É
dia, alguém leva outra pessoa para juntos não chegarem.
Alguém
leva toda a culpa para outro inocentar.
Alguém
descobre que tudo que tem é nada.
É
dia, alguém atravessa uma linha tênue.
Estou
sozinho agora, em algum lugar minha pequena dorme, e finalmente estou
sozinho agora.
Meu
nome não é o mesmo, e nem foi antes, mas eu tenho alguns motivos
para não querer ser chamado.
Cruza
a sala, ao banheiro ele chega.
Mais
atenção às coisas que geralmente já viraram rotina.
Barbear.
Em
algum lugar uma letra de amor é escrita, e uma poesia é rasgada.
Em
alguma casa, um pequeno espelho reflete um nariz que podia ser
mudado.
A
descarga foi dada; a porta, fechada; o zíper, puxado; o chinelo,
recolocado; o botão, abotoado; a descarga, terminada; o ralo,
lotado; o rosto, parado; o calor, acumulado no assoalho; a vida,
passada; o futuro, usado.
Saiu.
A
estrada, o caminho, as luzes, tudo à sua volta era algo pintado, uma
cidade cenográfica.
Quando
saio para caminhar, sempre nos primeiros minutos recrio tudo à minha
volta, e não sou eu mais o que já fui, e não sou eu mais o que
todos querem que seja. Em alguns minutos, nos primeiros passos, eu
sou simplesmente alguém andando, usufruindo do grande nada.
Como
nada daquilo parecia real, era prisioneiro de um pretenso e não
conseguido conforto.
Lembrou-se
da época de férias, tentava sentir a liberdade. Na praia em um ano,
no sítio em outro, longe da casa, do conforto que seu pai passou a
vida toda construindo.
Agora
era só um corpo indo comprar SL em algum dos 1.127 minimercados do
governo espalhados pela cidade, depois voltaria cheio de caixas e
comeria, comeria rápido para ir ao trabalho, arquivar, arquivar
documentos que não podiam ficar ao tempo, tentava potencializar seu
trabalho, achar alguma importância para que fizesse sentido ir lá
todos os dias, na maioria das vezes não encontrava nenhum motivo,
mas mesmo assim ele ia.
O
ônibus demoraria uma eternidade para passar, não se arrependeu de
ter ido a pé, mas ter que pegar ônibus para voltar o angustiava,
queria mudar a rotina, sempre o mesmo farol, o mesmo posto de
gasolina, ao menos no ônibus daria para ir lendo, claro que ele
pensou que iria sentado, pensou errado.
Chegou
no serviço com dez minutos de atraso, na porta do arquivo a
secretária da central esperava para recolher alguns documentos,
disse um leve bom-dia e abriu a porta, ela entrou e viu os documentos
na mesa, perguntou se podia levar.
Calixto
balançou a cabeça afirmativamente depois resolveu explicar.
Esperou
muito? Acabei me atrasando um pouco.
Não,
senhor, acabei de chegar, por falar em atraso, já lhe falaram,
Senhor Calixto, que o Feng Shui ajuda na vida da pessoa?
Hã?
Que,
por exemplo, ioga dá mais vivacidade?
Não.
O
senhor é muito reservado, não que isso seja um defeito, mas, por
exemplo, no seu caso, até uma religião como a Assembleia de Deus
seria bom, tira dor, a solidão e até a amargura da pessoa.
Calixto
olhou para ela, um olhar gelado, não entendia o que estava
acontecendo, quem ela pensava que era, não sabia nada dele, nunca
tinham trocado nem sequer três palavras durante esses anos todos,
aquela era a conversa mais longa que já tinha tido com alguém em
toda a empresa, continuou olhando e disse um obrigado forçado. Ela
então disse de quais documentos precisava e o nome do segurança, o
caso era insólito, segurança do hospital Pinel, João Luar Saxies
ficava todo o tempo de serviço olhando os internos, quando num dia
perdeu a razão, os amigos diziam que de tanto vigiar louco acabou se
tornando um deles.
Calixto
foi até a terceira prateleira, começou a procurar e a localizar os
papéis, pegou um envelope e entregou para ela.
Ela
tentou voltar ao assunto da religião, Calixto virou as costas e foi
para a outra sala, quando voltou ela não estava mais lá.
Sentou
junto à máquina de escrever, a mesa toda cheia de papéis, notas
fiscais que deveriam ter sido preenchidas, ele pensa naquela estranha
conversa, religião, de repente ele poderia ir a algum culto ou reza,
pra ver se melhorava mesmo seu astral, na cidade do Valdomiro, ou
numa das fazendas dos dissidentes, mas se eles tiram amargura, dor,
solidão, o que restaria dentro dele?
Prepara-se
para o relatório, põe três folhas de papel na máquina, ajeita
entre elas duas folhas de papel-carbono.
Bate
quinze teclas seguidas e na décima sexta erra, assusta-se, levanta,
vai ao arquivo, tira algumas pastas, consulta o termo do antigo
relatório, a mesma palavra que ele usava de seis em seis meses, mas
que nunca lembrava, senta e começa a datilografar novamente.
Abre
a gaveta, pega o líquido que faz ele ter nova chance, muda de ideia,
abre a gaveta, de dentro retira uma borracha dura. Já pela metade,
apaga o pequeno erro, repete nas duas cópias, dá uma soprada para
afastar os inoportunos farelos da borracha.
Bate
mais vinte e seis teclas, erra no acento, volta para a gaveta, faz a
mesma merda novamente, retira a borracha, volta a borracha, assopra,
morre aos poucos.
Anda
pelos corredores e verifica as janelas, todas fechadas, tranca a
casa, sai.
Resolveu
descer dois pontos antes e continuar andando, para num pequeno bar e
compra uma lata de cerveja, quando foi abrir, o anel da lata deu um
pequeno beliscão em seu dedo. Bebia a cerveja, andava e dava uma
chupada na ponta do dedo que estava ardendo.
A
casa se aproximou, bateu a mão no bolso e enfiou, pegou na colher,
deixou-a lá e foi para o outro bolso, retirou a chave, entrou e,
tirando os sapatos, colocou a lata no braço do sofá.
Notou
o canto da estante nesse dia, tentou se apegar a alguma coisa para
não olhar novamente para o que podia ser o portal que sempre o
atraía, mas ele não teria coragem de olhar, não naquele dia.
Começou
a perceber os discos, olhar calmamente para as fitas de vídeo, via o
excesso de coisas, tomou a decisão de não adquirir mais nada.
Sentimentos
que se transformavam em produtos, tempos passados que refletiam
alguma desculpa de lembrança.
Sabia
que o entulho dentro da sua cabeça já o afetara muito durante a
madrugada passada, não precisava começar a revirar tudo novamente.
Passaram-se
alguns segundos, tudo voltou ao normal, pegou a foto na estante,
limpou a poeira, estava da mesma forma, os poucos cabelos raspados,
os óculos, o ralo cavanhaque sempre torto, a camiseta azul já
desbotada, olhou para si, levantou o braço esquerdo e tocou no
queixo, o mesmo cavanhaque, passou a mão pela cabeça, o mesmo
corte, há quanto tempo ele era ele mesmo já não sabia.
Pensou
em sair, mas já andara demais, estava na hora de ficar em casa, só
assim não seria um transeunte passando rapidamente, esbarrando,
incomodando, não seria a maquiagem da mulher vaidosa, o menino
apontando e rindo de algo que ainda não entendia.
Prometeu
não sair tão desprotegido, afinal eles acham sempre que sabem algo,
mas a profundidade do que mostra só ele controla.
Não
que isso funcione, afinal com a idade tinha certeza de que já tinha
várias personalidades.
Quando
passo em frente a uma casa de relaxamento, sou puto, quando ando em
frente a uma igreja sou santo, faço o sinal da cruz, quando visito
minha mãe deito no sofá, sou criança esperando o café com leite e
o pão com manteiga esquentado de uma forma que só ela sabe fazer,
quando vou na casa de algum amigo, se for do tempo da escola, até os
apelidos da época são usados, se for à casa de vizinhos, as
brincadeiras do bairro.
Não
é por consideração que visitamos alguém, é por querer sentir
algo que valha a pena.
Se
a felicidade é um ponto de vista, Calixto estava cego.
Ferréz, in Deus foi almoçar
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