Em
certo Estado do Brasil, entenderam espíritos adiantados que a sede
do governo não devia continuar onde estava: a capital era pequena,
inconfortável, de acesso penoso, impossível sua expansão. Logo se
construiu uma ampla cidade de peregrino horizonte, para onde se
transportaram os servidores públicos da antiga e mais os pertences
de cada um, reinstalados em casinhas que cheiravam a tinta fresca e a
ideia de progresso.
No
palácio do governo, entretanto, era tudo novinho, a começar pela
mobília de quarto do primeiro titular, feita adrede. Estava-se ainda
na era vitoriana, e pareceu de bom gosto e conveniência política
imprimir aos trastes certa majestade burguesa, que lembrasse a força
calma e probidosa do Império Britânico. E assim se talharam em
cedro e cerejeira sete peças sem estilo definido mas que, na sua
rigidez, era como se o tivessem: a cama de casal com dossel de três
metros de altura, dois criados-mudos, penteadeira, lavatório,
guarda-vestidos e guarda-casacas. Para que não ficasse ausente uma
leve nota de poesia, dois pombinhos de madeira turturinavam (vide
Coelho Neto, autor então em voga) à cabeceira da cama, sem quebra
da maciça austeridade de suas linhas.
Rolaram
os tempos, e a muita insônia cívica devem ter assistido os pesados
móveis daquele severo quarto daquela severa província. Se os
objetos se humanizam ao nosso contato, esses teriam adquirido certa
experiência e sentimento da vida. Na cama nasceram meninos, que
nascer era atividade doméstica, presidida no máximo por uma
parteira benévola ou um “doutor” policlínico. E nem a morte lhe
foi estranha, pois mais de uma vez corpos se imobilizaram nela para
sempre, cercando-a mesmo de certa aura fúnebre. A cidade cresceu, em
torno do palácio, e um dia, ao anúncio da visita do rei, um rei
autêntico, verificou-se que a mobília fabricada sob o signo da
rainha Vitória não servia para hospedar a realeza. O presidente de
então substituiu-a por algo à altura das circunstâncias, e doou
suas peças a um orfanato.
O
orfanato — já adivinham — precisava de camas para crianças, não
para adultos. Promoveu uma rifa e desfez-se dos móveis, que tocaram
a um verdureiro. Este, solteiro e simples, não necessitava deles, e
vendeu-os a um atacadista. O atacadista julgou sentir em seus
negócios a influência infausta dos objetos, e passou-os a uma
senhora que bem carecia de tal aparelhagem, pois sua indústria, um
tanto quanto hoteleira, exigia grande número de cômodos equipados
justamente com peças de casal.
Muitos
anos se passaram de novo, e o que no intervalo sucedeu à mobília
oficial não merece ser contado em pormenor. Ela completou o
aprendizado da vida, eis tudo. E o suprarrealismo é muito mais
cotidiano do que se imagina. Afinal, a indústria cerrou as portas,
de muito rica, e sua diretora se recolheu à penumbra, com exemplar
modéstia. Levou consigo aqueles salvados do governo e dos costumes
da época. Ainda os guarda zelosamente, mas quer vê-los recolhidos a
um museu, como coisas de sentido artístico e histórico. Propôs ao
poder público que os comprasse uma segunda vez — para ficar.
Especialistas
foram ouvidos e atribuíram aos trastes valor intrínseco medíocre.
Quanto ao valor histórico, sendo subjetiva sua estimação no
entender de um perito, esse o arbitrou em dez por cento sobre o valor
venal. Preço da mobília, segundo o jornal de que se extraem estes
dados: sessenta e um mil e seiscentos cruzeiros.
O
repórter que foi comunicar esta avaliação à veneranda senhora
encontrou-a lendo Unamuno, o que atesta pelo menos seu alto nível
literário. “O quê?! Uma miséria dessas por uma coisa de tanta
significação? — exclamou ela. — Prefiro queimar a mobília…
Não, não queimo porque sei dar valor ao que é histórico.”
São
históricos os móveis tão… vividos, deixaram de sê-lo em certa
fase, voltaram a sê-lo com a aposentadoria, ou o são agora
duplamente? Problema a ser debatido em mesa-redonda, de que
participem um Toynbee e um marceneiro.
Carlos Drummond de Andrade, in Fala, Amendoeira
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