Ela tinha a beleza tranquila da
maturidade. Alguns fios de cabelo branco davam ao seu rosto um
encanto especial. Bastava vê-la para adivinhar como teria sido
quando jovem. Ah! Com certeza provocara muitos suspiros de amor. De
hábitos domésticos e simples, um dos seus prazeres era assentar-se
numa poltrona e entrar na bolha que a leitura cria. Quem lê está
num outro mundo, muito distante.
O marido a observava de longe. Olhos que
observam são aqueles que olham quando o outro não está olhando.
Olhos que observam são olhos de felino que seguem a presa. Seu olhar
era o de um apaixonado que desconfia, olhar de ciúme. Os olhos do
ciumento vigiam. Vigiam gestos, movimentos, horas, sorrisos. Vigiam
porque as modulações silenciosas e distraídas no rosto da pessoa
amada podem conter revelações sobre aquilo que ela está pensando.
O ciumento suspeita que o ser amado lhe esconde alguma coisa. Olha na
esperança de ver o escondido, de entrar no segredo do outro. O
ciumento detesta os pensamentos. Por mais que os vigie, eles estão
além da sua vigilância.
Há aquela modinha de Carlos Gomes, “quem
sabe?”. É o monólogo de um apaixonado. Ele sofre. Sofre porque a
amada está longe e ele não sabe o que ela está pensando.
Tão longe de mim distante,
Onde irá, onde irá teu pensamento?
O seu desejo era saber se os pensamentos
da amada pensavam nele. Pergunta porque não sabe e tem medo de saber
o que ela estará pensando. Pergunta porque não confia. Minha amada,
por favor, me diga “se inda é meu teu pensamento”.
Há os ciúmes mansos, que todos sentem e
só doem um pouquinho. E há os ciúmes que são um tormento e
frequentemente terminam em tragédia. Todo ciúme, manso ou
atormentado, gostaria de ser dono da pessoa amada, inclusive dos
pensamentos dela. Ele quer conhecê-la por dentro e por fora, para
certificar-se da sua posse. Nos momentos de êxtase amoroso, esse
tormento se resolve e o ciumento se acalma. Mas a sua calma é
efêmera. Dura o mesmo tempo do ato sexual. Termina com o orgasmo. O
coito é coroação seguida de decapitação. Passado o êxtase, a
dúvida volta. E, com ela, o tormento.
Ele a vigiava. Silenciosamente o felino a
vigiava. Observava o seu rosto. Queria adivinhar os seus pensamentos.
E a sua vigilância se exacerbava quando ela sorria ou ria. Como
explicar esse sorriso se ele, o marido, não estava dentro do livro?
Ela não precisava dele para ser feliz. Mergulhada no livro, o marido
não existia. E isso não é o anúncio de uma infidelidade possível?
Ter prazer com algo que não era ele, o seu marido... O prazer
acontecia na ausência dele. A infidelidade com o livro anunciava a
possibilidade de grandes infidelidades. E isso o torturava. Tortura
que não o abandonava nem nos momentos de intimidade prazerosa.
Mas então algo aconteceu e o
tranquilizou. A esposa teve câncer. Uma mulher cancerosa, dominada
pela possibilidade da morte, é um pássaro de asas quebradas que não
sonha nem poderia jamais voar. Um pássaro de asas quebradas não
planeja voos proibidos. Pássaros de asas quebradas são confiáveis.
Isso o acalmou. Ele ficou doce. Até os
momentos de intimidade ficaram leves – seu efêmero sentimento de
posse se transformou num tranquilo sentimento de eternidade. Agora
ela era sua, para sempre.
Suspeito que os crimes por ciúme não
têm o propósito primeiro de matar a pessoa amada. O seu propósito,
ao contrário, é garantir que ela não seja de nenhum outro.
Mas há também um ciúme que dói de
mansinho, sofrimento de todos os apaixonados.
A cena: o marido e a mulher chegam a uma
festa. Muita gente conhecida e desconhecida, música, risos,
olhares... Marido e mulher se separam para se socializar com outras
pessoas. Numa roda o marido conversa e ri, distraído. De repente
vira o rosto e vê a mulher num outro grupo. Ela está virada para o
outro lado, vestido branco, costas nuas. Como é bonita! Ele a ama e
pensa que outros homens já olharam para ela com olhares de admiração
e desejo. Ela se tornou o centro das atenções da roda. Todos os
homens se esforçam por lançar o seu charme. Ela ri. De costas para
o marido, é como se, naquele momento, ele não existisse. Como
aconteceu com a mulher que lia o livro. Ri por causa dos outros que a
cercam, grupo do qual o marido está ausente. E ele pensa que,
naquele momento, a felicidade da sua mulher acontece sem que ele
participe dela. E lhe dói saber que ela pode ser feliz sem ele,
ainda que num breve momento.
Sofre em silêncio, sem demonstrar. E nem
fará cobranças quando voltarem para casa. Afinal de contas ele é
um homem educado, que compreende os movimentos da alma.
O ciúme nasce quando se toma consciência
de que a pessoa amada é livre. Ela é um pássaro pousado no ombro.
Nada o prende. Pode voar quando quiser.
Alguns ciumentos, tolos, acham que
casamento é gaiola, que garantirá a posse do pássaro. Mas nada
garante a posse do pássaro. Nem mesmo a morte. O pássaro voa, o
pássaro volta... Mas pode ser que voe e não volte…
Rubem Alves, in Cantos do Pássaro Encantado
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