domingo, 22 de agosto de 2021

Torto Arado | 13

Menos de uma semana depois, um dos filhos de Maria foi me encontrar enquanto limpava a roça. Disse que o pai estava louco, batendo de novo na mãe. Fiz sinal para que o menino esperasse. Passei em casa para pegar o que precisava. Aproveitei e coloquei aipim e banana na sacola, pedi ajuda para carregar o peso. Não tirei a calça que vestia, suja de terra, nem a camisa de manga comprida que quase havia esquecido ter sido de Tobias. Cheguei à casa de Maria Cabocla como quem não queria nada, e a certa distância pude ouvir o choro ecoando pela trilha em que caminhava a passos rápidos. Bati na porta que já se encontrava aberta, mas avisando que alguém iria entrar. Aparecido parou para me observar, estava confiante na covardia dos homens que ouviam o desespero daquela mulher e nada faziam. Entrei como se a casa fosse minha, apoiei os alimentos na mesa da cozinha, reuni as crianças desesperadas. Limpei seus rostos com um pedaço de tecido que estava num canto do fogão.
O homem gritou para que fosse embora, que cuidasse da minha vida. Não olhei em nenhum momento para Maria, que estava no quarto aos soluços. Se ela tivesse visto minha cabeça veria que ainda preservava as tranças que havia feito uma semana antes, e nos meus olhos tudo que advinha daquele gesto íntimo. Permaneci em pé, desafiando para que viesse ele próprio me arrancar para fora, porque não sairia com minhas próprias pernas. Ouvi de sua boca que respeitava muito meu pai, que era seu compadre, mas que não iria admitir desacato em sua própria casa. Maria levantou de onde estava, veio para cima dele, mas foi lançada em seguida ao chão por um tapa desferido com as costas da mão desproporcional do homem. Eram mãos engrossadas pelo trabalho, pela vida nada fácil. Meus olhos cresceram ferozes ao ver Maria no chão, que parecia não se acovardar àquela hora, dizendo que eu iria ficar. Quando ele veio para cima para tentar me retirar dali à força, meu coração estava aos pulos, sentia meu interior frio como a brisa da madrugada, mas permaneci firme como meus antepassados. Não foi o suficiente para evitar que Aparecido apertasse meu punho e tentasse me arrastar para fora. Encostei a lâmina que escondia atrás de mim em seu queixo, olhando segura para seus olhos vermelhos e com veias que se espantaram ao ver minha reação. Estava em minha mão direita, com o cabo fresco como um seixo recém-tirado do rio. Maria parecia sobressaltada com a visão que tinha, mas não hesitou em pedir que Aparecido fosse embora de novo. Correu para o quarto para fazer uma pequena trouxa e voltou gritando que não iria mais apanhar, que ele fosse de uma vez e a deixasse com os meninos, que se virariam. A faca encostou de tal maneira no seu queixo que quase vi o momento em que o laceraria.
Seus olhos vermelhos de fúria amansaram como os de uma criança acuada pelo medo de uma aparição da mata. Aparecido chorou pedindo perdão, dizendo que ele não era de fazer isso, que a bebida era uma desgraça em sua vida. Maria Cabocla aproveitou a fragilidade que ele transparecia para afastá-lo de vez. Mostrava as marcas do corpo, as que pareciam estar curadas, as que não curaram e as daquele instante. Sua raiva dizia muito das dores da alma – e sobre estas ela não falou –, aquelas que demoram a curar, as que no meio das lembranças precisamos afastar com um gesto de negação para que não se abata sobre nós o desânimo. Dizia que não queria mais ver o marido naquele pedaço de chão. Duas das crianças mais novas choraram quando a mãe atirou as roupas pela porta, pedindo “não, mainha, não manda painho embora”. Maria, conquanto parecesse não ouvir ninguém, continuava a gritar para que o homem se fosse, que os deixasse de uma vez, para a casa das putas com quem ele deitava. Ele gritava entre lágrimas que a casa era dele, ele havia levantado, ele que havia pedido abrigo. A mulher parecia firme, e eu apoiava a sua resolução.
Depois que ele seguiu cambaleando pela trilha, arrumamos a casa e alimentamos as crianças. Tive vontade de cuidar de Maria Cabocla, de lavar suas feridas, de dar-lhe de comer, mas ela disse que estava tudo bem e me agradeceu com um gesto sincero. Fui embora com um aperto, pensando no homem vagando pela estrada. Pensei também em Maria com aquela ruma de filhos para cuidar e alimentar. O que haveria de ser dela? E se a mandassem embora da fazenda? E se o marido fosse ele mesmo falar com Sutério? Dormi com essas coisas martelando na moleira, pensando em Maria machucada, sozinha, com vontade de lhe agradar, de pentear seus cabelos dessa vez, fazer uma trança se o brilho oleoso, que desprendia dele, deixasse.
Passei a levar aipim e batata, a safra estava boa, era a minha desculpa para justificar a frequência com que a visitava toda semana. De fato, não me fazia falta e aqui era assim desde o princípio, uma mão lavava a outra. Afinal, nossos pais e esse povo de Maria Cabocla, e tantos outros, chegaram de lugares diferentes e distantes, mas, passado tanto tempo, viviam como uma parentela de filhos de pegação, de compadre, comadre, vizinho, marido e mulher, cunhados, primos e inimigos. Muitos haviam casado entre si e eram parentes de verdade, nos laços e no sangue. Os que não, eram de consideração. Então, o coração mandava dividir o que tínhamos e por isso sobrevivíamos nas piores dificuldades.
Semanas depois, soube que Aparecido havia retornado. Senti tristeza, mas pensei “se é pai dos meninos dela tem de haver algum perdão”. Quem sabe o homem não muda? Ou, quem sabe, o gostar de Maria seja maior que as diferenças que existem entre eles. No fundo, será que ela percebeu que poderia ser pior estar sozinha na terra com aquele tanto de filhos, sem condições de roçar e dar de comer a todo mundo? Talvez tenha sido por isso, pela vergonha de ter me chamado, naquele dia em que o enfrentei com a valentia que corria em meu sangue, que Maria se afastou de mim. Foi mudando com o tempo, se tornando mais tristonha, mais sozinha do que era. Se me encontrava, cumprimentava, mas já não se detinha a falar da vida, das mazelas que sofria, das pancadas do marido, das dificuldades para colocar comida na mesa. Eu também, para não magoar sem querer, nem mesmo ofender, deixei de levar as coisas que plantava e que fui trabalhando com minha força.
Quanta gente foi adentrando na solidão de meu rancho e foi dizendo que era uma roça bonita, que era maior e mais bem cuidada que a roça de muitos homens? Se admiravam quando viam que trabalhava sozinha. Com os olhos, mediam meu corpo de cima a baixo, se pudessem me fariam disputar uma queda de braço com os homens, só para saber se a força para revirar a terra, para trabalhar o chão, vinha dele mesmo. Para ter certeza de que não era das forças dos encantados em que o povo acreditava. Sutério passava rigorosamente toda semana e levava o que podia. Mas não deixava levar o melhor, como meu pai fazia por gratidão. Separava os legumes maiores para a casa, para meus pais. Só não deixava apodrecer nos pés, de desgosto, porque achava um desrespeito com a própria terra. Mas se desse para dar aos animais, eu dava, só para não deixar que ele levasse meu suor, minhas dores nas costas, meus calos nas mãos e minhas feridas nos pés, como se fosse algo seu.

Itamar Vieira Junior, in Torto Arado

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