terça-feira, 20 de setembro de 2022

A mobília

Em certo Estado do Brasil, entenderam espíritos adiantados que a sede do governo não devia continuar onde estava: a capital era pequena, inconfortável, de acesso penoso, impossível sua expansão. Logo se construiu uma ampla cidade de peregrino horizonte, para onde se transportaram os servidores públicos da antiga e mais os pertences de cada um, reinstalados em casinhas que cheiravam a tinta fresca e a ideia de progresso.
No palácio do governo, entretanto, era tudo novinho, a começar pela mobília de quarto do primeiro titular, feita adrede. Estava-se ainda na era vitoriana, e pareceu de bom gosto e conveniência política imprimir aos trastes certa majestade burguesa, que lembrasse a força calma e probidosa do Império Britânico. E assim se talharam em cedro e cerejeira sete peças sem estilo definido mas que, na sua rigidez, era como se o tivessem: a cama de casal com dossel de três metros de altura, dois criados-mudos, penteadeira, lavatório, guarda-vestidos e guarda-casacas. Para que não ficasse ausente uma leve nota de poesia, dois pombinhos de madeira turturinavam (vide Coelho Neto, autor então em voga) à cabeceira da cama, sem quebra da maciça austeridade de suas linhas.
Rolaram os tempos, e a muita insônia cívica devem ter assistido os pesados móveis daquele severo quarto daquela severa província. Se os objetos se humanizam ao nosso contato, esses teriam adquirido certa experiência e sentimento da vida. Na cama nasceram meninos, que nascer era atividade doméstica, presidida no máximo por uma parteira benévola ou um “doutor” policlínico. E nem a morte lhe foi estranha, pois mais de uma vez corpos se imobilizaram nela para sempre, cercando-a mesmo de certa aura fúnebre. A cidade cresceu, em torno do palácio, e um dia, ao anúncio da visita do rei, um rei autêntico, verificou-se que a mobília fabricada sob o signo da rainha Vitória não servia para hospedar a realeza. O presidente de então substituiu-a por algo à altura das circunstâncias, e doou suas peças a um orfanato.
O orfanato — já adivinham — precisava de camas para crianças, não para adultos. Promoveu uma rifa e desfez-se dos móveis, que tocaram a um verdureiro. Este, solteiro e simples, não necessitava deles, e vendeu-os a um atacadista. O atacadista julgou sentir em seus negócios a influência infausta dos objetos, e passou-os a uma senhora que bem carecia de tal aparelhagem, pois sua indústria, um tanto quanto hoteleira, exigia grande número de cômodos equipados justamente com peças de casal.
Muitos anos se passaram de novo, e o que no intervalo sucedeu à mobília oficial não merece ser contado em pormenor. Ela completou o aprendizado da vida, eis tudo. E o suprarrealismo é muito mais cotidiano do que se imagina. Afinal, a indústria cerrou as portas, de muito rica, e sua diretora se recolheu à penumbra, com exemplar modéstia. Levou consigo aqueles salvados do governo e dos costumes da época. Ainda os guarda zelosamente, mas quer vê-los recolhidos a um museu, como coisas de sentido artístico e histórico. Propôs ao poder público que os comprasse uma segunda vez — para ficar.
Especialistas foram ouvidos e atribuíram aos trastes valor intrínseco medíocre. Quanto ao valor histórico, sendo subjetiva sua estimação no entender de um perito, esse o arbitrou em dez por cento sobre o valor venal. Preço da mobília, segundo o jornal de que se extraem estes dados: sessenta e um mil e seiscentos cruzeiros.
O repórter que foi comunicar esta avaliação à veneranda senhora encontrou-a lendo Unamuno, o que atesta pelo menos seu alto nível literário. “O quê?! Uma miséria dessas por uma coisa de tanta significação? — exclamou ela. — Prefiro queimar a mobília… Não, não queimo porque sei dar valor ao que é histórico.”
São históricos os móveis tão… vividos, deixaram de sê-lo em certa fase, voltaram a sê-lo com a aposentadoria, ou o são agora duplamente? Problema a ser debatido em mesa-redonda, de que participem um Toynbee e um marceneiro.

Carlos Drummond de Andrade, in Fala, Amendoeira

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