“Não
tinha ainda abandonado a nossa casa, Pedro, mas os olhos da mãe já
suspeitavam minha partida” eu disse ao meu irmão, passado o
primeiro alvoroço que sua presença tinha provocado naquele quarto
de pensão; “quando fui procurar por ela, eu quis dizer a senhora
se despede de mim agora sem me conhecer, e me ocorreu que eu pudesse
também dizer não aconteceu mais do que eu ter sido aninhado na
palha do teu útero por nove meses e ter recebido por muitos anos o
toque doce das tuas mãos e da tua boca; eu quis dizer é por isso
que deixo a casa, por isso é que parto, quantas coisas, Pedro, eu
não poderia dizer pra mãe, mas meus olhos naquele momento não
podiam recusar as palmas prudentes de velhos artesãos, me apontando
pedras, me apontando paisagens esquisitas, calcinadas, me modelando
calos, modelando solas nos meus pés de barro; claro que eu poderia
dizer muitas coisas pra mãe, mas achei inútil dizer qualquer coisa,
não faz sentido, eu pensei, largar nestas pobres mãos cobertas de
farinha a haste de um cravo exasperado, não faz sentido, eu pensei
duas vezes, manchar seu avental, cortar o cordão esquartejando um
sol sanguíneo de meio-dia, não faz sentido, eu pensei três vezes,
rasgar lençóis e pétalas, queimar cabelos e outras folhas, encher
minha boca drasticamente construída com cinzas devassadas da
família, por isso em vez de dizer a senhora não me conhece, achei
melhor, sem me desviar do traço de calcário, mesmo sem água, de
boca seca e salgada, achei melhor me guardar trancado diante dela,
como alguém que não tivesse nada, e na verdade eu não tinha nada
pra dizer a ela; e ela queria dizer alguma coisa, e eu pensei a mãe
tem alguma coisa pra dizer que vou talvez escutar, alguma coisa pra
dizer que deve quem sabe ser guardada com cuidado, mas tudo o que
pude ouvir, sem que ela dissesse nada, foram as trincas na louça
antiga do seu ventre, ouvi dos seus olhos um dilacerado grito de mãe
no parto, senti seu fruto secando com meu hálito quente, mas eu não
podia fazer nada, eu podia quem sabe dizer alguma coisa, meus olhos
estavam escuros, mesmo assim não era impossível eu dizer, por
exemplo, eu e a senhora começamos a demolir a casa, seria agora o
momento de atirar com todos os pratos e moscas pela janela o nosso
velho guarda-comida, raspar a madeira, agitar os alicerces, pôr em
vibração as paredes nervosas, fazendo tombar com nosso vento as
telhas e as nossas penas em alvoroço como se caíssem folhas; não
era impossível eu dizer pra ela vamos aparar, mãe, com nossas mãos
terníssimas, os laivos de sangue das nossas pedras, vamos pôr grito
neste rito, não basta o lamento quebrado da matraca lá na capela;
não era impossível, mas eu já te disse, Pedro, meus olhos estavam
mais escuros do que jamais alguma vez estiveram, como podia eu
empunhar o martelo e o serrote e reconstruir o silêncio da casa e
seus corredores? mas entenda, Pedro, com meus olhos sempre noturnos,
eu, o filho arredio, provocando as suspeitas e os temores na família
inteira, não era com estradas que eu sonhava, jamais me passava pela
cabeça abandonar a casa, jamais tinha pensado antes correr longas
distâncias em busca de festas pros meus sentidos; entenda, Pedro, eu
já sabia desde a mais tenra puberdade quanta decepção me esperava
fora dos limites da nossa casa” eu disse quase afogado nessa
certeza, procurando me recompor com um bom respiro no espírito do
vinho, e foi entre sorvos sôfregos que eu fui depois, num passo
trôpego, na direção de um móvel alto e circunspecto, retirando
dali a caixa que logo transferi para junto dos pés do meu irmão que
ia se perdendo na estufa do meu quarto, deixando já cair no chão a
pala castanha do seu olhar contemplativo, e quando surpreendi, ao
abrir a caixa, o gesto que nele se esboçava, me ocorreu dizer cheio
de febre “Pedro, Pedro, é do teu silêncio que eu preciso agora,
levante as viseiras, passeie os olhos, solte-lhes as rédeas, mas
contenha a força e o recato da família, e o ímpeto áspero da tua
língua, pois só no teu silêncio úmido, só nesse concerto esquivo
é que reconstituo, por isso molhe os lábios, molhe a boca, molhe os
teus dentes cariados, e a sonda que desce para o estômago, encha
essa bolsa de couro apertada pelo teu cinto, deixe que o vinho vaze
pelos teus poros, só assim é que se cultua o obsceno” foi o que
eu quis dizer com a volúpia de um colecionador de ligas de mulheres,
mas acabei não dizendo nada, nem ele disse qualquer coisa, logo
recolhendo o aceno vago do seu gesto, e quando vi que meu irmão
quase esvaziava num só gole o copo cheio, me ocorreu ainda dizer
enternecido “ah, meu irmão, começamos a nos entender, pois já
vejo tua boca descongestionada, e nos teus olhos a doce ação do
vinho fazendo correr o leite azul que te espirra agora das pupilas, o
mesmo leite envenenado que irrigou um dia a tumescência em úberes
cancerosos”, mas já não era o caso de exortá-lo, naquele meu
quarto decaído, estávamos os dois já quase encharcados, as uvas no
forro, e nossos olhos molhados, nossas contas de vidro, presos com
afinco na caixa que eu virava de boca, virando com ela o tempo, me
remetendo às noites sorrateiras em que minha sanha se esgueirava
incendiada da fazenda, trocando a cama macia lá de casa por um duro
chão de estrada que me levava até a vila, sem receio das crendices
noctívagas que povoavam aquele curto trajeto, assustando com meu
fogo a cruz calada à beira do caminho, assim como as histórias
assombradas mal escondidas pelos ferros do portão do cemitério por
onde eu passava, conduzido e sempre fortalecido por minhas reflexões
profanas de adolescente; “pegue, Pedro, pegue na mão e pese este
objeto ínfimo” eu disse erguendo uma fita estreita de veludo roxo,
esquiva, uma gargantilha de pescoço; “este trapo não é mais que
o desdobramento, é o sutil prolongamento das unhas sulferinas da
primeira prostituta que me deu, as mesmas unhas que me riscaram as
costas exaltando minha pele branda, patas mais doces quando corriam
minhas partes mais pudendas, é uma doida pena ver esse menino
trêmulo com tanta pureza no rosto e tanta limpeza no corpo, ela me
disse, é uma doida pena um menino de penugens como você, de peito
liso sem acabamento, se queimando na cama feito graveto; toma o que
você me pede, guarda essa fitinha imunda com você e volta agora pro
teu nicho, meu santinho, ela me disse com carinho, com rameirices,
com gargalhadas, mas era lá, Pedro, era lá que eu, escapulindo da
fazenda nas noites mais quentes, e banhado em fé insolente,
comungava quase estremunhado, me ocultando da frequência de
senhores, assim como da desenvoltura de muitos moços, desajeitado no
aconchego viscoso daquelas casas, escondendo de vergonha meus pés
brancos, minhas unhas limpas, meus dentes de giz, o asseio da minha
roupa, minha cara imberbe de criança; ah, meu irmão, não me deitei
nesse chão de tangerinas incendiadas, nesse reino de drosófilas,
não me entreguei feito menino na orgia de amoras assassinas? não
era acaso uma paz precária essa paz que sobrevinha, ter meu corpo
estirado num colchão de erva daninha? não era acaso um sono
provisório esse outro sono, ter minhas unhas sujas, meus pés
entorpecidos, piolhos me abrindo trilhas nos cabelos, minhas axilas
visitadas por formigas? não era acaso um sono provisório esse
segundo sono, ter minha cabeça coroada de borboletas, larvas gordas
me saindo pelo umbigo, minha testa fria coberta de insetos, minha
boca inerte beijando escaravelhos? quanta sonolência, quanto torpor,
quanto pesadelo nessa adolescência! afinal, que pedra é essa que
vai pesando sobre meu corpo? há uma frieza misteriosa nesse fogo,
para onde estou sendo levado um dia? que lousa branca, que pó
anêmico, que campo calado, que copos-de-leite, que ciprestes mais
altos, que lamentos mais longos, que elegias mais múltiplas
plangendo meu corpo adolescente! muitas vezes, Pedro, eu dizia muitas
vezes existe um silêncio fúnebre em tudo que corre, vai uma
alquimia virtuosa nessa mistura insólita, como é possível tanto
repouso nesse movimento? eu pensava muitas vezes que eu não devia
pensar, que nessa história de pensar eu tinha já o meu contento, me
estrebuchando na santa bruxaria do infinito, por isso eu pensava
muitas vezes que o meu caminho não era de eu pensar, e que não
devia ser esse o meu vezo na correnteza, eu devia, isto sim, eu devia
quando muito era apoiar a nuca num travesseiro de espumas, deitar o
dorso numa esteira de folhas, fechar os olhos, e, largado na
corrente, minhas mãos ativas que se deixassem roçar em abandono por
colônias de algas, pelos dejetos à tona e o lodo espesso, mas eu me
permitia uma e outra vez sair frivolamente desse meu sono e me
perguntar para onde estou sendo levado um dia? Pedro, meu irmão,
engorde os olhos nessa memória escusa, nesses mistérios roxos, na
coleção mais lúdica desse escuro poço: no pano murcho dessas
flores, nesta orquídea amarrotada, neste par de ligas cor-de-rosa,
nesta pulseira, neste berloque, nessas quinquilharias todas que eu
sempre pagava com moedas roubadas ao pai; entre um pouco nessas
coisas que me dormiam e que eu só guardava para um dia espalhar, e
que eu só ia enterrando nesta caixa para um dia desenterrar e
espalhar na terra e pensar com estes meus olhos de agora foi uma
longa, foi uma longa, foi uma longa adolescência! Pedro, Pedro, era
a peta dos meus olhos me guiando pra casas tão pejadas, era
refocilando ali que eu largava minha peçonha, esse visgo tão
recôndito, essa gema de sopro ázimo de tão sorvido, mas jamais
vislumbrei pelas portas e janelas, espiando com afinco através das
cortinas de pingentes e da luz vermelha dos abajures, o sal, a
hóstia, o amor da nossa Catedral! carregue com você, Pedro” eu
disse num grito “carregue essas miudezas todas pra casa e conte
entre olhares de assombro como foi se erguendo a história do filho e
a história do irmão; encomende depois uma noite bem quente ou
simplesmente uma lua bem prenhe; espalhe aromas pelo pátio, invente
nardos afrodisíacos; convoque então nossas irmãs, faça vesti-las
com musselinas cavas, faça calçá-las com sandálias de tiras;
pincele de carmesim as faces plácidas e de verde a sombra dos olhos
e de um carvão mais denso suas pestanas; adorne a alba dos seus
braços e os pescoços despojados e seus dedos tão piedosos, ponha
um pouco dessas pedrarias fáceis naquelas peças de marfim; faça
ainda que brincos muito sutis mordisquem o lóbulo das orelhas e que
suportes bem concebidos açulem os mamilos; e não esqueça os
gestos, elabore posturas langorosas, escancarando a fresta dos seios,
expondo pedaços de coxas, imaginando um fetiche funesto para os
tornozelos; revolucione a mecânica do organismo, provoque naqueles
lábios então vermelhos, debochados, o escorrimento grosso de
humores pestilentos; carregue esses presentes com você e lá
chegando anuncie em voz solene ‘são do irmão amado para as irmãs’
e diga, é importante: ‘cuidado, muito cuidado em retirá-los deste
saco, em paga aos sermões do pai, o filho tresmalhado também manda,
entre os presentes, um pesado riso de escárnio’; vamos, Pedro,
ponha no saco” eu berrei numa fúria contente vendo a súbita
mudança que eu provocava em meu irmão, um ímpeto ruivo faiscou nos
seus olhos, sua mão desenhou garranchos no ar, assustadores, essa
mesma mão que já ensaiava com segurança a sucessão da mão do
pai, mas tudo se apagou num instante, senti seus olhos de repente
dilacerados, meu irmão chorava minha demência, discretamente, longe
de suspeitar que percebido assim eu acabava de receber mais uma
graça: liberado na loucura, eu que só estava a meio caminho dessa
lúcida escuridão; eu quis dizer pra ele “tempere nesta mão a voz
potente, a ternura contida, a palavra certa, corra com ela meus
cabelos, afague-os, proteja minha nuca, em circunstâncias como esta,
assim faria a mão do pai, severa”; e me ocorreu também que eu
poderia exortá-lo de forma correta enquanto enchia de novo os nossos
copos, dizendo, por exemplo, “dilate as pupilas, esbugalhe os
olhos, aperte tua mão na minha, irmão, e vamos”.
Raduan
Nassar, in Lavoura Arcaica
Nenhum comentário:
Postar um comentário