segunda-feira, 14 de setembro de 2020

Duas senhoras de Berlevaag

Na Noruega, existe um fiorde – um braço longo e estreito de mar entre montanhas altas – chamado Berlevaag. No sopé das montanhas, a cidadezinha de Berlevaag parece uma cidade de brinquedo feita com pequenas peças de madeira pintadas de cinza, amarelo, rosa e muitas outras cores. Há sessenta e cinco anos, duas senhoras idosas moravam em uma das casas amarelas. Outras mulheres dessa época usavam anquinhas e as duas irmãs poderiam tê-las usado com tanta graça quanto qualquer uma delas, pois eram altas e esbeltas. Mas jamais possuíram artigo algum da moda; haviam se vestido com recato em cinza ou preto por toda a vida. Seus nomes de batismo eram Martine e Philippa, em homenagem a Martinho Lutero e seu amigo Philipp Melanchthon. O pai delas fora deão e profeta, fundador de algum grupo ou seita eclesiástica devota, conhecida e respeitada em toda a Noruega. Seus membros renunciavam aos prazeres deste mundo, pois a terra e tudo que continha para eles não constituíam senão um tipo de ilusão, e a verdadeira realidade era a Nova Jerusalém à qual aspiravam. Jamais praguejavam, sua comunicação se dava com sim sim e não não e tratavam-se uns aos outros por irmão e irmã.
O deão casara-se em idade provecta e por essa época havia muito já morrera. Os discípulos minguavam ano após ano, assim como a cor de seus cabelos, os próprios cabelos, a audição; tornavam-se até mesmo um pouco chorosos e briguentos, de modo que pequenos cismas surgiam na congregação. Mas continuavam a se reunir para ler e interpretar a Palavra. Todos haviam conhecido as filhas do deão desde garotinhas; para eles, continuavam a ser duas irmãs pequenas, preciosas por causa do pai querido. Na casa amarela, sentiam que o espírito do Mestre estava entre eles; ali encontravam-se em casa e em paz.
Essas duas senhoras tinham uma criada francesa, pau para toda a obra, Babette.
Era uma coisa estranha para uma dupla de mulheres puritanas numa pequena cidade norueguesa; ao que tudo indica, chegou-se até a exigir uma explicação. O povo de Berlevaag encontrou a explicação nos sentimentos piedosos e na bondade de coração das irmãs. Pois as filhas do velho deão gastavam o tempo e os pequenos rendimentos em obras de caridade; nenhuma criatura infeliz ou aflita batia à sua porta em vão. E Babette chegara àquela porta doze anos antes como uma fugitiva sem amigos, quase enlouquecida de dor e medo.
Mas o verdadeiro motivo para a presença de Babette na casa das duas irmãs estava para ser descoberto buscando-se um pouco mais fundo no passado e nos domínios do coração humano.
Karen Blixen, in A festa de Babette

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