Tortuosos
são os caminhos da língua. Espera um pouquinho, ficou meio
pornográfico. Deixa eu começar de novo. É curioso o que o tempo e
o uso fazem com alguns termos. “Kafkiano”, por exemplo, já
perdeu qualquer contato com a literatura que lhe deu origem e é
usado por gente que nem sabe quem foi Kafka — o que não deixa de
ser meio kafkiano. “Relaxado” não quer mais dizer relapso ou
descuidado como no tempo em que me criticavam por não arrumar meu
quarto, ou nojento só porque limpava ranho com a manga. Hoje se
refere a quem, para usar outro termo alterado, “está relax”,
descontraído, numa boa, tomando seu drinque com guarda-chuvinha como
se nada estivesse acontecendo. Etc. etc.
Imagino
que o Big Brother do título desse programa venha do livro
1984, em que os habitantes do futuro imaginado por George
Orwell viviam sob vigilância permanente de um poder totalitário e
eram constantemente lembrados que “o Irmão Grande está vendo
você”. O Big Brother de Orwell não queria ver ninguém se
amando, pois o sexo era proibido, e seu controle de cada movimento
das pessoas era o principal terror do “paraíso” que Orwell
previa para a humanidade, um olho implacável da moral dominante do
qual era inútil tentar escapar. Corta para 2002. No Brasil, este
outro falso paraíso, tem gente brigando para se expor diante do olho
implacável e o que o Big Brother daqui, o grande público,
mais quer ver é cenas de sexo. A câmera indiscreta a serviço de
uma ideia obsessiva de organização social deu lugar a uma obsessão
maior, a vontade universal de saber o que se passa na casa do
vizinho. Não sei se houve ironia intencional (dos holandeses, é
isso?) na escolha do nome do programa, mas ela é clara: 1984 já
passou e o tirânico Big Brother do Orwell, felizmente, não
veio, mas a sua ideia de câmeras bisbilhoteiras era ótima. E elas
servem a outra ditadura, que também nos manipula e tiraniza: a
ditadura da desconversa. Pois se o Irmão Grande agora é o público,
as câmeras reveladoras não se voltaram para o poder, voltaram-se
para gente como nós, se expondo e fofocando por dinheiro. O controle
é o mesmo.
Luís
Fernando Veríssimo, in Banquete com os deuses
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