Morei no Recife alguns meses, em 1935.
Primeiro numa água-furtada na rua da União, com Ulisses Braga, o
crítico Waldemar Cavalcanti e o sociólogo Manuel Diegues Júnior, o
pai do Caca; depois na rua dos Pires, em casa do Sr. Salomão e Dona
Bertha, pais do saudoso médico-indígena-volante e benemérito
brasileiro Noel Nutels, judeu-russo, antigo animador do jazz-band
acadêmico de Pernambuco. Também moravam Lourenço, funcionário do
Banco do Brasil, que já era o grande compositor Capiba, de frevos e
maracatus; lá o senhor mancebo de espinhas na cara, que é hoje o
colunista e compositor Fernando Lobo (mais conhecido como o pai do
Edu); e os irmãos Suassuna, então estudantes de Medicina, que
sabiam cantar umas coisas pungentíssimas e engraçadíssimas do
sertão — me lembro tanto deles, João e Saulo, não conheci foi
esse Ariano, irmão mais moço deles, que haveria de soprar um vento
violento novo, no teatro e na literatura do Brasil.
Sábado à noite, a gente ia para a casa
de Alfredo Medeiros ouvir violas e ouvir Leda Baltar cantar maracatus
de Ascenso Ferreira. Lembro-me da impressão de espanto que me
produziu Ascenso — o bruto volume do corpo, a extensão da cara de
ladrão de cavalo e bom sujeito, cara de bêbado com pesados encargos
de família, cara de revolucionário mexicano preso por engano na
Guatemala, cara de pintor de gênio e de prefeito português ao mesmo
tempo.
Cara que eu vi vastamente desconsolada,
uma vez que ele cantou uma coisa e o chofer de táxi comentou
candidamente: “Isso é bonito é cantado...”
Não, Ascenso não cantava, mas dizia
seus versos como ninguém, a voz parecia vir de seu grande coração
de boi, generoso e lerdo. “Nunca mais”, me disse ele certa vez,
“nunca mais posso fazer um poema como este que recitei agora;
gastei vinte anos para fazer isto.” O poema era aquele do trem de
ferro que vai pra Catende, danado pra chegar, passa pelo mangue, pelo
partido de cana, pela morena de cabelo cacheado. Ascenso queria dizer
que foram vinte anos de viagens pela Great Western, que criaram o
poema. Porque o poeta explicava seus poemas, isto é, explicava o que
se pode explicar em um poema. O resto, o “mistério”, isso não é
essencialmente seu, é do profundo mundo do Nordeste, esse Nordeste
rico de povo, onde às vezes acontece...
Às vezes acontece, por exemplo, o que
três rapazes me contaram: que, uma noite, no mato, ouviram de longe
uma cantoria muito triste que se repetia sem parar, e então foram no
rumo daquela música, na escuridão. Andaram muito, errado e certo,
até que toparam um casebre no meio do mato e havia um negro velho
que cantava esta coisa apenas: “Um milheiro de tijolos — custando
duas pataca”; e havia umas mulheres de vozes esganiçadas,
agudíssimas, como gritos de dor, que respondiam: “Ai minha Mãe de
Deus — mas que coisa tão barata.”
E no meio da sala, num caixão de pinho
sem forro, aberto, o defunto que eles velavam.
“Eu não posso continuar a discutir com
você porque você é um reles almocreve paraibano e eu sou um
gentil-homem pernambucano!”
Esta frase foi dita no cabaré Taco de
Ouro, há 47 anos. Quem a disse foi Anibal Fernandes; e a disse para
Olívio Montenegro. Antes, Olívio chamara, ironicamente, a Anibal de
gentil-homem. Anibal ripostara — dedo em riste, com veemência. Nós
todos tínhamos bebido alguma coisa — aquilo era, se bem me lembro,
uma despedida do Ganot Chateaubriand, o bom Ganot, que pagara uma
cervejada para todo o pessoal do Diário de Pernambuco naquele
bar que havia embaixo da redação, e depois levara alguns redatores
e colaboradores para tomar uísque e um champanha no cabaré. Tivemos
medo de que aquelas ironias se azedassem e os dois amigos acabassem
brigando; lembro-me de que Gilberto Freyre estava acalmando (talvez
também atiçando...) Anibal, e eu tomando conta do Olívio. Tomando
conta sem necessidade nenhuma: lento, a cabeçorra a balançar
devagar, Olívio não pensava em briga: “Paraibano com muita honra,
ouviu? Almocreve e com muita honra, já ouviu?”
Esse seu fim de frase “já ouviu” às
vezes se reduzia a um “joviu”.
Era, na verdade, um gentil-homem. Os dois
eram gentis-homens autênticos, desses que o Nordeste os tem, mas
pouco exporta para o Sul. Homens presos a uma região, a uma cidade;
presos, quem sabe, à brisa entre coqueiros, ao gosto e ao cheiro de
certas frutas, a um estilo de vida meio largado e ainda
cavalheiresco, capaz de dar a esse escravo que é todo trabalhador
intelectual um ar de grão-senhor entre cajueiros, como o saudoso
Antiógenes Chaves, como o sempre vivo Gilberto Freyre.
Gilberto naquele tempo andava pelos 35
anos, já publicara Casa Grande & Senzala e estava
acabando de escrever Sobrados e Mocambos; e era solteiro. E eu
também era, o Cícero Dias também era. Assim que fomos os três,
num trenzinho da Great Western, à estação de Prazeres para subir o
morro e participar da festa de Nossa Senhora, naquela igreja que
domina as colinas de Guararapes, onde brasileiros e holandeses se
guerrearam. Usava-se ir às antigas trincheiras apanhar folhas para
benzer, pois as plantas dali tinham sido regadas pelo sangue dos
heróis. E nas trincheiras aconteciam casos de amor. A certa altura
Gilberto sumiu e, depois de muito procurá-lo, Cícero Dias e eu
fomos até a estação: lá estava ele preso por um sargento, pois
atentara contra o pudor público fazendo amor com uma jovem mulata no
capim de uma trincheira.
Custou muita conversa e algum dinheiro,
mas libertamos o sociólogo. Coisa que convém referir para que não
seja esquecida em sua biografia. Nestes seus maravilhosos 82 anos de
idade.
Rubem Braga, in Recado de primavera
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