O
minimercado estava vazio, os últimos atentados a pessoas que
compravam SL (Sem Logo): alimentação fabricada pelo governo
vigente, tinha feito os consumidores sumirem. Nem as recentes
campanhas do governo conseguiram influenciar a população.
Pegou
o item da prateleira e, antes de chegar no caixa, parou outra vez
para ver alguns livros, muita coisa realmente tinha acabado, mas eles
continuavam ali, firmes e fortes, foi escolhido por um, pagou com seu
cartão regimental e foi para casa tentando ler enquanto andava:
“Simples de usar e pronto em minutos”. Entretenimento de massas,
o velho ciclo dos tabloides ingleses cheios de ilustrações feitas
com xilografia que tratava de fofocas da época para um público
analfabeto.
Em
casa, antes de começar a preparar o líquido negro, pegou o manual
de instruções.
“Coloque
a água no recipiente, aconselhamos não ultrapassar a válvula de
segurança.” Hoje as poucas revistas que sobraram têm fotos
gigantes, ninguém quer ler, as pessoas querem é passar, virar
página. “Colocar o pó de café no funil e pressionar levemente,
não recomendamos usos de outras substâncias que podem obstruir o
orifício do filtro.” E depois de tempos surgiram os terríveis de
um centavo, com seu baixo custo de qualidade editorial, em 1830.
“Limpe em círculo o anel de borracha e lados de funil, pois
qualquer partícula de café pode privar de fechar hermeticamente e
deixar escapar o vapor.” Tinham oito páginas e eram vendidos pra
um público operário. “Mantenha a cafeteira em posição vertical
e gire ao contrário as duas partes, isto evitará de umedecer o
café. A gravura mostra a melhor posição da mão.” A origem de
Doc Savage foi popular na década de 1930 e ressurgiu na década de
1960 com uma série de reimpressões. “Leve a cafeteira ao fogo.
Assim que você conferir que o líquido subiu totalmente para a parte
superior, estará pronto seu delicioso café.” Enquanto o ocultismo
se infiltrava pela cultura popular, o progresso na tecnologia de
impressão criava novos tipos de entretenimento de massas. “Deve
limpar a parte superior e o tubo para o qual o café sobe. Simples de
usar e pronto em minutos.”
Calixto
desligou o livro, fechou a cafeteira, jogou o manual de instruções
fora e saiu para a rua. Foi confirmar se ainda existia o sol.
As
coisas se mexiam, balançavam interminavelmente, foi quando percebeu
seu cadarço desamarrado, ia se abaixar, mas as coisas a sua volta
não paravam de balançar. Tudo se movimentava, o leve inclinar do
queixo já lhe dava outra visão, o ato de andar era pela primeira
vez percebido dessa forma, tudo ganhava outro ritmo.
Começou
a reparar nos sacos de lixos em cada esquina, próximos aos postes.
Postes que eram as árvores modernas rodeados por sacos de lixos, que
podiam tomar o lugar das flores na nova paisagem, flores estas
levemente beijadas por pássaros não orgânicos, feitos de folhas de
jornais, que já serviram para vender apartamentos, escapamentos,
mesas, fogões, verdades e candidaturas.
O
homem criou a cidade, modelou seus jardins, fez da sua forma o tudo
de novo, e também foi criado de outra forma por essa cidade.
Datas,
dias, minutos e segundos, atrasos, interesses, ganhos e perdas, a
vida era assim agora. Ele sorriu levemente, o homem é o único ser
capaz de fazer uma armadilha para si mesmo.
Carros,
apartamentos, pequenos bares, shoppings, tudo congestionado, tudo
limitado, emparedado, fechado. A sensação de sair dessas coisas era
indescritível, se tivesse uma pena por assalto ou homicídio, tanto
fazia. Prisão ou shopping center? Não precisava olhar tudo para
saber o que existia realmente, mas por mais que olhasse não saberia
dizer o que era a verdade.
No
olho a olho, os curiosos não passariam de três centímetros da
primeira camada. O resto está protegido, muito bem guardado,
controlado como sempre deveria ter sido.
O
sorriso acabou, os lábios secos desabaram quando a mandíbula deixou
a gravidade exercer sua força. Não era alegre, era triste, tudo
muito triste, parecido com a fortaleza da solidão, onde até o homem
mais forte do mundo procurava abrigo.
Quanto
tempo tinha sido prisioneiro já não sabia mais, pagar apartamento,
condomínio, IPVA, seguro, mensalidade da escola, ração do
cachorro, trinta e cinco segundos para entrar na garagem do prédio,
dois minutos para chegar o elevador, um mês de férias, de cinco a
sete dias para o ciclo menstrual de Carol, janeiro é época de
comprar material, julho é férias, dezembro, Natal, compromissos,
compras, comprar compromissos.
Calixto
decidiu entrar no ônibus, ia para o frio como se vai para um templo
de almas perdidas.
As
coisas se mexiam, ele sabia que ultimamente em sua vida estava tudo
parado, mas quando andava as coisas se mexiam. As ruas inclinavam, os
carros tremiam e as pessoas balançavam.
Sempre
pensou no álcool e sempre conseguiu entender o jeito que se dá na
realidade, tanto faz o tipo de escape, de bebidas ao famoso tarja
preta, a solução era só uma, quem sair por último apague o sol.
Pensou
em puxar a corda, talvez uma corda imaginária do lado esquerdo do
seu corpo, na altura de sua cabeça.
Talvez
até um pouco mais alta, assim subindo uns dez centímetros, para que
seu braço alcançasse, uma corda que disparasse um sinal, o
motorista diria: “alguém vai descer?” E ele responderia que sim.
Talvez
estivesse cansado dessa vida, talvez descesse: era isso.
Ele
responderia: “Motorista, pare a vida que eu quero descer do
mundo!”.
Não
percebeu quem entrou no ônibus, via as outras pessoas como vultos.
Nunca as olhava diretamente, talvez isso fosse um erro numa cidade
grande, já que aquele vulto chegou à sua frente e anunciou o
assalto.
Nunca
passei por isso antes.
Olhava
agora para a ponta do revólver.
Os
passageiros se sacudiam mesmo com o ônibus parado, o homem mirava
ora em um, ora em outro, para tentar manter o controle.
O
cobrador já estava abrindo a caixa de dinheiro e pegando as notas
menores para tentar enganar o ladrão, que olhava agora para todos os
passageiros, tentando achar algum com o corte reco ou de camisa
social solta na parte da cintura. Esses eram os sinais de um policial
à paisana.
Não
achou, sorte dos passageiros. O cobrador agora passava o dinheiro
para o ladrão, que demonstrava tranquilidade até que Calixto se
levantou, a arma foi mirada para sua cabeça e ele levantou as mãos.
Não
atire, por favor!
Então
senta logo, tiozinho, que porra, gritou o assaltante.
Mas
eu quero te pedir uma coisa e... Antes de terminar a frase o
assaltante chegou mais a frente e gritou cuspindo.
Ninguém
vai descer dessa porra!
Todos
os passageiros tinham vontade de sair correndo e, com aquela ação
de Calixto, ficaram mais agitados ainda, mas, vendo que ele não
sentava, o assaltante perguntou o que ele queria.
Calixto
deu um passo para frente e abaixou as mãos vagarosamente.
Eu
queria que você me desse um tiro.
O
assaltante não entendeu. Ninguém entendeu. Nem o rapaz sentado ao
lado de Calixto, que estava muito mais próximo, entendeu.
A
verdade era que todos escutaram, mas não quiseram acreditar.
Você
quer o quê?
Poxa!
Eu sei que é meio embaraçoso, mas eu queria que você me desse um
tiro, pode ser só um, aqui bem no peito.
Calixto
levantou a mão esquerda na altura do peito e apontou para onde
achava estar seu coração.
Você
é maluco, caralho? Senta logo aí nessa porra, seu engraçadinho.
Não!
Calixto
tenta argumentar, com as mãos agora para frente.
O
senhor não entendeu, eu tenho cinquenta dinheiros na carteira, eu
pago pela bala.
O
assaltante voltou a olhar para todo mundo, no rosto de cada
passageiro a mesma expressão de curiosidade, aonde será que aquele
velho queria chegar com isso? Talvez ganhar tempo? Foi quando o
assaltante olhou para o cobrador, e este balançou os ombros querendo
dizer: eu num conheço esse maluco nem imagino o que ele quer com
isso, e o assaltante já com o dinheiro das passagens no bolso falou
que ia descer e que todos ficassem calmos.
Calixto
lhe dirigiu a palavra mais uma vez e insistiu.
Mas
senhor, com todo respeito, me dá um tiro, pode ser só um, é minha
chance, nada é por acaso, o senhor tem que me balear, um tiro
poderia resolver tudo.
O
assaltante, antes de descer, olhou com piedade para Calixto e falou:
Tenho
meus problemas, velho. Resolve o seu.
O
ônibus ficou parado por mais cinco minutos depois que o assaltante
desceu, e ninguém quando saiu falou com Calixto, que permaneceu
sentado com cara de quem perdeu algo valioso, algo que nunca poderá
recuperar novamente.
Eu
perdi algo nesse dia, não sei bem o que, mas sinto isso muito forte,
vou caminhando agora para casa, minha fuga, meu espaço.
Logo
que viro a esquina a passos lentos, vejo ela dando ração para uma
cadela, ela chama o animal com carinho, Samira, Samira.
Ferréz, in Deus foi almoçar
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