segunda-feira, 26 de setembro de 2022

Capítulo 3 | A vida não é um ensaio

O minimercado estava vazio, os últimos atentados a pessoas que compravam SL (Sem Logo): alimentação fabricada pelo governo vigente, tinha feito os consumidores sumirem. Nem as recentes campanhas do governo conseguiram influenciar a população.
Pegou o item da prateleira e, antes de chegar no caixa, parou outra vez para ver alguns livros, muita coisa realmente tinha acabado, mas eles continuavam ali, firmes e fortes, foi escolhido por um, pagou com seu cartão regimental e foi para casa tentando ler enquanto andava: “Simples de usar e pronto em minutos”. Entretenimento de massas, o velho ciclo dos tabloides ingleses cheios de ilustrações feitas com xilografia que tratava de fofocas da época para um público analfabeto.
Em casa, antes de começar a preparar o líquido negro, pegou o manual de instruções.
Coloque a água no recipiente, aconselhamos não ultrapassar a válvula de segurança.” Hoje as poucas revistas que sobraram têm fotos gigantes, ninguém quer ler, as pessoas querem é passar, virar página. “Colocar o pó de café no funil e pressionar levemente, não recomendamos usos de outras substâncias que podem obstruir o orifício do filtro.” E depois de tempos surgiram os terríveis de um centavo, com seu baixo custo de qualidade editorial, em 1830. “Limpe em círculo o anel de borracha e lados de funil, pois qualquer partícula de café pode privar de fechar hermeticamente e deixar escapar o vapor.” Tinham oito páginas e eram vendidos pra um público operário. “Mantenha a cafeteira em posição vertical e gire ao contrário as duas partes, isto evitará de umedecer o café. A gravura mostra a melhor posição da mão.” A origem de Doc Savage foi popular na década de 1930 e ressurgiu na década de 1960 com uma série de reimpressões. “Leve a cafeteira ao fogo. Assim que você conferir que o líquido subiu totalmente para a parte superior, estará pronto seu delicioso café.” Enquanto o ocultismo se infiltrava pela cultura popular, o progresso na tecnologia de impressão criava novos tipos de entretenimento de massas. “Deve limpar a parte superior e o tubo para o qual o café sobe. Simples de usar e pronto em minutos.”
Calixto desligou o livro, fechou a cafeteira, jogou o manual de instruções fora e saiu para a rua. Foi confirmar se ainda existia o sol.
As coisas se mexiam, balançavam interminavelmente, foi quando percebeu seu cadarço desamarrado, ia se abaixar, mas as coisas a sua volta não paravam de balançar. Tudo se movimentava, o leve inclinar do queixo já lhe dava outra visão, o ato de andar era pela primeira vez percebido dessa forma, tudo ganhava outro ritmo.
Começou a reparar nos sacos de lixos em cada esquina, próximos aos postes. Postes que eram as árvores modernas rodeados por sacos de lixos, que podiam tomar o lugar das flores na nova paisagem, flores estas levemente beijadas por pássaros não orgânicos, feitos de folhas de jornais, que já serviram para vender apartamentos, escapamentos, mesas, fogões, verdades e candidaturas.
O homem criou a cidade, modelou seus jardins, fez da sua forma o tudo de novo, e também foi criado de outra forma por essa cidade.
Datas, dias, minutos e segundos, atrasos, interesses, ganhos e perdas, a vida era assim agora. Ele sorriu levemente, o homem é o único ser capaz de fazer uma armadilha para si mesmo.
Carros, apartamentos, pequenos bares, shoppings, tudo congestionado, tudo limitado, emparedado, fechado. A sensação de sair dessas coisas era indescritível, se tivesse uma pena por assalto ou homicídio, tanto fazia. Prisão ou shopping center? Não precisava olhar tudo para saber o que existia realmente, mas por mais que olhasse não saberia dizer o que era a verdade.
No olho a olho, os curiosos não passariam de três centímetros da primeira camada. O resto está protegido, muito bem guardado, controlado como sempre deveria ter sido.
O sorriso acabou, os lábios secos desabaram quando a mandíbula deixou a gravidade exercer sua força. Não era alegre, era triste, tudo muito triste, parecido com a fortaleza da solidão, onde até o homem mais forte do mundo procurava abrigo.
Quanto tempo tinha sido prisioneiro já não sabia mais, pagar apartamento, condomínio, IPVA, seguro, mensalidade da escola, ração do cachorro, trinta e cinco segundos para entrar na garagem do prédio, dois minutos para chegar o elevador, um mês de férias, de cinco a sete dias para o ciclo menstrual de Carol, janeiro é época de comprar material, julho é férias, dezembro, Natal, compromissos, compras, comprar compromissos.
Calixto decidiu entrar no ônibus, ia para o frio como se vai para um templo de almas perdidas.
As coisas se mexiam, ele sabia que ultimamente em sua vida estava tudo parado, mas quando andava as coisas se mexiam. As ruas inclinavam, os carros tremiam e as pessoas balançavam.
Sempre pensou no álcool e sempre conseguiu entender o jeito que se dá na realidade, tanto faz o tipo de escape, de bebidas ao famoso tarja preta, a solução era só uma, quem sair por último apague o sol.
Pensou em puxar a corda, talvez uma corda imaginária do lado esquerdo do seu corpo, na altura de sua cabeça.
Talvez até um pouco mais alta, assim subindo uns dez centímetros, para que seu braço alcançasse, uma corda que disparasse um sinal, o motorista diria: “alguém vai descer?” E ele responderia que sim.
Talvez estivesse cansado dessa vida, talvez descesse: era isso.
Ele responderia: “Motorista, pare a vida que eu quero descer do mundo!”.
Não percebeu quem entrou no ônibus, via as outras pessoas como vultos. Nunca as olhava diretamente, talvez isso fosse um erro numa cidade grande, já que aquele vulto chegou à sua frente e anunciou o assalto.
Nunca passei por isso antes.
Olhava agora para a ponta do revólver.
Os passageiros se sacudiam mesmo com o ônibus parado, o homem mirava ora em um, ora em outro, para tentar manter o controle.
O cobrador já estava abrindo a caixa de dinheiro e pegando as notas menores para tentar enganar o ladrão, que olhava agora para todos os passageiros, tentando achar algum com o corte reco ou de camisa social solta na parte da cintura. Esses eram os sinais de um policial à paisana.
Não achou, sorte dos passageiros. O cobrador agora passava o dinheiro para o ladrão, que demonstrava tranquilidade até que Calixto se levantou, a arma foi mirada para sua cabeça e ele levantou as mãos.
Não atire, por favor!
Então senta logo, tiozinho, que porra, gritou o assaltante.
Mas eu quero te pedir uma coisa e... Antes de terminar a frase o assaltante chegou mais a frente e gritou cuspindo.
Ninguém vai descer dessa porra!
Todos os passageiros tinham vontade de sair correndo e, com aquela ação de Calixto, ficaram mais agitados ainda, mas, vendo que ele não sentava, o assaltante perguntou o que ele queria.
Calixto deu um passo para frente e abaixou as mãos vagarosamente.
Eu queria que você me desse um tiro.
O assaltante não entendeu. Ninguém entendeu. Nem o rapaz sentado ao lado de Calixto, que estava muito mais próximo, entendeu.
A verdade era que todos escutaram, mas não quiseram acreditar.
Você quer o quê?
Poxa! Eu sei que é meio embaraçoso, mas eu queria que você me desse um tiro, pode ser só um, aqui bem no peito.
Calixto levantou a mão esquerda na altura do peito e apontou para onde achava estar seu coração.
Você é maluco, caralho? Senta logo aí nessa porra, seu engraçadinho.
Não!
Calixto tenta argumentar, com as mãos agora para frente.
O senhor não entendeu, eu tenho cinquenta dinheiros na carteira, eu pago pela bala.
O assaltante voltou a olhar para todo mundo, no rosto de cada passageiro a mesma expressão de curiosidade, aonde será que aquele velho queria chegar com isso? Talvez ganhar tempo? Foi quando o assaltante olhou para o cobrador, e este balançou os ombros querendo dizer: eu num conheço esse maluco nem imagino o que ele quer com isso, e o assaltante já com o dinheiro das passagens no bolso falou que ia descer e que todos ficassem calmos.
Calixto lhe dirigiu a palavra mais uma vez e insistiu.
Mas senhor, com todo respeito, me dá um tiro, pode ser só um, é minha chance, nada é por acaso, o senhor tem que me balear, um tiro poderia resolver tudo.
O assaltante, antes de descer, olhou com piedade para Calixto e falou:
Tenho meus problemas, velho. Resolve o seu.
O ônibus ficou parado por mais cinco minutos depois que o assaltante desceu, e ninguém quando saiu falou com Calixto, que permaneceu sentado com cara de quem perdeu algo valioso, algo que nunca poderá recuperar novamente.
Eu perdi algo nesse dia, não sei bem o que, mas sinto isso muito forte, vou caminhando agora para casa, minha fuga, meu espaço.
Logo que viro a esquina a passos lentos, vejo ela dando ração para uma cadela, ela chama o animal com carinho, Samira, Samira.

Ferréz, in Deus foi almoçar

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