sexta-feira, 27 de agosto de 2021

Recordações pernambucanas

Morei no Recife alguns meses, em 1935. Primeiro numa água-furtada na rua da União, com Ulisses Braga, o crítico Waldemar Cavalcanti e o sociólogo Manuel Diegues Júnior, o pai do Caca; depois na rua dos Pires, em casa do Sr. Salomão e Dona Bertha, pais do saudoso médico-indígena-volante e benemérito brasileiro Noel Nutels, judeu-russo, antigo animador do jazz-band acadêmico de Pernambuco. Também moravam Lourenço, funcionário do Banco do Brasil, que já era o grande compositor Capiba, de frevos e maracatus; lá o senhor mancebo de espinhas na cara, que é hoje o colunista e compositor Fernando Lobo (mais conhecido como o pai do Edu); e os irmãos Suassuna, então estudantes de Medicina, que sabiam cantar umas coisas pungentíssimas e engraçadíssimas do sertão — me lembro tanto deles, João e Saulo, não conheci foi esse Ariano, irmão mais moço deles, que haveria de soprar um vento violento novo, no teatro e na literatura do Brasil.
Sábado à noite, a gente ia para a casa de Alfredo Medeiros ouvir violas e ouvir Leda Baltar cantar maracatus de Ascenso Ferreira. Lembro-me da impressão de espanto que me produziu Ascenso — o bruto volume do corpo, a extensão da cara de ladrão de cavalo e bom sujeito, cara de bêbado com pesados encargos de família, cara de revolucionário mexicano preso por engano na Guatemala, cara de pintor de gênio e de prefeito português ao mesmo tempo.
Cara que eu vi vastamente desconsolada, uma vez que ele cantou uma coisa e o chofer de táxi comentou candidamente: “Isso é bonito é cantado...”
Não, Ascenso não cantava, mas dizia seus versos como ninguém, a voz parecia vir de seu grande coração de boi, generoso e lerdo. “Nunca mais”, me disse ele certa vez, “nunca mais posso fazer um poema como este que recitei agora; gastei vinte anos para fazer isto.” O poema era aquele do trem de ferro que vai pra Catende, danado pra chegar, passa pelo mangue, pelo partido de cana, pela morena de cabelo cacheado. Ascenso queria dizer que foram vinte anos de viagens pela Great Western, que criaram o poema. Porque o poeta explicava seus poemas, isto é, explicava o que se pode explicar em um poema. O resto, o “mistério”, isso não é essencialmente seu, é do profundo mundo do Nordeste, esse Nordeste rico de povo, onde às vezes acontece...
Às vezes acontece, por exemplo, o que três rapazes me contaram: que, uma noite, no mato, ouviram de longe uma cantoria muito triste que se repetia sem parar, e então foram no rumo daquela música, na escuridão. Andaram muito, errado e certo, até que toparam um casebre no meio do mato e havia um negro velho que cantava esta coisa apenas: “Um milheiro de tijolos — custando duas pataca”; e havia umas mulheres de vozes esganiçadas, agudíssimas, como gritos de dor, que respondiam: “Ai minha Mãe de Deus — mas que coisa tão barata.”
E no meio da sala, num caixão de pinho sem forro, aberto, o defunto que eles velavam.
Eu não posso continuar a discutir com você porque você é um reles almocreve paraibano e eu sou um gentil-homem pernambucano!”
Esta frase foi dita no cabaré Taco de Ouro, há 47 anos. Quem a disse foi Anibal Fernandes; e a disse para Olívio Montenegro. Antes, Olívio chamara, ironicamente, a Anibal de gentil-homem. Anibal ripostara — dedo em riste, com veemência. Nós todos tínhamos bebido alguma coisa — aquilo era, se bem me lembro, uma despedida do Ganot Chateaubriand, o bom Ganot, que pagara uma cervejada para todo o pessoal do Diário de Pernambuco naquele bar que havia embaixo da redação, e depois levara alguns redatores e colaboradores para tomar uísque e um champanha no cabaré. Tivemos medo de que aquelas ironias se azedassem e os dois amigos acabassem brigando; lembro-me de que Gilberto Freyre estava acalmando (talvez também atiçando...) Anibal, e eu tomando conta do Olívio. Tomando conta sem necessidade nenhuma: lento, a cabeçorra a balançar devagar, Olívio não pensava em briga: “Paraibano com muita honra, ouviu? Almocreve e com muita honra, já ouviu?”
Esse seu fim de frase “já ouviu” às vezes se reduzia a um “joviu”.
Era, na verdade, um gentil-homem. Os dois eram gentis-homens autênticos, desses que o Nordeste os tem, mas pouco exporta para o Sul. Homens presos a uma região, a uma cidade; presos, quem sabe, à brisa entre coqueiros, ao gosto e ao cheiro de certas frutas, a um estilo de vida meio largado e ainda cavalheiresco, capaz de dar a esse escravo que é todo trabalhador intelectual um ar de grão-senhor entre cajueiros, como o saudoso Antiógenes Chaves, como o sempre vivo Gilberto Freyre.
Gilberto naquele tempo andava pelos 35 anos, já publicara Casa Grande & Senzala e estava acabando de escrever Sobrados e Mocambos; e era solteiro. E eu também era, o Cícero Dias também era. Assim que fomos os três, num trenzinho da Great Western, à estação de Prazeres para subir o morro e participar da festa de Nossa Senhora, naquela igreja que domina as colinas de Guararapes, onde brasileiros e holandeses se guerrearam. Usava-se ir às antigas trincheiras apanhar folhas para benzer, pois as plantas dali tinham sido regadas pelo sangue dos heróis. E nas trincheiras aconteciam casos de amor. A certa altura Gilberto sumiu e, depois de muito procurá-lo, Cícero Dias e eu fomos até a estação: lá estava ele preso por um sargento, pois atentara contra o pudor público fazendo amor com uma jovem mulata no capim de uma trincheira.
Custou muita conversa e algum dinheiro, mas libertamos o sociólogo. Coisa que convém referir para que não seja esquecida em sua biografia. Nestes seus maravilhosos 82 anos de idade.

Rubem Braga, in Recado de primavera

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