A
Cida morava na praça Antônio Callado, endereço bacana a poucos
passos do mar do Leblon. Na época em que eu caminhava no calçadão
da praia, me habituei a vê-la duas vezes por dia, na ida e na volta
para casa. Era uma mulher até bonita, apesar da pele rude e dos
dentes maltratados; tinha entre trinta e quarenta anos e usava roupas
de grife ao sol do meio-dia. Eram longos, tailleurs, pantalonas e até
uma estola de lebre que as moradoras dos prédios ricos lhe doavam
por caridade e por deboche. Também graças à vizinhança ela
aproveitava sobras de refeições e tinha um travesseiro para deitar
a cabeça no banco de cimento. Em noites de chuva dormia numa guarita
abandonada na calçada do canal do Leblon, bem em frente ao seu
jardim. E nas águas não muito limpas desse canal fazia suas
necessidades, se lavava e lavava suas roupas finas, conforme ouvi dos
porteiros dos prédios no entorno. Ao atravessar a praça, no começo
eu lhe deixava uma nota de dois reais, o preço de uma água de coco,
que ela guardava numa caixa de sapatos sem agradecer nem erguer os
olhos. Aumentei o agrado para três, quatro, cinco, mas só a partir
dos dez reais ela me deu confiança e me apresentou seu mundo: o pé
de feijão, as marias-sem-vergonha, a corrida de formigas. Chamava as
formigas pelo número, 106, 132, 443, que era o das linhas de ônibus
que paravam do outro lado do pontilhão. Citava o nome dos motoristas
e cobradores, os que eram bons, os que eram maus, depois me pedia
para lhe trazer de Ipanema um pão doce com creme de baunilha. Vira e
mexe perguntava se eu tinha chumbinho para matar pombos, e achando
que eu era advogado, queria que eu mandasse para a cadeia uma babá
que tinha roubado o seu dinheiro. Um dia desandou a falar da
infância, da sua família rica, dos pais que tinham uma fábrica de
sabão nos fundos de casa. Queriam que ela se casasse com um
português mais rico ainda, um velho coroca, por isso fugiu com um
famoso ator de televisão, e mais não me contava porque eu era da
polícia.
Por
um bom tempo a Cida encasquetou que eu era um agente secreto. Ao me
ver chegando ela fugia com a caixa de sapatos debaixo do braço para
se esconder atrás dos carros estacionados na praça. Depois passou a
me ignorar, largava minhas esmolas jogadas no chão. Foi o período
em que deu para se pintar; usava batom, blush, esmalte de unhas,
bobes de cabelo, e descolou um balde para escovar os dentes com água
do canal. Ao mesmo tempo foi corrigindo a postura acorcundada, a
cabeça baixa, o modo de olhar sem ver, e um dia me parou para dizer
que, apesar de ser político, eu tinha jeito de bom pai. Eu tinha
cara de quem amaria o seu futuro filho, o levaria para morar num
apartamento alto e lhe ensinaria bons modos. Expliquei que eu era
casado, não podia fazer filho nela, mas não era isso que ela
queria. Ela queria que eu criasse o filho que ela trazia na barriga,
e bem que eu já a tinha achado meio pançuda. Logo entendi que ela
não sabia quem era o pai da criança, e mais uma vez me enganei. O
pai da criança era o Ló, que por enquanto não tinha condições de
manter um filho no Rio de Janeiro, mesmo com todo o dinheiro que ela
lhe adiantava. O Ló não era daqui e achava uma tremenda
irresponsabilidade levar uma criança para morar com ele num lugar
tão longe. Sugeri que eles refizessem a vida juntos até no
Nordeste, se fosse o caso, mas a Cida falou que eu nunca entendia
nada. Apontou na direção do céu onde ficava o país do Ló, só
que não dava para ver de dia. Não acreditei que a Cida viesse com
conversa de extraterrestre, mas segundo ela o Ló vinha realmente de
outra constelação, de um tal planeta chamado Labosta. O Ló até
lhe ensinava palavras na língua de Labosta, para quando eles
finalmente pudessem se estabelecer por lá. Outro dia ele lhe trouxe
do planeta um anel de compromisso, para que ela não botasse chifre
nele durante suas ausências. As joias que ele lhe dava estavam
guardadas na sua caixa de sapatos, que depois de muita relutância e
mediante uma nota de cinquenta, ela me abriu. Eu nada disse, mas ela
ficou ofendida com a minha cara, que era a cara de quem vê um
punhado de areia e brita no fundo de uma caixa. Eu não tinha
capacidade para compreender que aquilo eram ouros, pratas, diamantes,
tesouros que se desintegravam com a entrada na atmosfera terrestre
mas que na subida voltariam ao estado brilhante. Sem ironia lhe
perguntei se o Ló também não virava pó com essas viagens
intergalácticas, e pela primeira vez a vi sorrir. Disse ela que,
como imperador de Labosta, além do sangue azul, o Ló tinha carne de
matéria especial e era todo empelicado por fora. Mas como também
tinha um coração humilde, quando baixava por aqui fazia uns bicos
como servente de obra e dividia com os peões um muquifo na favela.
Não
sei se a Cida queria botar chifre no Ló, mas na falta dele foi se
apegando a mim. Nem bem eu despontava na praça, ela saltava do banco
determinada a me acompanhar nas minhas andanças. Confesso que me
dava um pouco de vergonha, porque no calçadão eu sempre topava com
conhecidos, e por mais que acelerasse ela emparelhava comigo, com seu
vestido de baile, a barriga protuberante e a caixa de sapatos. Então
passei a percorrer as ruas interiores, com menos movimento, e de vez
em quando ela dava umas paradas para recuperar o fôlego, pedir um
pão doce ou olhar as modas nas vitrines. Com receio de que ela me
seguisse até em casa, na volta da caminhada eu me sentava a seu lado
no banco da praça, onde ela acabava por se recostar e dormir. Sua
barriga crescia mais e mais, mas só do lado esquerdo, e quando lhe
falei de consultar um médico ela me olhou com uma cara de raiva que
eu desconhecia. Era evidente que tinha horror a médicos, talvez
tivesse tomado eletrochoques, mas já devia estar no nono mês de
gravidez e eu não sabia que providência tomar.
— Cida,
precisamos tomar uma providência.
— Como
é que é?
— Onde
é que você vai dar à luz?
— Como
é que é?
— Onde
é que você vai parir seu filho?
— Na
vagina, né, idiota.
Certa
vez andávamos devagar à beira do canal, onde não passava ninguém
e já escurecia. No meio da caminhada ela parou e pegou a rir, porque
tinha feito xixi sem ter vontade. Levantou a saia para eu ver, mas o
líquido nas pernas dela não cheirava a xixi e era esverdeado.
Apressei-a para avançarmos mais algumas quadras, pois a nossa rua
desembocava quase em frente ao Hospital Miguel Couto. Ao ver o
hospital ela deu meia-volta, saiu correndo com aquele barrigão e fez
sinal para um ônibus 132, que a recolheu fora do ponto.
Corria
o boato de que ela havia parido num ônibus, mas os motoristas do
ponto não o confirmavam. Os porteiros, os vigias, as babás, durante
muito tempo ninguém mais teve notícias da Cida. E eu quase nem
pensava mais nela quando a reencontrei no banco da praça, dando de
mamar a uma menina de seus cinco anos, a pele leitosa, os cabelos
crespos e ruivos, meio descoloridos, e os olhos azuis claros demais.
A Cida me esperava com naturalidade, como se nos tivéssemos visto na
véspera, e me apresentou a Sacha, que não largava do seu peito. O
vestido de poá sobrava no corpo emagrecido da Cida, seu rosto
perdera o viço e o branco dos seus olhos estava de um
amarelo-hepatite. Tentei timidamente lhe falar de um amigo clínico
geral, mas ela me cortou na hora. Disse que seu leite estava secando,
por isso vinha me entregar a filha, como combinado. Ela estava
enganada, eu morava sozinho e não daria conta de uma criança. Além
do mais, a menina tinha pai e já era a hora de o Ló olhar por ela
numa de suas passagens por aqui. Ela defendia o Ló, que fazia
questão de dar à filha uma educação de princesa no seu planeta. O
problema era que a Sacha não queria morar em Labosta de jeito
nenhum, tinha medo de cair daquela altitude. Então a Cida só
esperava desmamar a filha para deixá-la aos meus cuidados e partir
ao encontro do Ló. Naquele dia eu estava sem paciência, precisava
caminhar para pensar nos meus assuntos, mas quando me despedi com um
beijo na sua testa, ela resolveu dizer aos berros que ia dar queixa
na polícia. Surgiram os porteiros, as babás, as cozinheiras dos
prédios, mais os motoristas e cobradores do ponto de ônibus, e ela
dizendo que eu abusava dela desde criança e agora não queria
assumir minha filha. Aí perdi a cabeça e falei o que não devia
falar, falei que ela era louca. Em seguida pensei que ela fosse me
bater na cara, mas não; baixou a cabeça, puxou a filha pela mão,
cruzou o pontilhão e embarcou num ônibus 443. Era uma linha
circular, e imaginei que a Cida daria voltas e mais voltas na cidade
até enjoar. Eu estava disposto a lhe pedir desculpas, quem sabe até
ajudá-la a encaminhar a filha para adoção, pois ouvi dizer que há
muita demanda para crianças brancas como a dela. Só que não revi a
Cida naquele dia, nem no dia seguinte, nem nunca mais.
Com
o passar dos anos, por motivos alheios a este relato, deixei de
frequentar a praia do Leblon, mas sempre que passava de carro pela
praça Antônio Callado, não podia evitar uma olhadela no jardim.
Era na verdade um cacoete, pois não havia possibilidade de a Cida
voltar a viver ali. A associação de moradores do bairro não queria
mais saber de mendigos na rua, e quando necessário acionava a
prefeitura, que os recolhia a uns albergues superlotados, quando não
mandava a limpeza pública enxotá-los com jatos de água. Até que
outro dia, como quem vê um fantasma, avistei a moça albina sentada
no banco da praça, num vestido meio roto que eu conhecia no corpo da
Cida:
— Sacha.
Ela
me olhou com seus olhos transparentes.
— Lembra
de mim?
Quase
colou o rosto no meu, a fim de me enxergar.
— Sou
o amigo da Cida.
Não
me reconheceu.
— Cadê
sua mãe?
Buscou
debaixo do banco a caixa de sapatos da Cida e me mostrou ali dentro
um punhado de cinzas:
— Quando
ela voltar para Labosta, vai ficar de novo inteira, igual ela era
aqui.
Chico Buarque, in Anos de chumbo e outros contos
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