domingo, 9 de maio de 2021

Mapeando a realidade: em busca de uma perfeição inatingível

Como determinar se um mapa é bom? O escritor argentino Jorge Luis Borges, em uma de suas brilhantes alegorias, resumiu a situação em um conto de apenas um parágrafo, “Sobre o rigor na ciência”: Naquele império, a Arte da Cartografia alcançou tal Perfeição que o mapa de uma única Província ocupava uma cidade inteira, e o mapa do Império uma Província inteira. Com o tempo, estes Mapas Desmedidos não bastaram e os Colégios de Cartógrafos levantaram um Mapa do Império que tinha o Tamanho do Império e coincidia com ele ponto por ponto.
Menos Dedicadas ao Estudo da Cartografia, as gerações seguintes decidiram que esse dilatado Mapa era Inútil e não sem Impiedade entregaram-no às Inclemências do sol e dos Invernos. Nos Desertos do Oeste perduram despedaçadas Ruínas do Mapa habitadas por Animais e por Mendigos; em todo o País não há outra relíquia das Disciplinas Geográficas.
O único mapa perfeito é o que reproduz todos os detalhes do que está representando, o “território”. Daí o paradoxo: um mapa do tamanho do território que representa não tem nenhum valor. Um mapa perfeito é inútil. Note o título do conto de Borges: “Sobre o rigor na ciência”. Isso faz sentido porque podemos interpretar a ciência como sendo um mapa, uma representação do que vemos da Natureza (o território). Assim sendo, o conto de Borges é uma crítica aos cientistas que acreditam, futilmente, que o que fazem é produzir um mapa perfeito da realidade. A lição é simples: o mapa jamais será o território.
A analogia é bem apropriada, dado que captura tanto os objetivos quanto as frustrações da pesquisa científica: queremos aprender o máximo possível sobre o mundo, e traduzir o que aprendemos num mapa que outros podem ler. Quanto mais aprendemos, mais detalhado fica o mapa. Entretanto, como o filósofo francês Bernard Le Bovier de Fontenelle já sabia em 1686, podemos ver apenas uma fração do que existe.
Por consequência, qualquer mapa que produzimos é necessariamente incompleto. Identificamos, aqui, a tensão entre nossa curiosidade de sempre querer saber mais e nossa inevitável miopia, que nos impede de ver tudo. Esta tensão não é má, pois é ela que inspira nossa criatividade e inventividade. Nossos instrumentos científicos são ferramentas de exploração, que usamos para ampliar nossa visão do mundo, o que chamo de amplificadores do real. Da mesma forma que mapas evoluem quando aprendemos mais sobre a geografia terrestre, nossa compreensão científica da Natureza evolui quando podemos explorá-la mais profundamente com nossos instrumentos.
O perigo, como Borges nos alerta em seu conto, é que nossa ambição pode ir contra nossos objetivos. Sem uma reflexão maior, a necessidade de produzir mapas cada vez mais precisos da realidade, com a intenção de chegar ao mapa final, à descrição perfeita do território, é uma forma de cegueira. Borges, que ficou cego devido a cataratas intratáveis na época, sabia disso melhor do que a maioria. Mesmo com visão plena, muito do mundo permanece oculto. Pela sua própria natureza, a ciência, em qualquer de suas disciplinas, nunca poderá chegar a um estado final de conhecimento considerado completo.
Da mesma forma que, na prática, é impossível catalogar todas as espécies de insetos e de fungos no planeta, nunca poderemos ter certeza de que nossa descrição das interações entre as partículas subatômicas de matéria é, de fato, final. No caso dos insetos e dos fungos, não só é impossível localizar todos eles na vastidão da superfície e subsolo terrestre, como devemos considerar que, durante o tempo que precisamos para levantar os dados, algumas espécies irão desaparecer, enquanto outras sofrerão mutações e consequentes transformações. Projetos com esse tipo de objetivo são elusivos, fato que deveria tanto inspirar e motivar mais estudos, quanto despertar uma boa dose de humildade.
No caso das partículas elementares, existe sempre a possibilidade de que alguma escape aos nossos detectores e algoritmos de busca. Nunca poderemos ter certeza de que a rede que estamos usando é fina o suficiente para capturar todas as partículas, pela simples razão de que nunca poderemos ter certeza de que sabemos tudo o que existe para ser capturado! Um mapa serve um propósito preciso: guiar a pessoa do ponto A ao ponto B. Um mapa eficiente é o que faz isso deixando de lado todos os detalhes irrelevantes. Essa é a função dos modelos matemáticos que usamos em ciência, representações dos aspectos essenciais da realidade natural que queremos estudar, que deixam de fora o que não é necessário.
Existe economia na simplicidade. Pensando na ciência como um mapa e na Natureza como o território, Borges nos ensina algo muito precioso. Devemos nos orgulhar dos mapas que fazemos do mundo, tentando sempre melhorá-los. Por outro lado, devemos nos lembrar que todo mapa é limitado, fornecendo informação incompleta do território que mapeia. Vemos o mundo com olhos estritamente humanos, e nossos mapas imperfeitos são um reflexo disso.

Marcelo Gleiser, in O caldeirão azul

Nenhum comentário:

Postar um comentário