quinta-feira, 6 de maio de 2021

“Deus te guarde, patrão, do traseiro das mulas e do que os monges tem na frente!”

O velho galo cantou no pátio de Madame Hortência. O dia entrava agora, todo branco, pela pequena janela. Levantei-me de um pulo.
Os trabalhadores começavam a surgir com suas picaretas, suas alavancas, suas pás. Ouvi Zorba dando ordens. Havia desde logo se entregado às suas tarefas; sentia-se nele o homem que sabe comandar e que gosta da responsabilidade.
Pus a cabeça pela janelinha e o vi em pé, gigantesco ciclope no meio de uns trinta homens magros, rudes, mal-amanhados, de compleição fina. Seu braço apontava imperioso, suas palavras eram breves e precisas. Num dado momento apanhou pela nuca um rapazote que murmurava e hesitava.
Tem alguma coisa a dizer? — gritou ele. — sem tem, diga alto! Resmungos não me agradam. Para trabalhar é preciso disposição. Se não tem, vá logo para o botequim.
Nesse momento apareceu Madame Hortência, descabelada, rosto inchado, sem pintura, vestida com uma ampla camisola suja e arrastando uma espécie de chinelas deformadas. Tossiu a tosse rouca das velhas cantoras, parecendo um zurro, parou e olhou Zorba com orgulho. Seus olhos se enterneceram. Tossiu de novo para que ele ouvisse, e passou por ele balançando-se e sacudindo o traseiro.
Quase o tocou. Mas ele nem se voltou para olhá-la. Tomou de um operário um pedaço de pão e umas azeitonas.
Vamos embora, rapazes! — gritou ele — façam o seu sinal da cruz!
E em grandes passadas arrastou a turma em linha reta para a montanha.
Não descreverei aqui o trabalho da mina. Para isso é preciso paciência e eu não a tenho. Havíamos construído com tábuas, palha e latas velhas um barracão perto do mar. Ao erguer-se o dia, Zorba acordava, apanhava sua picareta e ia para a mina antes dos operários; abria uma galeria, abandonava-a, achava um veio de linhita brilhante como hulha e dançava de alegria. Dias depois o veio se perdia e Zorba se atirava ao chão, de pernas para o ar, e com os pés e as mãos dava bananas ao céu. Havia tomado o trabalho ao peito. Nem me consultava mais.
Desde os primeiros dias, as responsabilidades haviam passado de minhas mãos para as dele. Era dele a tarefa de decidir e executar. A minha de pagar pelos potes quebrados — o que de resto não me agradava — pois, sabia-o bem, esses meses seriam os mais felizes de minha vida. Assim, feitas as contas, tinha consciência de que estava comprando barato a minha felicidade.
Meu avô materno, que habitava uma cidadezinha de Creta, pegava toda noite seu lampião e dava a volta nas ruas, para ver se algum estrangeiro havia por acaso chegado. Ele o levava para casa, dava-lhe de comer e beber com abundancia, depois do que se sentava no divã, acendia o seu longo chíbuque, virava-se para seu hóspede — para quem havia chegado o momento de pagar — e dizia-lhe imperiosamente:
Conta!
Contar o que, Pai Mustoyoryi?
O que você é, quem você é, de onde vem, que cidades e que terras viram os seus olhos, tudo. Conta tudo. Vamos, fala!
E o hóspede começava a contar, às cambulhadas, verdades e mentiras, enquanto meu avô fumava seu chíbuque, e escutava, viajando com ele, tranquilamente sentado em seu divã. E, se o hóspede lhe agradava, dizia:
Você fica amanhã também, você não pode partir. Você ainda tem coisa para me contar.
Meu avô nunca saiu de sua cidade. Nem mesmo foi a Cândia ou a Caneia. “Ir lá para que? Dizia. Candianos e caneenses passam por aqui, e Cândia e Caneia vêm a minha casa. Não preciso ir lá eu mesmo!”
Mantenho hoje, sobre a costa cretense, essa mania de meu avô.
Eu também encontrei um hóspede, como se o tivesse procurado à luz de um lampião. Não o deixo partir. Ele me custa bem mais caro que um jantar, mas vale. Cada noite o espero após o trabalho, faço-o sentar-se diante de mim, comemos e, chegando o momento da paga, eu lhe digo: “Conta”. Fumo o meu cachimbo e escuto. Ele explorou bem a terra, esse hóspede, e explorou bem a alma humana. Não me canso de ouvi-lo.
Conta, Zorba! Conta!
E quando ele abre a boca toda a Macedônia abre-se diante de mim, se instala no pequeno espaço entre Zorba e eu com suas montanhas, suas florestas e torrentes, seus comitadjis, suas mulheres duras no trabalho e seus homens maciços e rudes. O monte Athos também, com seus vinte e um mosteiros, seus arsenais e seus madraços traseirudos. Zorba abre o colarinho ao terminar as histórias de monges e diz, às gargalhadas: “Deus te guarde, patrão, do traseiro das mulas e do que os monges tem na frente!”

Nikos Kazantzakis, in Zorba, O Grego

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