cobradores, os que eram bons, os que eram maus, depois me pedia para lhe trazer de Ipanema um pão doce com creme de baunilha. Vira e mexe perguntava se eu tinha chumbinho para matar pombos, e achando que eu era advogado, queria que eu mandasse para a cadeia uma babá que tinha roubado o seu dinheiro. Um dia desandou a falar da infância, da sua família rica, dos pais que tinham uma fábrica de sabão nos fundos de casa. Queriam que ela se casasse com um português mais rico ainda, um velho coroca, por isso fugiu com um famoso ator de televisão, e mais não me contava porque eu era da polícia.
Por um bom tempo a Cida encasquetou que eu era um agente secreto. Ao me ver chegando ela fugia com a caixa de sapatos debaixo do braço para se esconder atrás dos carros estacionados na praça. Depois passou a me ignorar, largava minhas esmolas jogadas no chão. Foi o período em que deu para se pintar; usava batom, blush, esmalte de unhas, bobes de cabelo, e descolou um balde para escovar os dentes com água do canal. Ao mesmo tempo foi corrigindo a postura acorcundada, a cabeça baixa, o modo de olhar sem ver, e um dia me parou para dizer que, apesar de ser político, eu tinha jeito de bom pai. Eu tinha cara de quem amaria o seu futuro filho, o levaria para morar num apartamento alto e lhe ensinaria bons modos. Expliquei que eu era casado, não podia fazer filho nela, mas não era isso que ela queria. Ela queria que eu criasse o filho que ela trazia na barriga, e bem que eu já a tinha achado meio pançuda. Logo entendi que ela não sabia quem era o pai da criança, e mais uma vez me enganei. O pai da criança era o Ló, que por enquanto não tinha condições de manter um filho no Rio de Janeiro, mesmo com todo o dinheiro que ela lhe adiantava. O Ló não era daqui e achava uma tremenda irresponsabilidade levar uma criança para morar com ele num lugar tão longe. Sugeri que eles refizessem a vida juntos até no Nordeste, se fosse o caso, mas a Cida falou que eu nunca entendia nada. Apontou na direção do céu onde ficava o país do Ló, só que não dava para ver de dia. Não acreditei que a Cida viesse com conversa de extraterrestre, mas segundo ela o Ló vinha realmente de outra constelação, de um tal planeta chamado Labosta. O Ló até lhe ensinava palavras na língua de Labosta, para quando eles finalmente pudessem se estabelecer por lá. Outro dia ele lhe trouxe do planeta um anel de compromisso, para que ela não botasse chifre nele durante suas ausências. As joias que ele lhe dava estavam guardadas na sua caixa de sapatos, que depois de muita relutância e mediante uma nota de cinquenta, ela me abriu. Eu nada disse, mas ela ficou ofendida com a minha cara, que era a cara de quem vê um punhado de areia e brita no fundo de uma caixa. Eu não tinha capacidade para compreender que aquilo eram ouros, pratas, diamantes, tesouros que se desintegravam com a entrada na atmosfera terrestre mas que na subida voltariam ao estado brilhante. Sem ironia lhe perguntei se o Ló também não virava pó com essas viagens intergalácticas, e pela primeira vez a vi sorrir. Disse ela que, como imperador de Labosta, além do sangue azul, o Ló tinha carne de matéria especial e era todo empelicado por fora. Mas como também tinha um coração humilde, quando baixava por aqui fazia uns bicos como servente de obra e dividia com os peões um muquifo na favela.
Não sei se a Cida queria botar chifre no Ló, mas na falta dele foi se apegando a mim. Nem bem eu despontava na praça, ela saltava do banco determinada a me acompanhar nas minhas andanças. Confesso que me dava um pouco de vergonha, porque no calçadão eu sempre topava com conhecidos, e por mais que acelerasse ela emparelhava comigo, com seu vestido de baile, a barriga protuberante e a caixa de sapatos. Então passei a percorrer as ruas interiores, com menos movimento, e de vez em quando ela dava umas paradas para recuperar o fôlego, pedir um pão doce ou olhar as modas nas vitrines. Com receio de que ela me seguisse até em casa, na volta da caminhada eu me sentava a seu lado no banco da praça, onde ela acabava por se recostar e dormir. Sua barriga crescia mais e mais, mas só do lado esquerdo, e quando lhe falei de consultar um médico ela me olhou com uma cara de raiva que eu desconhecia. Era evidente que tinha horror a médicos, talvez tivesse tomado eletrochoques, mas já devia estar no nono mês de gravidez e eu não sabia que providência tomar.
Cida, precisamos tomar uma providência.
Como é que é?
Onde é que você vai dar à luz?
Como é que é?
Onde é que você vai parir seu filho?
Na vagina, né, idiota.
Certa vez andávamos devagar à beira do canal, onde não passava ninguém e já escurecia. No meio da caminhada ela parou e pegou a rir, porque tinha feito xixi sem ter vontade. Levantou a saia para eu ver, mas o líquido nas pernas dela não cheirava a xixi e era esverdeado. Apressei-a para avançarmos mais algumas quadras, pois a nossa rua desembocava quase em frente ao Hospital Miguel Couto. Ao ver o hospital ela deu meia-volta, saiu correndo com aquele barrigão e fez sinal para um ônibus 132, que a recolheu fora do ponto.
Corria o boato de que ela havia parido num ônibus, mas os motoristas do ponto não o confirmavam. Os porteiros, os vigias, as babás, durante muito tempo ninguém mais teve notícias da Cida. E eu quase nem pensava mais nela quando a reencontrei no banco da praça, dando de mamar a uma menina de seus cinco anos, a pele leitosa, os cabelos crespos e ruivos, meio descoloridos, e os olhos azuis claros demais. A Cida me esperava com naturalidade, como se nos tivéssemos visto na véspera, e me apresentou a Sacha, que não largava do seu peito. O vestido de poá sobrava no corpo emagrecido da Cida, seu rosto perdera o viço e o branco dos seus olhos estava de um amarelo-hepatite. Tentei timidamente lhe falar de um amigo clínico geral, mas ela me cortou na hora. Disse que seu leite estava secando, por isso vinha me entregar a filha, como combinado. Ela estava enganada, eu morava sozinho e não daria conta de uma criança. Além do mais, a menina tinha pai e já era a hora de o Ló olhar por ela numa de suas passagens por aqui. Ela defendia o Ló, que fazia questão de dar à filha uma educação de princesa no seu planeta. O problema era que a Sacha não queria morar em Labosta de jeito nenhum, tinha medo de cair daquela altitude. Então a Cida só esperava desmamar a filha para deixá-la aos meus cuidados e partir ao encontro do Ló. Naquele dia eu estava sem paciência, precisava caminhar para pensar nos meus assuntos, mas quando me despedi com um beijo na sua testa, ela resolveu dizer aos berros que ia dar queixa na polícia. Surgiram os porteiros, as babás, as cozinheiras dos prédios, mais os motoristas e cobradores do ponto de ônibus, e ela dizendo que eu abusava dela desde criança e agora não queria assumir minha filha. Aí perdi a cabeça e falei o que não devia falar, falei que ela era louca. Em seguida pensei que ela fosse me bater na cara, mas não; baixou a cabeça, puxou a filha pela mão, cruzou o pontilhão e embarcou num ônibus 443. Era uma linha circular, e imaginei que a Cida daria voltas e mais voltas na cidade até enjoar. Eu estava disposto a lhe pedir desculpas, quem sabe até ajudá-la a encaminhar a filha para adoção, pois ouvi dizer que há muita demanda para crianças brancas como a dela. Só que não revi a Cida naquele dia, nem no dia seguinte, nem nunca mais.
Com o passar dos anos, por motivos alheios a este relato, deixei de frequentar a praia do Leblon, mas sempre que passava de carro pela praça Antônio Callado, não podia evitar uma olhadela no jardim. Era na verdade um cacoete, pois não havia possibilidade de a Cida voltar a viver ali. A associação de moradores do bairro não queria mais saber de mendigos na rua, e quando necessário acionava a prefeitura, que os recolhia a uns albergues superlotados, quando não mandava a limpeza pública enxotá-los com jatos de água. Até que outro dia, como quem vê um fantasma, avistei a moça albina sentada no banco da praça, num vestido meio roto que eu conhecia no corpo da Cida:
Sacha.
Ela me olhou com seus olhos transparentes.
Lembra de mim?
Quase colou o rosto no meu, a fim de me enxergar.
Sou o amigo da Cida.
Não me reconheceu.
Cadê sua mãe?
Buscou debaixo do banco a caixa de sapatos da Cida e me mostrou ali dentro um punhado de cinzas:
Quando ela voltar para Labosta, vai ficar de novo inteira, igual ela era aqui.

Chico Buarque, in Anos de chumbo e outros contos

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