quarta-feira, 22 de janeiro de 2020

Grande irmão

Tortuosos são os caminhos da língua. Espera um pouquinho, ficou meio pornográfico. Deixa eu começar de novo. É curioso o que o tempo e o uso fazem com alguns termos. “Kafkiano”, por exemplo, já perdeu qualquer contato com a literatura que lhe deu origem e é usado por gente que nem sabe quem foi Kafka — o que não deixa de ser meio kafkiano. “Relaxado” não quer mais dizer relapso ou descuidado como no tempo em que me criticavam por não arrumar meu quarto, ou nojento só porque limpava ranho com a manga. Hoje se refere a quem, para usar outro termo alterado, “está relax”, descontraído, numa boa, tomando seu drinque com guarda-chuvinha como se nada estivesse acontecendo. Etc. etc.
Imagino que o Big Brother do título desse programa venha do livro 1984, em que os habitantes do futuro imaginado por George Orwell viviam sob vigilância permanente de um poder totalitário e eram constantemente lembrados que “o Irmão Grande está vendo você”. O Big Brother de Orwell não queria ver ninguém se amando, pois o sexo era proibido, e seu controle de cada movimento das pessoas era o principal terror do “paraíso” que Orwell previa para a humanidade, um olho implacável da moral dominante do qual era inútil tentar escapar. Corta para 2002. No Brasil, este outro falso paraíso, tem gente brigando para se expor diante do olho implacável e o que o Big Brother daqui, o grande público, mais quer ver é cenas de sexo. A câmera indiscreta a serviço de uma ideia obsessiva de organização social deu lugar a uma obsessão maior, a vontade universal de saber o que se passa na casa do vizinho. Não sei se houve ironia intencional (dos holandeses, é isso?) na escolha do nome do programa, mas ela é clara: 1984 já passou e o tirânico Big Brother do Orwell, felizmente, não veio, mas a sua ideia de câmeras bisbilhoteiras era ótima. E elas servem a outra ditadura, que também nos manipula e tiraniza: a ditadura da desconversa. Pois se o Irmão Grande agora é o público, as câmeras reveladoras não se voltaram para o poder, voltaram-se para gente como nós, se expondo e fofocando por dinheiro. O controle é o mesmo.
Luís Fernando Veríssimo, in Banquete com os deuses

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